Um filme fazia mudar as cores das paredes brancas do quarto. Era sim uma memória doce gravada nos arquivos da alma. Naquelas nobres gavetas dos mais puros sentimentos e sentidos. Talvez este último, pelas peculiaridades ígneas daquela alteridade que tinham com as narrativas que se erupcionavam na tela, tenha marcado com furor magmático a cena daquele teatro noviço. Talvez por isso, o sentido dessa memória tenha tido mais ardência, mais aderência. E morria-se, prematuramente, com a certeza de que as marcas de sentido não seriam cicatrizes de fogo não fosse os anexos do sentimento, afinal, sempre havia sido temerária, na história dos homens e das mulheres que uniam seus breus, a dissociação entre sentido e sentimento. Alijar um e outro: uma cólera!
Vaguidades filosóficas à parte, o filme verdadeiramente ardia; e tudo o mais que orbitasse fora do quarto era puro disparate, com exceção do túnel. As lembranças têm o poder mágico de brincar com o espaço físico, ignoram a impossibilidade do toque. E o feitiço das imagens oníricas fazia a impossibilidade virar tato provável na mais sã ausência. As lembranças das gavetas mais altas dos aquivos mais altos do espírito, têm o poder de delirar diante das ordenações conscientes, essas que escravizam o poder sonhador que brota da sensibilidade e da meditação. Dialogavam no silêncio. Caminhavam juntos na solidão e na alternância dos passos próprios. Sentiam-se nas memórias fugidias da luz lunar que aproximava suas mãos quentes nas noites em que a lua pactuava seu protagonismo com as nuvens para satisfazer os afagos daqueles amantes. Fazendo desmoronar o falso castelo de certezas físicas, haviam criado um túnel mágico que ligava suas ausências. Havia um relacionar-se às escondidas, furtivo. Se encontravam no túnel encantado todas as noites. O túnel tinha todas as cores que o mundo não conhece, tons inimagináveis e completamente extasiantes. Partindo da janela de cada quarto do mundo, se encontravam no meio da noite e no meio do túnel para fazer amor. E lá se deleitavam diante da noite clara da lua, em cima dos sorrisos que o oceano lhes acenava. Viam os abanos satisfeitos dos aborígenes da Ilha da Madeira e das demais ilhotas da redondeza. Nas noites sensíveis, se encontravam no instante sagrado do túnel que era só deles. Em paz com seus corações e com o mundo.
Mas o filme que pintava as paredes era uma lembrança cheia de carícias. E lembrar era possível. Quando se encontravam no túnel mágico, era possível até lembrar das partes do filme que não tinham visto. Presença nunca tinha sido condição para sentir. E a lembrança do não-visto era também de todos os instantes, dos centímetros de pele e átomos de cabelo, gravados a fogo. Que toda a água do oceano não poderia apagar. Quando se encontravam, a humanidade se colocava em paz, os tempos do mundo se paralizavam e os anjos exterminavam todas as chances de separação dos sentimentos e dos sentidos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário