quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Quando Freud e Jung voltam a transar


Essa semana participei de um encontro fílmico composto, em sua maioria, por psicanalistas. Esses encontros como se sabe, utilizam o enredo de uma produção cinematográfica para, a partir de então, extrair interpretações associadas à corrente científica dos seus comentadores. Assim, a depender da reunião, psicanalistas lançam o olhar psicanalítico sobre o filme, os sociólogos utilizam os aportes da sociologia, os juristas o olhar jurídico e por ai vai. O exercício por si só, é completamente producente, visto que não parte do abstratismo teórico costumeiro que, em regra, sai do abstrato para buscar amparo no existencial. A mecânica combate, assim, os vícios pedagógicos e a dificuldade de se apre(e)nder sem exemplificações, como ocorre na fossilizada concepção pedagógica da academia e que dificulta que a massa cinzenta se movimente sem os "exemplos práticos".

Ainda assim, este não é um comentário sobre novas pedagogias nem mesmo um comentário direcionado ao filme - um tocante drama que trata sobre o trauma de uma mulher violentada e que possibilita excelentes elucubrações. O filme se chama A vida secreta das palavras, e fica aqui a dica aos curiosos. O que faço é um metacomentário. Um comentário sobre os comentários desenvolvidos depois que os créditos do filme atravessaram a tela. Em voga, pois, algumas divergências doutrinais – ainda que tanto nauseante seja essa verduga palavra – que ganharam vida. Obviamente que o discurso era psicanalítico. Numa reunião em que 90% dos participantes são psicanalistas nada mais justo que se legitime o tom daquilo que a maioria conhece melhor. Ocorreria o mesmo em qualquer reunião de sectários, seja de cunho científico, religioso ou qualquer outro. Até aqui, problema nenhum.

Para que se esclareça a quem não tem familiaridade com o assunto, a “ciência” psicológica, que tem Freud como seu precursor pela descoberta do método psicanalítico, conta com pouco mais de cem anos de existência. De qualquer forma, a investigação das interioridades humanas remonta a própria história da civilização: muito antes de Freud, já se intuía sobre um plano profundo da consciência. As antigas civilizações indígenas realizavam rituais de cura por meio da obediência da linguagem daquele que detinha o poder curandeiro da tribo, bem como no período pré-medieval os mestres tribais escreviam oráculos que continham a interpretação dos sonhos. No medievo já se prenunciava a psicanálise com o próprio exercício da confissão no catolicismo: desabafar os pecados para que o poder de Deus, representado no padre com enormes dificuldades de manter a castidade com seus coroinhas, pudesse aliviar o peso do fardo moral. Na modernidade, momento de explosão do cientificismo cartesiano, Nietzsche se autodenomina como primeiro grande psicólogo da história e os filósofos românticos alemães, talvez pela primeira vez, anunciam o inconsciente por esta mesma palavrinha que ainda hoje o denominamos.

Dito isso, deve-se também esclarecer que após Freud, alguns seguidores seus deram conta de seguir com a teoria. Repita-se: seguir com os importantes desenvolvimentos teóricos de Freud. O que não se traduz, exatamente, na manutenção rígida do baluarte inabalável (nas palavras do próprio Fredu) construído por sua teoria. Entre esses seguidores estão Adler, Lacan, Carl Jung e outros. Este último, se apropriou de diversas categorias de seu mestre e fundou o que hoje se denomina de Psicologia Analítica. No debate feito depois do filme, mencionei em dado momento uma das categorias de Jung que não são aceitas pela psicanálise. Ainda que o tom doutrinário seja de completa beligerância, nunca vi a teoria de Freud como absolutamente equivocada, afinal quem seria insano de faze-lo? De qualquer forma, meu comentário realmente não foi aceito, confirmando o dispositivo científico arraigado às ilhas de racionalidade que sentenciam: uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa.

A reação era esperada. Mas não entendi e fiquei em silêncio absorto, como me foi indicado a não misturar filosofia no meio da endeusada teoria da psicanálise, quando argumentei que era necessário um cuidado hermenêutico no momento de entificação das coisas, afinal, dizer que algo e ou não é, é sempre muito arriscado. Obviamente que essas afirmações de certeza sempre partem de premissas que se sustentam em algum lugar, feliz ou infelizmente assim tem que ser. Logo, o discurso dos psicanalistas se faz verdadeiro uma vez apoiado na teoria que os embasa. Dito de modo simples: se a premissa é freudiana, é completamente verdadeira a afirmação de que existem duas pulsões (eros e tanatos) a operar na psique humana.

