sábado, 30 de junho de 2012

Zaratustra





Do fundo oco do porão, sussurrou Zaratustra no ouvido de um juiz:
- A arte não gosta de julgar.

E sua voz fez um eco do comprimento de um sussurro.

De barriga pra cima



Você meu mundo meu relógio de não marcar horas; de esquecê-las. Você meu andar meu ar meu comer meu descomer. Minha paz de espadas acessas. Meu sono festival meu acordar entre girândolas. Meu banho quente morno frio quente pelando. Minha pele total. Minhas unhas aceradas aciduladas. Meu sabor de veneno. Minhas cartas marcadas que se desmarcam e voam. Meu suplício. Minha mansa onça pintada pulando. Minha saliva minha língua passeadeira possessiva meu esfregar de barriga em barriga. Meu perder-me entre pêlos algas ardências. Meu pênis submerso. Túnel cova cova cova cada vez mais funda estreita mais. Meus gemidos gritos uivos guais guinchos miados ofegos ah oh ai ui nhem minha evaporação meu suicídio gozoso glorioso.

Drummond, de barriga pra cima.

a pátria caminha




De longe a gente fica perto enquanto sonha.

sexta-feira, 29 de junho de 2012

como uma onda



Helena se foi
Isadora se foi
Renata também
Paula também
A vida vem em ondas,
como o mar.

o verdugo




a hora minuta
a esperança se coça
os dedos correm
o espírito deita
o ladrão rouba de si
o padre desbatina
o presente escuta
...e o verdugo chuta mais um banco pra que outro corpo pese no nada

mata por ofício
puxa o gatilho piamente
caridoso com aqueles que não podem.


mata porque a morte é uma convidada que nunca se atrasa




se a vida precisa dos gondoleiros de Veneza
a morte precisa dos balseiros de almas
as arcas de noé de toda a gente de todo o sempre.

sem coveiros, o mundo cheiraria como uma geladeira fora da tomada.

poder matar é atribuição de antes do que se pode saber.
morrer é a sabedoria que atravessa o tempo.


os verdugos matam,
mas nunca serão torturadores.
os torturadores não têm nenhuma classe.

quinta-feira, 28 de junho de 2012

LOS PAJAROS





?Adonde van los pájaros
Que cruzan
La carretera
Por encima de nuestras estradas obvias?
?Cual es el camino de estos pájaros
Que se van mas allá de la naturaleza
Que se van mas allá de lo que en nosotros piensa
Que se van en el aire de caminos sin trayecto?
Seguro crean los pájaros sus caminos por el vuelo…


?Y las alas de vuelo del hombre?
- Se preguntaba un hombre sin alas.


?Y si los pájaros se van, de donde vienen?
- Aún más se preguntaba el hombre sin alas... 
porque si se le faltaban alas, verdad que era afortunado de preguntas.
todas de moda, con prefumito bueno y foto en espacios sociales.


las preguntas le daban vuelos casi nada, vuelitos no más.
Mientras se enredaba con su rebaño de preguntas, se iban los pájaros.
Volando.

quarta-feira, 27 de junho de 2012

três ou quatro mínimas inconsequentes


imaginura-sugestão de antonieta, a bela.



Os outros em mim são como um domingo.

*

A boa calcinha é a que não se vê.


*

Como não amo ninguém, amo a todos.

*

As pessoas são a imagem que desejam que fale por elas.

*

A maioria dos projetos de monografia são piores que filho da puta em dia das mães.

*

Um esquizofrênico dizia no ouvido de um velho jardineiro: volta, e vai escolher teus discípulos nessa longa estrada da paciência. 

terça-feira, 26 de junho de 2012

à oeste, o sertão





Eu conheço teu pensamento.
Sei o quê se esconde em ti.
Transito vistoso pelo teu vale.
Sei o gosto suspeito da água que bebes.
Tenho intimidade com teus demônios -
e subornei os anjos do jardim imaculado.
Sei como teu abraço permite entrada.
Toco gaita com tuas bocas,
e tuas bicas...assoprando pelas belezas. 
Domino a parcela da tua loucura que não podes dominar por seres,
tu mesma,
dona de ti.
Te tenho porque não te tenho, 
por condenação de um tribunal de nepotistas. 
Por não ser o corpo que carregas,
antevejo a medida do teu arrepio,
isto que a ti é só bruta matéria do instante.
Por não habitar o quarto que dormes,
compreendo os símbolos que trajetam teus sonhos .
Por não ser o verme viscoso que caminha na tua chaga,
curandeio tua dor incurável...
sonegando tuas mãos facultadas a não fazer nada.
Sei as horas.
E também os excessos. 

sexta-feira, 22 de junho de 2012

JARDINEIRA




As melhores flores são as inesperadas.
Todas as mulheres sabem disso.
Flores anônimas ficam cheirando pelo caminho da memória.
Flores anônimas duram mais, não precisam de água.
Sobrevivem sobre o óbvio.
Mulher repudia flores oficiais,
têm o mesmo cheiro florido de coroa de velório.
Receber flores do oficial,
em dias oficiais,
com contraprestações oficiais,
é o que há de mais broxante pra uma mulher.

