quarta-feira, 30 de junho de 2010

Marc Chagall

Para os desassossegados as livrarias e os sebos são uma espécie de local sagrado da culpa. Ali, a culpa reina tirânica com todos que se atrevem às aventuras de passear entre as lombadas dos livros. A culpa é tão onipresente que acaba sendo o perfume agridoce (mais agri que doce) de todo leitor comprometido. Claro que aqui não se está a mencionar o esporádico leitor-consumista que, em verdade, não vê essas capelas de livros como uma extensão sua ou de sua casa. Cada capa promete uma verdade e, por ser da natureza dos desassossegados a pretensão de tocar a verdade com a mão, a incapacidade de apreensão das verdades que se escondem por baixo das capas, derrubam todo passeador de livrarias e sebos ao inferno das próprias limitações.

Pessimismos à parte, é nesse reduto da angústia cognoscente, nessa atmosfera da sensação intelectiva do pau pequeno; que é possível encontrar paixões à primeira vista. Para quem acredita em destino, Deus ou coisa parecida, pode-se pensar que é o livro que nos olha, e não o contrário. E se nos olha, nos quer. E se nós também o queremos, paixão na certa! E se nos quer de verdade, lá se vão nossas mãos - aventureiras das verdades - a desenterrar as páginas sem nem mesmo sujar as unhas. Toda essa baboseira preambular para dizer que num passeio despretensioso pela livraria, descobri esse fabuloso pintor (deve ser até primo-irmão do Luis Fabiano Fabuloso...) que nasceu na Bielorrússia (em que inferno será que fica esse país, se é que ainda existe...). Marc Chagall, que me diz a wikipedia que morreu em 1985 na França (o túmulo pelo menos eu sei apontar no mapa). O cidadão existe e desexiste a tanto tempo e só agora eu, que perambulava angustiado pela livraria, o descobri. E a angústia foi-se embora pelos instantes. E voaram meus pássaros da arte. E uma japonesa gostosa massageou meus olhos...Eu também vi outro livro lá que dizia que as japonesas gostosas são campeãs na arte da massagem! Bom apetite!

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Sala secreta


O grande mistério da vida é pensar no que(m) haverá quando chegarmos na sala secreta de nós mesmos. E que desculpa esfarradapa daremos para explicar tamanho atraso...



PFF

O Direito no País das Maravilhas - Parte 2


Para fazer as pazes com suas próprias sombras – que na psicologia analítica de Jung é representação do plano inconsciente –, Alice precisa dar uma resposta a realidade e, ao mesmo tempo, convencer-se com suas respostas. Mas para construir essa autêntica realidade, precisa atirar-se no mundo irreal, na sua própria reserva selvagem (Warat). E segue os vestígios de irrealidade que aos poucos contestam os cristalizados conceitos impostos pelo seu meio. O coelho falante de vestes elegantes que perambula entre os jardins, é um convite ao inconsciente. Um chamado às verdades escondidas nos sonhos, ao que Freud bem sedimentou na história da psicanálise como o caminho por excelência para o inconsciente, ou, a via régia para o inconsciente. Alice, ao buscar a fantasia e o simbolismo onírico – uma vez que a história se passa dentro de um sonho –, transgride os padrões da sociedade burguesa e burocrática da Inglaterra do século XIX da qual pertencia.

O coelho branco se perde na escuridão de um buraco escondido no jardim, e incita Alice à descobrir-se, a dialogar com seus territórios desconhecidos. A aparente fragilidade da menina de cabelos louros é suplantada pela coragem: Alice se atira no invisível, no breu de uma extensa queda, uma queda que não terminaria nunca? O coelho falante, a escuridão, a interminável descida, a deformidade das imagens em relação aos traços preestabelecidos da razão; todos esses elementos da narrativa revelam indícios de que é nas profundezas de si mesmo que Alice se lança. Sua queda é a abertura de um caminho interior, que busca responder as angústias que a estreiteza do estado de vigília não pode oferecer.

Esse desapego de Alice à racionalidade de traços predestinados é bravio, corajoso. E é essa coragem que o surrealismo, enquanto expressão do selvagem e do onírico, reclama do Direito. O movimento surrealista ganha relevância nessas linhas porque pode ser considerado um desdobramento artístico e literário das revelações de Freud sobre o inconsciente no início do século passado. Ainda que tenha mantido alguns vícios do paradigma científico-cartesiano nas suas teorizações sobre o inconsciente e os métodos psicanalíticos, o mérito de Freud é imorredouro. Foi por meio do estudo das neuroses de suas pacientes que, pela primeira vez, revelou que toda ação consciente estava ligada a uma raiz de natureza subliminar. A instauração da psicanálise freudiana foi marco de um movimento ruptural entre o antigo casamento das verdades científicas com a lógica cartesiana que, muito antes de Freud, já se havia iniciado.

O físico estadunidense Fritjof Capra aponta que para formular uma teoria científica, a psicanálise freudiana se valeu dos preceitos da física clássica newtoniana. O autor repete as palavras do próprio Freud: os analistas são, no fundo, mecanicistas e materialistas incorrigíveis. As estruturas psicanalíticas, desse modo, restam amarradas ao paradigma racional-científico, uma vez que não dão conta de superar o esquema sujeito-objeto próprio da filosofia moderna. A teoria da personalidade de Freud se apóia em seus três elementos nucleares: id, ego e superego, todos vistos e nominados pela própria teoria como “objetos” internos, localizados e dispostos no espaço psicológico. O aspecto dinâmico da psicanálise, tal qual o da física de Newton, consiste em descrever como os “objetos materiais” interagem através de forças que são essencialmente diferentes da “matéria”. Essa umbilical relação entre psicanálise e física clássica torna-se flagrante quando consideramos os quatro conjuntos de conceitos que são base da mecânica newtoniana: 1) os conceitos de espaço e tempo absolutos, e o de objetos materiais separados movendo-se nesse espaço interagindo mecanicamente, 2) o conceito de forças fundamentais, essencialmente diferentes da matéria, 3) o conceito de leis fundamentais, descrevendo o movimento e as interações mútuas dos objetos materiais em termos de relações quantitativas e 4) o rigoroso conceito de determinismo e a noção de uma descrição objetiva da natureza, baseada na divisão cartesiana entre matéria e mente. Esses conceitos encontram correspondência com as quatro perspectivas básicas da psicanálise: topografia, dinamismo, economia e genética.