Mas volto à filosofia, estranhamente negada em nossa reunião. Me disseram para deixar a filosofia fora da discussão e minutos depois me foi indicado em claro tom “pense nisso”. E talvez lá, pela primeira vez na história dos homens, tenha surgido uma nova possibilidade científica (essa que vem da ciência adulada por todo homem que ainda pensa com Descartes no colo): a possibilidade de pensar sem utilizar filosofia! Atentemos para o risco: enquanto hoje se alastra a necessidade de uma filosofia do direito, da sociologia e até das ciências médicas; em que a mesma cientificidade requerida pelos companheiros de debate coloca a filosofia como pedra angular da criação científica; a psicanálise, pela voz dos meus amigos debatedores, é ordenada a seguir alheia a qualquer aporte filosófico. Contam as línguas subversivas da ciência que Descartes, depois de ir a um puteiro e broxar com a puta que havia eleito para se deleitar naquela noite, pediu uma dose a mais da bebida que bebia, sentou e escreveu o seu Discurso do Método. Toda a “cientificidade”, inclusive esta ciência psicológica é apoiada numa disfunção erétil histórica. Se ele era um filósofo como diz a tradição, não entendo: toda a psicanálise é completamente cartesiana e, portanto, filosófica! Ademais, duvido eu que o próprio Freud não tenha lido Nietzsche! Que grande pensador não o leu? Ademais, sem entrar nas já sabidas críticas substancias da psicanálise, deve-se dizer que há hoje um forte eco sistêmico que aponta para a desconstrução do paradigma científico-racional. Não há novidade nisso! Logo, se se quer manter o discurso “estritamente científico” como ontem escutei, é necessário, pelo menos, pensar (com ou sem filosofia), que o paradigma mudou ainda no século passado. Ao que parece os postulados da pós-modernidade ainda não tocaram a psicanálise. Mesmo tendo Freud desenvolvido a teoria da psique humana sobre os aportes da física newtoniana, esta vencida pela teoria da relatividade de Einsteen, segue-se sem abrir os olhos para este desvio histórica da ciência.

Me foi indicado, além de que não utilizasse a filosofia, que respeitasse as verdades extraídas da vasta experiência clínica daqueles que lá estavam. Sinceramente: o tom forte do “disso sei eu” pareceu a tentativa de imposição da verdade por meio da imposição paternalista, tão antiga e viva em nossa cultura. Se não se herdou do pai, numa dessas pode até ser algum arquétipo que esteja a atuar baixinho e fugidio, afinal, essa imposição pelo poder hierárquico já é relatada no Gênesis da bíblia quando Deus impõe a Adão e Eva que fiquem afastados da árvore do conhecimento do bem e do mal. Parece que desobedecer a psicanálise é provar do fruto envenenado da serpente e conhecer o mal, o oculto e tudo aquilo que repelimos simplesmente por não conhecer, na velha trava misoneísta que faz a evolução ser tão lenta. De qualquer forma, não por uma pseudo-obediência hierárquica, dei o devido respeito ao comentário. Se tem algo que deve ser respeitado, verdadeiramente, é a experiência. Ainda mais quando não se tem muitos anos para colocar nas cartas do jogo. Não há como negar a legitimidade da experiência, talvez ela seja a única que tenha autoridade para enunciar em qualquer campo de observação. Disso não há dúvida. E repito: respeito muito a experiência! Ingenieros – que talvez, desastrosamente, foi filósofo e psicólogo já que não se deve misturar muito as coisas – anunciava: Aproximando-se de formas de expressão cada vez mais exatas, os futuros filósofos deixarão para os poetas o maravilhoso privilégio de usar a linguagem figurada; e os sistemas futuros, desprendendo-se de antigos resíduos místicos e dialéticos,usarão pouco a pouco a Experiência como fundamento de toda hipótese legítima. Da mesma forma que respeito, aceito e acredito no êxito clínico extraído dos psicanalistas e de sua vasta experiência. O que não posso, é desconsiderar êxitos que escolheram itinerários diversos para curar e ter sucesso. Também os analistas junguianos relatam incontáveis casos de êxito com seus pacientes por um caminho completamente diverso da psicanálise. Afinal, nos reportemos à poesia – que talvez também não possa ser misturada com psicanálise – nas palavras de Antonio Machado: caminante no hay camino, el camino se hace al andar.