O melhor vinho - se sabe desde as tavernas -
é o que se bebe com o melhor amigo.
Em copo de plástico,
no bico,
vinho vagabundo,
com rolha empurrada pra dentro da garrafa.
Até os vinhos bons são os melhores quando se bebe com um bom amigo.

O melhor sexo, também nunca é óbvio.
Precisa ser sem camisinha se for de se fazer com.
E com, se for de se fazer sem.
E se quiser ser dos melhores, precisa de um detalhe esparso, 
de alguma magia que não se pode prever.
Não precisa de roteiro ou método, 
nem das variações do kama sutra.
O kama sutra é o anti-sexo.
O melhor tem sempre um detalhe posterior:
um gemido meio "hmmmmm", 
meio oco e 
abafado e 
contido e 
liberto e 
sem treino e sem afinação, 
ou então
um interfone que toca, um cheiro de sei lá o quê, 
um cachorro que para pra ver o chacoalho esquelético dos corpos,
um pé que se aloja, equilibrista, embaixo da coxa,
um pedaço de bunda que fica ralado no tapete da sala.


Os melhores amores, são sempre os impossíveis.
Romeu e Julieta, mares pra atravessar, 
sogras que aporrinham a paciência,
esperas no frio fodido de uma noite de inverno por um aceno entre a cortina e a janela e o desejo. 
Os melhores amores são os distantes, os que custam caro, 
os que levam a alma e centavos da alma e que deixam vítimas nuas e sem celular num mato longe da cidade.
Sem descaminho, perdição e vertigem, todo amor é insosso.
É preciso o peso da cruz para a redenção.
Amor bom é o que precisa ir em ônibus lotado.
Amor bom precisa de complicação, de confusão, 
de coisas pra resolver desde o início, de dificuldade, de conchavos, 
de diz-que-me-diz-que, de imunidade baixa.
O amor de depois se alimenta do drama de antes.


E o depois é uma jardineira que poda as flores num sábado de tarde, 
com luvas amarelas, cabelo preso, pescoço à mostra,
um sorriso lindo que Deus-me-livre, um olhar de cuidado, 
avental  pra aparar o barro,
...e até aquela pazinha pra revirar a terra.

Eu deixo a convenção para a exceção dos domingos.
O cotidiano não me contém.
A vigília me parece pão com manteiga, cerveja sem álcool, doce sem açúcar.
O sonho, porém, me completa porque consegue me desligar.
O sonho é a minha cachaça.

O óbvio está morto,
e no fim da fila da reencarnação.

terça-feira, 19 de junho de 2012

a maior riqueza do homem






A maior riqueza do homem
é a sua incompletude.

Nesse ponto sou abastado.
Palavras que me aceitam como sou - eu não aceito. 


Não agüento ser apenas um sujeito que abre portas, 
que puxa válvulas, que olha o relógio, 
que compra pão às 6 horas da tarde,
que vai lá fora, que aponta lápis, 
que vê a uva etc. etc. 

Perdoai
Mas eu preciso ser Outros.
Eu penso renovar o homem usando borboletas.



Manoel de Barros

terça-feira, 12 de junho de 2012

domingo, 10 de junho de 2012

MÍNIMAS



Renovar as esperanças é descobrir que até o Caos tem uma teoria.