É na tentativa de superação das barreiras impostas pela cultura, pelo sujeito cônscio escondido no cogito e pela moralidade moderna, que a explicitação do lado humano recluso foi paulatinamente pintalgada na consciência histórica dos indivíduos. É possível afirmar que o desenvolvimento intelectual e emocional fomentado pela literatura romântica, bem como as tentativas de ruptura em relação à arraigada moralidade cristã – ainda muito presente na sociedade européia do século XIX –, foram os grandes estímulos para que o aprofundamento humano pudesse ser colocado como algo a ser pensado pela ciência. Se, de um lado, Edgar Allan Poe (1809-1849) e sua literatura fantástica, podem representar a emergente profusão literária da modernidade, de outro, a abertura da literatura erótica, fundamental para apoiar mais tarde Freud, deve muito ao ideal libertino de Sade (1740-1814). Nessa mesma esteira, o surrealismo infantil de Carroll com o mundo das maravilhas de Alice, é apenas mais um dos tantos aportes literários e culturais que colaboraram, ainda que indiretamente, para a abertura histórica e coletiva do discurso do inconsciente.

Na esteira da metafísica clássica, mesmo tendo posto em cheque a moralidade cristã européia com o desmascare das pulsões sexuais, especialmente com a concepção edípica; Freud seguiu preso à armadilha objetificante do cientificismo. Formada a relação analista-paciente e a proposta de cura a partir da autodescoberta por meio do outro, o paciente passa a se tornar um “objeto de análise”, um objeto a ser desvelado, confirmando a instrumentalização da metódica freudiana. Para o êxito clínico, alertava Freud que era necessária uma reconstituição da história do sujeito, recomendando uma atenção flutuante do analista a ponto de não privilegiar a priori nada na escuta do paciente e a fim de repelir o risco de uma interpretação do analisando a partir de suas preferência pessoais e de seus conceitos prévios, ainda que meramente teóricos.

É notável a proximidade entre os já apontados vícios do Direito que fomentam o atual discurso crítico e a teoria freudiana. Tal qual a psicanálise, também o Direito objetificou seu discurso. O positivismo jurídico – promotor da aplicação de um método dedutivo de aplicação de regras – não foi capaz de separar faticamente o Direito e a moral. O Direito, uma vez identificado com a lei positiva, sucumbiu diante de sua natureza rígida e objetivista, acabando sacrificado axiologicamente, e mantendo-se alijado da justiça (cisão entre ius e lex). Esse equívoco do positivismo jurídico determinou a aberração virtual da criação de dois mundos: o “mundo real” e o “mundo jurídico”. O método no Direito manteve distanciada a “verdade no Direito”. Do mesmo modo que sofregamente tenta-se sedimentar a noção de cooriginariedade entre o Direito e a moral, superando o positivismo para promover o movimento neoconstitucionalista; também na psicologia, insiste-se na manutenção de uma teoria dogmática da psique humana e no método psicanalítico iniciado por Freud.
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CONTINUA

sexta-feira, 25 de junho de 2010

Pedaços de amor



São pétalas de flor
Todas tuas gordurinhas.
Pedaços do teu corpo-amor,
Delícias, gostosurinhas.
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PFF

Sempre que acaba o caminho: luto


Pasmo sempre quando acabo qualquer coisa. Pasmo e desolo-me. O meu instinto de perfeição deveria inibir-me de acabar; deveria inibir-me até de dar começo. Mas distraio-me e faço. O que consigo é um produto, em mim, não de uma aplicação de vontade, mas de uma cedência dela. Começo porque não tenho força para pensar; acabo porque não tenho alma para suspender [...]


Fernando Pessoa, Aforismo 152 do Livro do Desassossego, o antilivro!

quinta-feira, 24 de junho de 2010

Diálogos Deleuze-Parnet



Se acabaron las máquinas binarias: pregunta-respuesta, masculino-femenino, hombre-animal, etc. …..Una buena manera de leer hoy día sería tratar al libro como a una canción, ver una película, un programa de televisión; cualquier tratamiento especial del libro corresponde a otra época. Las cuestiones de dificultad o de comprensión no existen. Los conceptos son exactamente como los sonidos, los colores, las imágenes: intensidades que nos conviene o no, que pasan o no pasan. Pop’filosofía. Nada que comprender, nada que interpretar. Un encuentro quizás sea lo mismo que un devenir o que unas bodas. Encontramos personas, movimientos, identidades, ideas, acontecimientos. Y aunque todas estas cosas tengan nombre propio, el nombre propio no designa ni a una persona, ni a un sujeto. ¿Designa un efecto o un zig-zag, algo que pasa o que sucede entre dos?. Es lo mismo que con los devenires; no es que un término devenga el otro, sino que cada uno encuentra el otro, un único devenir que no es para los dos, porque nada tiene que ver el uno con el otro sino que está entre los dos, que tiene su propia dirección. Ni método, ni reglas, ni recetas, tan sólo una larga preparación...


Extraído do blog "Deleuze" de Fernando Reberendo.

Voar



Uma sucessão algo longa de porquês,
nos lança inteiros na liberdade plena do nada!
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PFF

quarta-feira, 23 de junho de 2010

Contos Imediatos XXVI




TRADUZIR POEMAS DE AMOR

- Para quê esses poemas tantos de amor? Não os posso compreender...
- Eis o antídoto: se estás só, os poemas de amor são para sentir e não para compreender; caso contrário eles são para com-prender-se.


PFF

Chapéu personalíssimo



A RATAZANA

Vi logo cedo, saindo do esgoto,
a ratazana que copiava meu modo de andar.
Flertando com o equilíbrio,
até sobre duas patas tentou ela caminhar.
Fitei-a irônico, em silêncio a indagar:
Pobre ratazana, não terás tu natureza própria?
Teu estado fétido e copista,
a alguém vai interessar.
Se não quiser pagar direitos de autor
- porque se não consta nos códigos,
digo eu que há autoria também em ser -,
pelo menos pague um cafezinho,
por pura gentileza ou elegância, sem mais.
Só o que peço é um cafezinho,
pode ser expresso ou pingadinho.
A você que tanto me reproduz!
E siga sobre quatro pezinhos,
no meio do lixo, da podridão e do pus.
Só não esqueça o cafezinho.
Posso sorvê-lo de pé,
eu que ando tão devagarinho.