Dito isso, volta-se para a filosofia e especialmente para Gadamer que em 1960 escreve Verdade e Método. Gadamer faz ironia com o próprio título de sua obra, indicando a superação da filosofia da consciência racional da modernidade pelo paradigma da linguagem quando Heidegger promove o que se conhece por viragem lingüística. A partir de Gadamer, ou adota-se um método, seja ele qual for, ou se encontra a verdade. Não há nenhum método preestabelecido para que se possa tocar a verdade (ainda que seja um tema deveras exaustivo). Respondeu o querido Warat quando perguntado por seu interlocutor sobre qual o método a ser utilizado na mediação: “Que método você usa para trepar?”. Assim como não podemos trepar com o kama sutra embaixo do braço – seria impossível ler e lamber ao mesmo tempo os locais indicados na doutrina do prazer –, não podemos pensar ortodoxamente que existe um método único para a terapia e tratamento dos náuseas da alma, espírito, inconsciente ou coisa que o valha. Não há, portanto, um método. E muita gente teve que pensar para chegar a essa singela conclusão. Com isso não se está a afirmar que o caminho usado pela psicanálise não possa ser exitoso. Tenho certeza que que pode render bons frutos em termos de cura e autoconhecimento. Mas apenas pode! De qualquer forma lembro de Pessoa que dizia com outras palavras que nunca tinha visto ninguém contar em alto tom suas derrotas, vai ver pela força cultural do pai, que não pode abrir mão da armadura e se ver publicamente fragilizado.

Copérnico, Darwin, Sade e tantos outros negados e até queimados por seus contemporâneos. Tidos por loucos. Esse é o problema de pensar além do conhecimento sedimentado. Esse é o mal de vencer o misoneísmo. É por isso que a criatividade é medrosa. A evolução prematura nunca é compreendida no tempo que nasce. Talvez - e apenas talvez, caso contrário incorreria eu no mesmo engano psicanalista - seja isso que ocorra com Jung...como é difícil abandonar as certezas do pai (seja ele o da psicanálise ou aquele que as vezes nos apurrinha a vida em casa). Como é difícil negar o modelo, não é mesmo meus caros freudianos...? Os delimito por vossa própria imposição e, por isso, faço questão de não ser chamado de junguiano.

O caminho da psicanálise é um. Apenas um. E seu problema reside na imposição e não aceitação de qualquer coisa que esteja fora de sua ilha imaginária de sentido. Outros milhões de caminhos podem haver para que se chegue no mesmo lugar, ainda mais quando se tem um cérebro tão limitado a operar nos nossos “crânios científicos”. Basta que se pense – com filosofia tanto melhor – e se esteja aberto à possibilidade que vem da alteridade. Ninguém pensou em fazer uma matéria chamada filosofia psicológica? Cairia bem! Bem demais.

Mas talvez essas palavras já tenham nascido mortas. Talvez mereçam ser abandonadas. Podem ser uma síncope frustrada de um inexperiente que, na verdura de seus vinte e poucos anos, nunca curou e muito menos tratou ninguém além do seu peixinho de aquário. Um serzinho que ganha comida para compensar a solidão de seu pequeno mundo e que esporadicamente habita uma bacia de plástico quando é preciso trocar sua água. Esse meu peixinho tem um grande trauma que se dá pelo fato do aquário ser de vidro: ainda que ele possa enxergar o mundo ao seu redor sempre bate a cabeça quando tenta ultrapassar os limites do seu mundo. Por essa desventura aprisionante do mundo aquático é que, de vez em quando, bato um papo com o meu peixinho para aliviar suas tensões, exatamente como manda a ciência dos peixes de aquário...

2 comentários:

  1. show de bola!!! um pouco pesado e bem direcionado neh, mas show!!!!
    Gostei do peixe!!! perfeito!!!

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  2. gracias Neno! a crítica deve arder...como diria a ciência dos críticos! Abração

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