quinta-feira, 7 de junho de 2012

IRRITOS





Jogos de palavras irritam.
Paradoxos irritam.
Gays que mudam de voz irritam.
Metidos a homem que engrossam a voz irritam.
Todo mundo que muda a própria voz irrita.
Esconderijos óbvios irritam.
Exibicionismo de gente feia irrita.
Exibicionismo de gente rica irrita.
Erro de português irrita.
Rinite irrita.
Pêlo em perereca irrita.
Multidão irrita.
Perceber que a montanha é o lugar irrita.
Excesso de postagens irrita.
Falar sempre do clima em elevador irrita.
Gravata apertada irrita.
Reunião de condomínio irrita.
Salto de sapato irrita.
IPTU, taxas e mediocridade irritam.
Falta de ímpeto irrita.
Falta de ânimo irrita.
Falta de tesão irrita.
Sonolência na vida irrita.
Falta de vida irrita.
Saudade irrita, demais irrita.
Silêncio sepulcral irrita.
Assim como dia de finados também irrita.
Gente que encontra culpas externas: irritam muito.
Calor, sono e fome irritam.
O cotidiano, de um modo geral, irrita.
Existir com consciência, de um modo geral, irrita.
Trabalhar sem amor, de um modo geral, irrita.
Trepar sem intimidade, de um modo geral, irrita.
Beber "socialmente", de um modo geral, irrita.
Mulher que só quer viagem e camarão pistola, irrita.
Ter que fazer exercício físico, irrita a preguiça.
Mulher que não trabalha pra justificar o amor que sente, irrita o amor.
Comer alface, barra de cereal e grão de bico, irritam o paladar.
Filas, irritam a paciência.
Café frio, ovo mal cozido e mulher que finge orgasmo, irritam a expectativa.
A preguiça dos outros, irrita a nossa preguiça.
Trânsito e falta de um vaso pra cagar, irritam a ansiedade.
Gente que não se sabe um milímetro, irrita.
Mulher que quer "sair" pra se "divertir", irrita.
Garagem apertada irrita.
Falta de química irrita.
Coca sem gás irrita.
Mulheres de plástico irritam.
Comidas de plástico irritam.
Vidas de plástico irritam.
Jovens que não sabem porra nenhuma, irritam - e a maioria não sabe porra nenhuma!
Empate nos acréscimos irrita.
Calcinha grande demais irrita.
Errar gol na cara do gol irrita.
Manual de aparelho eletrônico irrita.
Economista dando pitaco genérico irrita.
A economia, de um modo geral, é irritante.
A bolsa de valores, de um modo geral e específico, é irritante.
Mulher sem lubrificação ou que exige camisinha, irrita.
Homem com pau semi duro deve ser irritante também.
Bipolaridade e terrorismo juvenil irritam.
Gente medrosa, insegura, cagona e fraca...irrita.
Esse povo Emo, irrita.
Esse povo Tosco, irrita.
Esse povo (quase) Todo, irrita.
As moscas, as formigas, os ácaros, irritam.
As pulgas, as goteiras, os sapatos apertados irritam.
As etiquetas de camisa roçando no pescoço, irritam.
As cuecas muito apertadas e as pererecas pouco apertadas, irritam.
Ônibus com vidro embaçado irrita.
Fedor de peido dos outros irrita.
Ronco alheio irrita.
Canal evangélico de madrugada irrita.
Abstinência sexual irrita.
Distância do que deveria estar perto, irrita.
Prolixos são gente irritante.
Direitos demais são gente irritante.
Nossas próprias porcarias e podridões irritam.
Sexo no sábado de noite, irrita.
Se for com a oficial, irrita mais.
Se for depois da janta, irrita muito.
Se for papai-mamãe, irrita além do espírito santo.
Se esse for o único sexo da semana... aí até a irritação se irrita.
Mulher magra que se acha gorda irrita.
Homem idiota que se acha culto irrita.
Mulher-homem que se acha mulher irrita.
Homem rico que se acha Homem irrita.
Mulher que faz alisamento japonês irrita.
Homem que diz que tem o pau grande irrita.
Fumantes que comem Halls achando que vão ficar sem bafo, irritam.
Quem come de boca aberta, irrita.
Quem chia tomando chá, irrita.
Quem lê Veja, irrita.
Mulher pedindo elogio irrita.
Quem come demais irrita.
Gente que pede pra ninguém se meter na sua vida, é um carente irritante.
"Você não paga minhas conta pra cuidar da minha vida" - uma frase irritante.
"Como teu pau é grande" - outra frase irritante.
"OH, OH, OH, AI MEU DEUS DO CÉU, MINHA NOSSA SENHORA, MEU SÃO BENTO" - orgasmos religiosos irritam.
Música sertaneja achar que é música, irrita.
Bêbado vomitando irrita.
Autoridade que acha que ser altera a ordem dos fatores e do produto, irrita.
Boleiro, político e faxineira...nasceram pra irritar.
Quem quer direitos iguais irrita.
Achar que poesia é sinal de transcendência, irrita.
No fundo, nada irrita mais do que gente irritada.