PFF

terça-feira, 22 de junho de 2010

Sonho: a via régia para o inconsciente cão

A pergunta que não quer calar: terão os cães também um inconsciente coletivo? Pergunto porque a "coisa" que corria atrás do nosso querido vira-lata devia ser um monstro muito assustador, de outra dimensão provavelmente...

Livros da terceira nobreza: ganhamor



DAS TRÊS FORMAS DE SE DAR UM LIVRO DE PRESENTE

O livro é um presente nobríssimo por natureza.
Se quem recebe o ignora ou desagrada-se,
dificilmente serve para ser conviva de quem o deu.
É bom meio de reconhecer afinidades, o presentear com livro.
Mas dentro desse universo há, ainda,
uma nobreza que se eleva além do nobríssimo natural.

A primeira nobreza é a corrente:
Vai-se à loja, elege-se, compra-se e entrega-se o livro.
Novíssimo. Perfumado.
Naturalmente nobre!
No livro dado,
o universo que o presenteador
imagina conexo com o do agraciado.

A segunda nobreza é menos constante:
O presenteador elege,
dentre os livros da sua própria estante,
um especial, que em geral carrega toda a sua alma
nos rabiscos, sublinhados e orelhas viradas.
Entrega a transformação sofrida por seu próprio mundo,
na experiência que teve com o livro.
Fraternalmente,
despede-se de um pedaço seu para acarinhar outro.
Altruísta, entrega o livro,
suas personalíssimas impressões do livro
e o estado de não ter mais o livro que tinha.
E que nunca mais virá a ter.
(Não se pode voltar a ser o que se era).
É fidalgo dar um livro próprio a alguém especial,
mas nunca há, um “nós” no gesto da entrega.
Por isso que esta, a terceira nobreza, é a completude,
a total alteridade de dar um livro.

A terceira nobreza é a maioral:
O presenteador vai à loja com seu agraciado na cabeça.
Elege um livro que imagina o agradará. Mas não só.
É importante que o livro também apraza o presenteador.
É um livro que fala de ambos,
do momento de ambos
- sejam amigos ou amantes.
E o nobríssimo presenteador
ordena que não se embrulhe o livro.
E o lê todo.
E o manipula.
E o faz bula.
E rabisca.
E faísca.
E petisca.
E sublinha.
E desalinha.
E em cada linha.
Comenta.
Livro virgem não contenta.
E faz desenhos bobos.
Que são mesmo bobos.
E faz notas de rodapé.
Pensando no que pensará
aquele(a) mané.
E faz pirilimpimpim.
Quase esquecendo do seu mim.
E deixano o livro todo assim.
Deixa todas impressões que tem do livro,
como na segunda nobreza,
agora direcionadas especialmente
para o feliz ganhador.
Que é – nessa difícil arte de receber presentes –
o mais feliz ganhador,
mas que em verdade,
ganhamor.
PFF

segunda-feira, 21 de junho de 2010

O Direito no País das Maravilhas - Parte 1


Alice, assim como os juristas, mastiga uma angústia diária. Começa sua fábula aborrecida, angustiada e cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer [...] Alice mal podia refletir (qualquer remissão ao azedo “operador irreflexivo do Direito”, que simplesmente manuseia uma máquina que desconhece, é mera coincidência) já que o calor a fazia se sentir burra e sonolenta.

A angústia que mastiga Alice não pode ser desfeita nem pela maceração dos dentes nem pelas enzimas salivares. A angústia dela é a mesma que acompanha a história da civilização: ela também quer descobrir verdades, as suas próprias verdades. Vê-se envolta em um sublime terremoto particular, em que os mais suaves sismos se transformam em grandes movimentos ctônios em seu interior. Buscar respostas é, então, seu objetivo (in)consciente. A Alice de Lewis Carroll e o Direito se reconhecem, desde já, na intimidade que têm com a (sensação de) angústia .
No Direito, esse desassossego já vem de há muito apontado pela doutrina crítica. Cansativamente narradas, as angústias jurídicas pairam, com mínimas variações, sempre sobre conhecidos problemas e fracassos. (1) Fracasso do positivismo-lógico-dedutivo-apriorístico, que afasta jus e lex sem condições de responder a efervescência pluralizada que é gritada nas ruas ; (2) monarquia de uma instrumentalidade burocrática, que acaba por retardar a solução dos problemas no único mundo que existe, aquele que está fora dos manuais de Direito que ainda separam o mundo em real e jurídico; (3) hipocrisia do discurso em torno do “princípio da segurança jurídica”, fórmula institucionalizada de curar o misoneísmo próprio da natureza humana; (4) esquecimento do caráter tópico-problemático do Direito, em que reinam decisões dadas de antemão com a cultura das súmulas e, por fim, (5) o estado de natureza (Hobbes) ou o caos interpretativo gerado pela produção arbitrária das decisões. Todos esses fios condutores compõem o que se poderia chamar de top five em matéria de discurso crítico do Direito contemporâneo. Afinal, desconstruir é algo que nunca fica démodé em todo discurso que pretende criticar...

A vida de Alice, tal qual a vida do Direito e dos juristas engravatados (em época em que o já tórrido calor brasileiro entre trópicos é temperado com os fenômenos niño do tempo), é burocrática. Diante desse sufocamento que alija tanto Alice quanto o Direito das verdades capazes de curar suas angústias, é preciso indagar: como superar o oceano de incertezas que separa Alice dos continentes que guardam suas próprias verdades? Como fazer com que os juristas des-cubram as entrelinhas capazes de fazer brotar as novas verdades que amenizarão as angústias do Direito?

Para os mais ortodoxos – e são tantos no Direito – pode parecer uma grande loucura falar da intocável “ciência jurídica” por meio de uma fábula infantil do século XIX. Direito e Literatura, por si só, é das coisas que não entram bem na cabeça dos juristas mais tradicionais . Mas como esquecer da literatura no Direito, ela que é um esforço para tornar a vida real, a única forma de tornar transmissíveis as impressões do mundo, diz Fernando Pessoa . Aos que a rejeitam no Direito, sequer é possível culpá-los, afinal, quem poderá explicar de onde brota a sensibilidade? Ou será que ela brota em todos e só depois é que somos adestrados/domesticados pela moral, os (bons?) costumes, a lei e o Direito? Educados para poder sermos partícipes da fábula real das certezas... Seja como for, é da natureza da tradição negar o novo. Lá nas terras do Rio Grande do Sul de onde venho, os Centros de Tradição Gaúcha – CTG, não aceitam que homem use brinco na orelha, já que o adereço é uma insígnia do feminino e, portanto, é antidemocrático no microuniverso gauchesco que se rasgue a tradição... Antes, melhor, se rasgue a orelha do desgraçado que ousa tal petulância...