quarta-feira, 6 de junho de 2012

segunda-feira, 4 de junho de 2012

OLHOS QUE NOS OLHAM



Os olhares que nos olham são tantos.
Na rua, nas câmeras de elevador, no facebook, no Google Earth.
Logo estarão nos vendo no box do banheiro, fazendo a barba,
tocando uma bronha, bolinando nossas mulheres.
Tentaremos o esconderijo, e esconderijo não haverá.
Como um esconde-esconde numa sala sem móveis.
São tantas as medidas e tantos os olhares que nos olham.
Talvez mais olhares que medidas...porque acontece de muitos terem a mesma medida do olhar.
São animais que andam em bando, com medo da solidão lupina.
Então nos interpretam, arbitrariamente - essa é sua delícia e deleite.
Quê mais poderiam fazer, esses que nos olham?
Essas moscas que rondam fraternalmente uma grande merda coletiva.
Mas não se pode negar quando estão certos - tantas são, de fato, nossas interpretações.
Somos tanta coisa, coisa tanta:
um filho da puta, um anjo, um arrogante asqueroso, um potencial namorado.
Os disfarces são a nossa embriagues, nossa mentira posta.
A verdade é como um apartamento limpo.
A gente chega perto e a verdade se esvai pela mácula da presença.
Trazemos pó na sola dos pés,
trazemos a água da chuva que escorre pelo guarda-chuva,
trazemos a consciência que percebe a sujeira que faxineira também viu, e se limitou a ver,
como um médico que vê uma chaga e vai tomar um chá.
A casa, mesmo limpa, só se suja com presença.
Não há faxineira possível para a toda a sujeira.
Então é melhor disfarçar, jogar tudo embaixo do tapete,
virar o colchão com os lambuzos de gozo.
Disfarçar que as formigas vivem conosco,
disfarçar que há um cemitério de espermatozóides pelas mantas,
disfarçar que há um antro de ácaros por todos os lados,
mentir que as pombas cagam nas bordas da sacada.
Quantas são as cagadas marginais que não queremos ver!
Somos como as pombas cagonas, com a diferença que elas cagam sem culpa.
Se ao menos pudéssemos cagar nossa culpa, mas não.
Civilizados, conscientes e metidos a gente nos quis a vida. Ela é uma rainha.
Quê pensam, afinal?
Todo julgamento é uma colcha de retalhos, e não há como saber a cor única da colcha.
Talvez pouco importe a cor, se tudo estiver escuro.
Convenhamos: fechamos os olhos a tudo que importa,
que é pra sentir as cores por dentro, e não com a pobreza dos olhos,
essas lanças afiadas pela natureza humana.


domingo, 3 de junho de 2012

O MEDO DOS QUE TÊM




Pude ver nos olhos de um rapaz endinheirado que bebia com amigos nobres num condomínio à beira-mar. Era sábado à noite. Estavam felizes. Seriam mais felizes depois dos goles. Riam. Mas pude ver o medo no olhar que não olhava pra fora. A olhos falhos pareceriam todos arrogantes, pedantes de nariz-empinado. Mas não. A arrogância que a forma indicava escondia a estrutura de um hospedeiro do medo. Como um vírus da gripe que se aloja num corpo e num espírito frágeis, o medo escolhe os que têm como casa. Depois de ter, como manter? - perguntou em silêncio um medroso. Conquistas terrenas (coisas), emocionais (afetos) e intelectuais (ideiais) - caso algum desavisado pense só nas coisas que pode tocar. 

Pelo medo de perder a saúde: anestesia. Pelo medo de perder o emprego: subserviência. Pelo medo de perder o amor: relações pela metade. Pelo medo de não ter tudo: preferir quase nada. Pelo medo da desobediência: a vitória do "tu deves". Pelo medo do olhar alheio: solidão. Pelo medo de falhar: vícios, viagra e virtudes vãs. Pelo medo de morrer: consumir eternamente. Pelo medo da desordem: a obediência do poder terceirizado. Pelo medo de perder referenciais: castração da autonomia. Pelo medo do novo: o mofo azedo do velho. Uma prece farmacológica a todos esses medos que querem nos tirar a propriedade do corpo e da alma. 

A morte dos mestres,  a morte de quem faça do destino obrigação e a morte de quem não sabe saber que não sabe o destino dos outros. Depois a dor efêmera do desamparo, o deserto, a mão que, mesmo aguardada, não se estende. Logo uma bússola desvairada, um gole de água que mantém sinais vitais, um joelho no chão e grãos de areia na boca seca. O reequilíbrio, o prumo, a sombra ao longe. O sangue forte, a obstinação, a transformação. Onde há dor não há consciência. Onde há vazio não há consciência. Onde havia repetição, há agora criação. A sensação de estar nascendo é a sensação de quem não tem nada. E é essa força que pode contra todos os medos.