Aos juristas medíocres (sem qualquer tom pejorativo aplicado), essa subversiva tentativa de caminhar entre a Literatura e o Direito é vista como loucura, ingenuidade. Tudo deve ter utilidade prática, dizem. Esquecendo-se de que as “utilidades” são tão domesticadas quanto eles mesmos. Falar de loucura é importante para promover interlocuções entre o Direito e a fábula de Alice, especialmente quando se tem como pano de fundo o surrealismo. Não sem razão que é de loucura que são comumente qualificadas todas as manifestações surrealistas...Que o diga o bigode espetado de Dalí ou os dois maridos da ciência jurídica criados por Warat . Entender a falta de espaço do surrealismo no mundo contemporâneo, tão escravo da racionalidade, é ter a certeza de que Dalí, se vivo fosse e motorista quisesse se tornar, seria reprovado nos testes “psicotécnicos” das auto-escolas. É comum em tais testes que se solicite ao candidato que desenhe um homem atrás de uma árvore. Avalia-se a existência de lógica na produção do desenho: se há um chão que sustente os elementos, se, de fato, o candidato desenha uma pessoa, já que se é para estar atrás da árvore não pode aparecer no desenho etc... Dalí desenharia um pênis no lugar da árvore, um céu no lugar do chão e um cachorro com asas no lugar do homem...Eis um pequeno exemplo de que a genealidade – e sua produção – não tem espaço no mundo sufocado pela lógica, na sociedade hiper-racionalizada, para usar a expressão de Gadamer.

Quase três séculos antes de Alice se eternizar na literatura mundial pelas mãos de Carroll, Erasmo de Rotterdam, em meio à efervescência do renascimento europeu no século XVI, escreve Elogio à Loucura , tornando-a, ao mesmo tempo, personagem e narradora de seu relato. A Loucura, então, explica que está presente desde a mais pueril tolice até o absoluto desvario. Que todas as ocorrências do mundo são motivadas por ela e suas infinitas facetas. Atrás de toda razão, há uma desrazão, diz Erasmo. A loucura ganha aqui amplitude e passa a ser compreendida também como a adesão consciente ao comodismo, o ingênuo comodismo. Essa acomodação, essa paralisia, essa inércia diante do posto, são também chamadas por Erasmo de loucura. É contra essa acomodação perniciosa do Direito, que o mundo fantástico de Carroll pode servir de caminho. Um caminho que desembocará na proposta do surrealismo jurídico propagada por Luis Alberto Warat. Em uma dessas tantas faces, ser louco é pretender manter a sensatez em um mundo de loucos que não se sabem loucos. É também, repita-se, uma pitada de ingenuidade consciente. Ou, pergunto, não existe uma gigantesca e sublime ingenuidade, uma loucurinha amena dos juristas que ainda acreditam que a vida está contida nos Códigos? Ou não há um consenso ingênuo e consciente de que é o Caos o grande rei dos Tribunais? Esse direito dos Tribunais que muda tal qual a direção dos ventos e as vontades soberanas (vide caso Tofoli...).

É por acreditar que toda modificação carece do abandono do lugar comum e da vitória sobre a qualidade misoneísta – o velho medo do novo e do desconhecido – que a analogia de Alice é trazida para os engessados espaços do Direito. E a loucura sensível do surrealismo é o caminho para que a criatividade – somente ela – nos mostre a possibilidade do novo. O novo que é urgente no Direito. Philippi , em metacomentário à Fenomenologia do espírito de Hegel feita, antes, por Lacan, sentencia: a única saída para superar a agonia das coisas que se recobrem, das verdades que nunca se deixam tocar, é oferecer-se como objeto de sacrifício. É assim que aqui se quer abanar em despedida ao Direito. Sacrificando-o. Deixando que padeça até que pingue a última gota de sangue e de consciência. Que se faça morte de sua morbidez. E que, ao final, se amenize a angústia.

É essa amplitude que vai além da morte, que a escuta surrealista do Direito reclama. Para deixar que a ingenuidade se dê apenas em pitadas como quer a Loucura de Erasmo, mas que não reine tirânica e cega diante das sombras do Direito. Que se abra o caminho no País das Maravilhas do Direito. Que se desvele a imagem ocultada pelo espelho. Que seja a loucura o caminho em direção ao “estado do absurdo”...
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CONTINUA...

sexta-feira, 18 de junho de 2010

José, os olhos eternos



A LÁPIDE INVISÍVEL DE SARAMAGO

Os olhos nunca envelhecem.
Simplesmente desligam-se, de supetão.
Só os pássaros sabem o que lhes acontece!
Que se vão iluminar em outra estação.


PFF

Para lembrar



"O mundo fica ainda mais burro e cego hoje."

Fernando Meireles sobre a morte de Saramago

LUTO: Saramago é saudade



A sexta-feira tinha começado ótima. Chuvinha fina de inverno em prelúdio de final de semana me é sempre agradável. Próximo da doce melancolia que me apraz. Banho tomado, barba feita. Um café com cueca virada (que é uma massa com açucar lá do sul para os leitores que não são de lá). Como gosto de futebol, vi uns trechos da derrota da Alemanha; fiquei feliz já que Brasil e Argentina, os times que torço, vão bem na Copa. Vim ao escritório. Completamente em paz com meus infernos. Li alguns emails e entrei no site da Globo para confirmar a derrota dos xucrute com chopp, eis que só não caio da cadeira porque ela é das firmes.


O site estampa a triste notícia da despedida de José Saramago: Morre, aos 87 anos, o escritor português José Saramago. E depois sou eu o pessimista. Tristeza, tristeza, tristeza! Um exército que já é tão pequenino, perde um de seus grandes. Até simpatizo com o pessoal do espiritismo e da conscienciologia; mas seja lá em que dimensão o Saramago vá escrever, fato é que o perdemos. Ficam os livros e os escritos todos, gravados a ferro na história da literatura. Mas o que se perde é a visão de Saramago do mundo a partir de hoje. Nas notícias de amanhã, haverá o oco. Para aonde irá a lucidez, ácida por pura necessidade, do nobre morador das Canárias? Tempos atrás vi uma reportagem belíssima da morada de Saramago e Pilar nas ilhas Canárias. Vi ali a vida que sonho. Um retiro, uma vida simples, uns livros e um amor. Saramago escreveu a homenagem de amor mais absoluta que já li, quando dedicou algum livro (não lembro qual) para o seu amor crepuscular: Para Pilar, minha casa (putaquepariu!!!). Só duas palavras! Lá no Rio Grande isso é dar nó em pingo d'água.


O primeiro livro que li dele foi justamente o mais conhecido, Ensaio sobre a Cegueira, que litaralmente furtei da minha mãe. Livro eu furto mesmo! E não é só de gente da família não. Depois de lá vieram outros tantos. Ainda faltam outros tantos (ainda bem!). Quisera a fábula de As intermitências da morte, pudesse valer para gênios como ele. O livro conta a história de um país em que as pessoas param de morrer de uma hora para a outra. A explicação se dá na segunda metade do livro. Eis que a morte, personificada em uma bela mulher se apaixona por um músico. A paixão da morte a impede de matar seu objeto de desejo. Esse livrinho pouco comentado dele é para mim uma pedra no sapato. E já gastei muito fosfato refletindo sobre essa fábula de Saramago. Quisera a morte inventada pelo próprio Saramago, tivesse se apaixonado por ele...Ah Dona Morte, vá matar gente em outro lado! Com essa péssima notícia, que banhou de negro minha sexta-feira, lembrei de um conto da Clarice Lispector em que ela narra que ia feliz, linda, otimista e bela pelas ruas do Rio de Janeiro, até que um rato esbugalhado lhe atravessa o caminho e a faz cair das nuvens que estava. A vida é assim mesmo. A partir de hoje falar-se-á, Saramago era isso, era aquilo, era aquel'outro...Aqui Saramago é saudade!

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Reclamar de tudo e qualquer coisa





RECLAMO

É discurso corrente:
Não se pode reclamar da vida.
Mesmo que ela seja vagabunda, bandida.
Não é a autoajuda que mais vende,
mas a filosofia da conformação ai contida.
Não se pode reclamar da vida?
Discordo!
Bom... eu sempre discordo.
Não estou de acordo nem com
a natureza da discordância.
Sou discordante nato.
Contrariador: minha segunda profissão,
mesmo sem ver exata uma primeira.
Contrario-a-dor.
E por isso, reclamar é preciso.
Para mover-se, ora!
Para que se abandone a paralisia,
a languidez natural das horas.
Para que se abandone a apatia,
com um soco no fígado da conformação.
Move-te da cólera morta do todo dia,
da rotininha, do cotidiano, do dia-a-dia.
Enfie no rabo as engrenagens,
És tu - acaso me nuble a consciência -
tão microscópico quanto o mundo
do relógio que te pulsa o pulso?
Enfie no rabo – seja lá de quem for –
as linhas retas, a postura, a moral morta.
Reclame mais!
E move-te!
“Estacionar” é verbo
exclusivo dos veículos.
E “prostrar”, provavelmente,
exclusivo das latas-velha.
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PFF

quarta-feira, 16 de junho de 2010

As três chamas do grande amor

Compartilho esse belíssimo vídeo indicado pela querida amiga Ju Valério! Temos dissonâncias que são meramente conceituais, nominativas. Deus é Amor? Amor é Deus? Qual a crença que defendemos? Nada disso importa, porém. Importa que o tema e tudo que o cerca é grandioso, quanto a isso não há dúvida. Chamamos de nomes diferentes as mesmas coisas, ou melhor, os mesmos sentimentos. A linguagem sempre cede com o sentir, com as sensações que experimentamos dentro do peito. Por isso que o amor é indescritível e nós, os atrevidos que tentam traduzí-lo em letras aglutinadas, acabamos pequenos demais diante de sua imensidão. No fim acabamos concordando Ju. No silêncio do nosso abraço.

Com-senso



Quem cala consente.
Quem casa-com, outro sente.
Quem em casa sente, cala.
Quem na cama cala, mente.
Quem cala sempre,
nunca casa, sozinho sente.
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PFF

Tijolando


"Não enfrente monstros sob pena de te tornares um deles.
Lembra-te: se contemplas o abismo, a ti o abismo também contempla."


Friedrich Nietzsche
(dica do blog Cultura do Controle)

terça-feira, 15 de junho de 2010

Para o sexo a expirar


Amor, amor, amor - o braseiro radiante
que me dá, pelo orgasmo, a explicação do mundo.
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Carlos Drummond de Andrade, do livro O amor natural

Ecos de Curitiba II



A vida parece mostrar que é da natureza das coisas valiosas o velamento. As jóias da vida já nascem craques na arte de ocultar-se. Que o digam as pérolas de luz e circunferência perfeitas do mar, ou, o pó de ouro encalacrado nas minas tantas do mundo. O velho e sábio essencial invisível aos olhos de Exupéry.
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Nas jornadas de Direito e Psicanálise do gelado final de semana de Curitiba, as incontáveis interseções feitas pelos grandes currículos ficaram à margem. Impressão no mínimo paradoxal para quem encontrou justamente na margem do caminho, aquele que compôs e cantou o grande refrão da música que foi o encontro. Albano Marcos Bastos Pêpe, aqui desde já Albanito, o escrivinhador do sublime, ou melhor, o inquilino do sublime, para lembrar Oto Lara Rezende. Eis que do sublime não existem proprietários.
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Albanito é um marginal, um marginalizado, mas por opção própria. Por conta e risco da vida que a ele não leva risco algum, afinal, olhar a vida com beligerância é das grandes miopias a se corrigir na vida. Dentre tudo, Albanito foi a mais agradável surpresa. E não os dizeres da palestra que não pude ver (a vida contemplativa ainda não me pertence!), mas o sublime exato do olhar e a mansidão da existência sublunar, uma de suas tantas felizes expressões. Aliás, não causa espanto que estabeleça a energia lunar como uma referência do seu próprio existir. Albanito, dentre tantos “cobras”, mostrou – porque à ele não cabe ensinar, senão apontar – que da vida se pode cobrar apenas a poesia autêntica de viver saborosamente, ofertando o afeto como tempero geral para os pratos da vida, sejam eles doces ou salgados. Com certeza é um acólito da sábia canção de Fito Paez, pois que a ele le gusta estar al lado del camino, fumando el humo mientras todo pasa, e a obviedade constante da margem é mais divertida e também custa muito menos. Menos dinheiro, menos angústia, mais sabor, mais saber (me ensinou a raiz etimológica gêmea entre saber e sabor, putaquepariu!).
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Albanito resolveu abraçar a doce melancolia e solidificar suas próprias sombras. Integrou suas interioridades (teria alta imediata se fosse paciente do Jung), acolhendo com carinho os porquês do amigo Warat para traçar seu próprio Caminho do Elefante, que abandona a manada no crepúsculo da vida em busca de seu personalíssimo itinerário. Albanito escolheu a serra central do Rio Grande do Sul em Itaara e a contemplação. Venceu o narcisismo colérico da academia. Está nas montanhas, sem ser das montanhas. Vive de estados, enfim. Está perto das nuvens celestes. Mas sem deixar de estar com os pés plantados na raiz terrena que o leva aos ctônios de Gaia e de si mesmo. Albanito é das consciências mais livres que cruzei durante essa passagem. Não totalmente livre porém: caminhar é um estar em busca de tudo, inclusive da própria liberdade. Ele pode tocar mais a liberdade que a maioria, não resta dúvida. Mesmo dispensando o papel e sendo assim tão mais livre, está escravizado: a ser mestre daqueles que o percebem e sentem, mas um mestre que anda ao lado. Ao lado do aprendiz. Ao lado do caminho.

segunda-feira, 14 de junho de 2010

Ecos de Curitiba I




"Pensar me dá um tesão danado"



Do novo e nobre amigo,
Albano Marcos Bastos Pêpe

quinta-feira, 10 de junho de 2010

Imposição (senso) comum


Visitei o blog da Luiza (Mil faces de Luíza) e lá encontrei o que já estava esperando: uma reclamaçãozinha dos solteiros (separados, desquitados etc.) pela chegada do dia doa namorados. Pelo teor do post, porém, penso que o caso dela seja diferente. Não a reclamação corrente do não tenho namorado(a) e vou ter que passar sozinho(a) o dia 12, mas uma reclamação talvez saudosa, de quem passou um tempo grande acompanhado(a) e agora vai experimentar - de novo - o estar só (solidão é uma palavra que as pessoas ainda evitam apesar de ser pra lá de temperada). Se eu estiver enganado pode me corrigir Luiza.

Lembro que antes de ter as namoradas que já tive, lá pelos idos de 1990 e alguma coisa, eu e meus amigos combinávamos com outras "amigas" solteiras de jantar em algum restaurante no dia dos namorados. Claro que a gente tentava resolver dois "problemas" de uma só vez: curar a solidão cruel do dia 12 e, se o vinho fosse forte e a nossa retórica apurada, sair da empreitada de mãos dadas. Afinal, já naquelas épocas, meio sem saber, a gente só queria mesmo era uma menininha para amar e levar no cinema. Lembro que eu e o Vini nos irritávamos com aqueles casais em pleno amor nas salas de cinema. A gente queria umas meninas que não nos queriam, desde aquela época gostávamos de coisas impossíveis. E naquela época a gente ainda amava "platonicamente" meninas que nunca foram nossas. E, lembrando de tudo hoje, vejo como tristeza a perda da inocência que tínhamos. Alguns "junhos" o plano funcionava, em outros não. Nos que não, ficávamos tristes! E como o Vini nunca bebeu, nem encher a cara dava.

Mas não era isso que eu queria falar. Mas da burocratização acrítica dos "estados" incluídos, dessa tentativa - por certo mercadológica - de nos instalar a angústia diante da nossa "desconexão" com a realidade. Já funciona assim em outras ocasiões. No carnaval por exemplo, todo mundo tem uma obrigaçãozinha de ser alegre, se não for "pular" (!!!) o carnaval seja onde for, se não for à praia, se não puder pelo menos aproveitar enchendo a cara durante os quatros dias; o infeliz se sente como tal. Um ser marginalizado. Que olha choroso aquela alegria que invade irritantemente as telas da TV. Agora na copa do mundo, acontece algo parecido. É preciso uma televisão LCD e todo mundo - até as mulheres e homens que odeiam futebol - completam o álbum da copa, compram enfeites verde amarelo e tudo mais. Já que é copa, vamos torcer, afinal, como todos torcem, é complicado se sentir à margem do querer comum (senso comum). E todo mundo vira nacionalista, adorador de futebol (se for um teatro para matar o trabalho, retiro o tom de crítica). Eis que o dia 12 próximo é exatamente assim: para estar bem e feliz é preciso ter "um alguém", ir jantar por aí e fazer um sexo burocrático de barriga cheia. É a formalização do amor que acontece no dia dos namorados. E, em geral, os solteiros sofrem com isso. Ou seja, de fevereiro até agora, para se sentir in todos deve(ria)m: ser alegres (carnaval), ser brasileiros orgulhosos (começa na terça próxima, haaaaaaja coração) e amar (dia 1 2).

Nietzsche, o mestre da tijolada, como definimos eu e o Gabriel, já nos ensinou a abandonar o tu deves pelo eu quero. E isso não é prescindir ou desprezar o carnaval, a copa e o dia dos namorados. Apenas pensar que o gosto e a satisfação propagados por aí, podem não ser tão essenciais assim. Não se deixe alfinetar pelo senso comum, ele que é tão ingênuo!

quarta-feira, 9 de junho de 2010

Contos Imediatos XXV

ESTAÇÃO DAS CHUVAS EM MIM

- Começou a chover aqui. Lembrei daquela música do Lobão que a gente escutava juntos...lembra?
- Claro que lembro, eu adoro aquela melancolia, aquela doce melancolia. É uma música exclusiva para os dias de chuva...
- Esses dias toquei essa música com meus amigos numa roda de violão. Não tava chovendo, mas pensando, os amigos são a única coisa sublime, estável e eterna da vida. Mas isso quando não chove, porque a chuva me deixa meio assim...meio não sei como...e nenhum amigo pode me resolver.
- Meio assim como?
- Assim meio melancólico, que chora sem chorar, que chora sem ser triste. Uma melancolia neutra que é quase boa, mas sem ser...Como andam tuas chuvas por ai?
- Minhas chuvas caem ordenadamente, sabes como sempre fui assim preto no branco!
- Sei sim...essa chuva também me lembra nosso toque, nosso sexo. Eu ando muito sem sexo melancólico por aqui, tu lembras que minha pregação é de que o sexo deve ser melancólico né?
- Lembro sim, mas não posso te ajudar. Eu ainda não consigo desvincular minha mente, meu coração e meu corpo. Não fosse isso poderia ser tua parceira subliminar de sexo, mas meu corpo não deixa; ainda que minha mente e meu coração continuem entregues à ti.
- Olha, eu aposto que se a gente estivesse a um palmo de distância, essas tuas certezas, divididas em corpo, mente e coração; iriam pelo ralo...
- Só se tu soubesses como fazer tudo isso no espaço ínfimo de um palmo de distância.
- Sabemos que eu saberia.
- Tu sempre me instigas tanto...
- E eu me instigo com quem se instiga com essas loucuras, essas banalogias e essas filosofias vãs...assim como tu.
- No fim das contas – se bem que nunca pagamos as contas para poder ir embora um do outro - nos instigamos, mutuamente.
- Verdade...eu tenho uma vontade tão sincera, uma vontade tão verdadeira de pass(e)ar a mão em ti quando olho essa tua foto deixada propositalmente no mural, essa foto mutante, essa foto eterna das minhas lembranças. E ali, bem ali, embaixo do teu queixo, entre o peito escondido, entre as duas cascatas loiras, bem ali, naquele quadrado sem forma de quadrado, ali vive a porcelana tua. E a porcelana é a culpada porque é ela que roga meu toque, meu passeio de mão, minha volúpia que é eternamente nossa...Entendeu?
- Não, não entendi...senti.
- É porque temos essa intimidade distante que nos une. E ficamos assim, unidos em coração, mente, corpo e chuva...todos em um só de nós.
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PFF

terça-feira, 8 de junho de 2010

Entremáscaras



ENTREMÁSCARAS

Reconhecer é um alívio.
Conhecer não se pode,
quem não se pode reconhecer.
Ver a luz dos próprios olhos,
cintalante na pupila do outro.
Uma benção!
Fazer espelho do brilho úmido
que repousa sobre a retina alheia.
Outra benção!

Mas os abraços, quase todos,
são tão distantes e frios...
Sem reconhecimento,
espiões entremáscacaras,
em um teatro de burocracias,
em um carnaval de personagens reais,
em amontoados sem fim de vidas vazias.

PFF

Yamandú no Teatro São Pedro!

Recebi esse carinhoso vídeo indicado pela minha mãe e compartilho com todos. O grande violeiro das nossa querida terra de Passo Fundo.

segunda-feira, 7 de junho de 2010

Álvaro de Campos, o heterônomo pontiagudo


POEMA EM LINHA RETA

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


Álvaro de Campos por Fernando Pessoa

Pão por José Saramago

Terá o digníssimo fiscal de Badalona lido Os Miseráveis de Victor Hugo, ou pertence àquela parte da humanidade que crê que a vida se aprende nos códigos? A pergunta é obviamente retórica e, se a faço, é só para facilitar-me a entrada na matéria. Assim, o leitor ilustrado já ficou a saber que o dito fiscal poderia ser, com inteira justiça, uma das figuras que Victor Hugo plantou no seu livro, a de acusador público. O protagonista da história, Jean Valjean (soa-lhe este nome, senhor fiscal?), foi acusado de ter roubado (e roubou mesmo) um pão, crime que lhe custou quase uma vida de reclusão por via de sucessivas condenações motivadas por repetidas tentativas de fuga, mais logradas umas que outras. Jean Valjean sofria de uma enfermidade que ataca muito a população dos cárceres, a ânsia de liberdade. O livro é enorme, daqueles de que hoje se diz terem páginas a mais, e certamente não interessará ao senhor fiscal que provavelmente já não está em idade de o ler: Os Miseráveis são para ler na juventude, depois disso vem o cinismo e já são poucos os adultos que tenham paciência para interessar-se pela miséria e pelas desventuras de Jean Valjean. Com tudo isto, também pode suceder que eu esteja equivocado: talvez o senhor fiscal tenha lido mesmo Os Miseráveis… Se assim é, permita-me uma pergunta: como foi que ousou (se o verbo lhe parecer demasiado forte use qualquer dos equivalentes) pedir um ano e meio de prisão para o mendigo que em Badalona tentou roubar uma “baguette”, e digo tentou porque só conseguiu levar metade? Como foi? Será porque, em vez de um cérebro, tem no seu crânio, como único mobiliário, um código? Aclare-me, por favor, para que eu comece já a preparar a minha defesa se alguma vez vier a ter pela frente um exemplar da sua espécie.
José Saramago

domingo, 6 de junho de 2010

ANTA


AVISO FARMÁCIA ENTREHERMES


Não temos no estoque tylenol, dorflex, band-aid e nenhum tipo de anestésico para dores leves. Também não há previsão de reposição dos medicamentos. Se os sintomas persistirem ou (provavelmente) se agravarem, procure seu médico ou veterinário.
A Direção

Estou atrás do que fica atrás do pensamento. Inútil querer me classificar: eu simplesmente escapulo. Gênero não me pega mais. Além do mais, a vida é curta demais para eu ler todo o grosso dicionário a fim de por acaso descobrir a palavra salvadora. Entender é sempre limitado. As coisas não precisam mais fazer sentido. Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do que é possível fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada. Porque no fundo a gente está querendo desabrochar de um modo ou de outro.


Clarice Lispector

(indicado pelo blog da Déia, TPM)

No homem medíocre, a cabeça é um simples adorno


Nesse mês em que indico O Homem Medíocre, livro do pensador argentino José Ingenieros que é um relato completamente sincero e sem intenções pejorativas em relação a este tão corrente homem médio, aproveito a deixa para lançar este tempero poético que, como de costume, diz tão completa e brevemente coisas tão grandes. Essa natureza da poesia me chama muito a atenção, me aguça muito a intuição. Talvez por isso que a palavra poesia seja tão pequena. Talvez por isso que - creio - extensos livros podem ser substituídos por poesia e intuição. Talvez por isso que, em verdade, não é possível escrever poesias, mas sim, poetar.


"O que a vida quer da gente é coragem.
Satisfeitos da vida, só os medíocres."


Mario Quintana
(indicado pelo blog da querida Érica)

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No dia houveram sorrisos tantos,
e houve uma primavera em mim.
Pensando melhor, só uma primaverinha.
Ainda assim,
seja como forem os dias,
por mais radiantes que sejam,
haverá sempre
o véu estendido da morte sobre nossas vidas.
Haverá sempre,
à nossa espera,
uma noite oca,
um silêncio pontiagudo,
um vazio sem nome,
uma espera inacabada.
um estado do qual não se queria estar.


PFF

sexta-feira, 4 de junho de 2010

quinta-feira, 3 de junho de 2010

Jazz de outono

Barulhinho para tardes de chuva suave de outono. Enjoy!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Contos Imediatos XXIV



A MOSCA E A ABELHA

Ainda existem espaços kafkanianos nos tempos em que as mutações andam tão velhas que mal conseguem se transformar! E na Cidade dos Centavos, um homem acordou no meio da madrugada fria transformado em mosca. Completamente desqualificado como humano no ínterim do sono. A consciência era tudo que sobrava da antiga natureza de homem. Mesmo assim, o chamado da noite fez as asas baterem zunidamente. Era da qualidade das varejeiras. Daquelas que têm duas laminas brilhantes nos olhos negros, que mais parecem escudos sem pupila. Às moscas desde sempre lhes foi negada a pupila, e talvez por isso lhes tenha sido negada também a alma. É na consequencia da pupila que se percebe a alma: dos homens e dos bichos que a tem.

O homem agora mosca, voou pelos ares. Sua nova natureza fez com que se enfiasse no lamaçal fétido dos esgotos, na podridão dos lixões. Carregou – na circunferência atômica das patas – todos os germes das doenças, comprometendo todas as superfícies. Andou pelo pus e pelo sangue putrefato dos lixos hospitalares. Pousou nas feridas abertas dos bichos urbanos em decomposição. A efemeridade de seu estado de mosca terminou quando o primeiro raio de sol se desenhou no horizonte. Transformou-se em abelha. A benesse do destino o fez sublimar em mel imortal o frágil perfume das flores. Sugou o néctar das pétalas sem tirar-lhes, porém, o viço. Libou as rosas, as orquídeas e as todas as margaridas que encontrou pelo caminho. Virou doçura e misericórdia. Virou poesia.
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PFF

terça-feira, 1 de junho de 2010

Eis um interessante texto bíblico - Eclesiastes



1 Melhor é a boa fama do que o melhor ungüento, e o dia da morte do que o dia do nascimento de alguém.

2 Melhor é ir à casa onde há luto do que ir à casa onde há banquete, porque naquela está o fim de todos os homens, e os vivos o aplicam ao seu coração.

3 Melhor é a mágoa do que o riso, porque com a tristeza do rosto se faz melhor o coração.

4 O coração dos sábios está na casa do luto, mas o coração dos tolos na casa da alegria.

5 Melhor é ouvir a repreensão do sábio, do que ouvir alguém a canção do tolo.

6 Porque qual o crepitar dos espinhos debaixo de uma panela, tal é o riso do tolo; também isto é vaidade.

7 Verdadeiramente que a opressão faria endoidecer até ao sábio, e o suborno corrompe o coração.

8 Melhor é o fim das coisas do que o princípio delas; melhor é o paciente de espírito do que o altivo de espírito.

9 Não te apresses no teu espírito a irar-te, porque a ira repousa no íntimo dos tolos.

10 Nunca digas: Por que foram os dias passados melhores do que estes? Porque não provém da sabedoria esta pergunta.

11 Tão boa é a sabedoria como a herança, e dela tiram proveito os que vêem o sol.

12 Porque a sabedoria serve de defesa, como de defesa serve o dinheiro; mas a excelência do conhecimento é que a sabedoria dá vida ao seu possuidor.

13 Atenta para a obra de Deus; porque quem poderá endireitar o que ele fez torto?

14 No dia da prosperidade goza do bem, mas no dia da adversidade considera; porque também Deus fez a este em oposição àquele, para que o homem nada descubra do que há de vir depois dele.

15 Tudo isto vi nos dias da minha vaidade: há justo que perece na sua justiça, e há ímpio que prolonga os seus dias na sua maldade.

16 Não sejas demasiadamente justo, nem demasiadamente sábio; por que te destruirias a ti mesmo?

17 Não sejas demasiadamente ímpio, nem sejas louco; por que morrerias fora de teu tempo?

18 Bom é que retenhas isto, e também daquilo não retires a tua mão; porque quem teme a Deus escapa de tudo isso.

19 A sabedoria fortalece ao sábio, mais do que dez poderosos que haja na cidade.

20 Na verdade que não há homem justo sobre a terra, que faça o bem, e nunca peque.

21 Tampouco apliques o teu coração a todas as palavras que se disserem, para que não venhas a ouvir o teu servo amaldiçoar-te.
22 Porque o teu coração também já confessou que muitas vezes tu amaldiçoaste a outros.

23 Tudo isto provei-o pela sabedoria; eu disse: Sabedoria adquirirei; mas ela ainda estava longe de mim.

24 O que já sucedeu é remoto e profundíssimo; quem o achará?

25 Eu apliquei o meu coração para saber, e inquirir, e buscar a sabedoria e a razão das coisas, e para conhecer que a impiedade é insensatez e que a estultícia é loucura.

26 E eu achei uma coisa mais amarga do que a morte, a mulher cujo coração são redes e laços, e cujas mãos são ataduras; quem for bom diante de Deus escapará dela, mas o pecador virá a ser preso por ela.

27 Vedes aqui, isto achei, diz o pregador, conferindo uma coisa com a outra para achar a razão delas.

28 A qual ainda busca a minha alma, porém ainda não a achei; um homem entre mil achei eu, mas uma mulher entre todas estas não achei.

29 Eis aqui, o que tão-somente achei: que Deus fez ao homem reto, porém eles buscaram muitas astúcias.

Seu nome

Fabrício Corseleti.

Nova poesia.

Novo livro.

Novo poeta.

Novidades.

Talvez seja bom!

A sensibilidade universal



Não há mulher sensível
que seja intocável diante de uma poesia exata.
Não há uma sequer.
Mas a sensibilidade deveria tocar a todos,
em comunhão existencial.
Quem se atreve a cânone outro, afinal?
As poesias exatas deveriam ser dos inevitáveis momentos.
As mulheres sensíveis deveriam brotar entre as fendas do universo.
E as mulheres insensíveis,
não servem nem às poesias, nem ao universo.
Tudo isso é inevitável.


PFF