segunda-feira, 30 de julho de 2012

o espírito da coisa



Entro.
Vejo.
Troco de roupa.
As notícias na TV.
Esportes, o clima. Aquele papo.
O lixo esperando na porta.
O cronópio de estimação que late sem incomodar os vizinhos.
Pressa.
Vida pressa.
Descruzo a perna.
Cruzar a perna é a porção mais sexual de um gozar do pensamento.
Deixo a alpargata livre para viver sua democracia.
O mate morto.
A silenciar.

Respirando.

Respirar e ser pra sempre, é pra sempre.

Vivo poesias virgens.
Quem sentirá além do poeta uma poesia virgem?

A expressão é uma respeitadora.
Respeita tanto quanto as prositutas.
Respeito é exceção.
Dizem que se trata de uma espécie de re-espectare.
Ser espectador de si mesmo,
pra depois poder expectar - como um catarro de antes de dormir.
Enxergar-se de novo, e outra vez, e de novo, e outra vez, e de novo, e outra vez.
Um ir-se-atualizando.
Como os mil desenhos sobrepostos que fazem uma animação à moda antiga.

No fundo um ir-se, apenas.
Em direção a todos no mundo que no fundo são carnais como eu.
A vaidade mora fora da carne.
Por isso o diabo é um deus da carne.

Ando de mãos dadas.
Peregrinando em busca do espelho completo.



sábado, 28 de julho de 2012

respirro




Há uma lâmina de carne fria que me separa da vida.
Transito dentro de uma bolha terrestre.
Sempre que acabo sabendo, lembro.
Sempre que narram e narram, poemo.

Os pés estão no chão.
O peito está no chão.
E até a cabeça.

O mais é presságio aéreo.
Sutileza de uma geladeira de gente solteira.
Talvez liberdade.

Sou um eu-pulmão. Diastólico. A-ú. A-ú.

quarta-feira, 25 de julho de 2012

uma aposentadoria anunciada





Meu notebook está morrendo.
Vem dando sinais do tempo que passou por ele.
O tempo é o senhor das rugas, da poeira, do fenecer, da broxura.
As teclas estão encardidas.
Os adesivos descolando.
O drive  de vídeo pára num repente.
Existem manchas de vinho num canto.
Entrou no que se chama de "melhor idade".
Mas a "melhor idade" é como propaganda política: trama embusteira.
Não pode ser melhor uma idade em que se perde a autonomia.
O melhor da "melhor" idade deve ser a liberdade de poder dizer.
O tempo, este São filho da puta, dirá.
A velhice nos dá essa chance que a novice nos rouba por conta de planos fajutos de um futuro que se pretende eterno.
A "melhor" idade, como todas, é uma idade mais ou menos.
Recheada de esperanças e poréns.
De caipiras de morango e de epocler.
Meu notebook se arrasta como um velho de bengala.
Ainda me relaciono com ele, com respeito e intensidade.
A senilidade dele faz com que eu perca aquivos de mim mesmo.
Bem não sei se é minha loucura ou a velhice dele ou as duas coisas.
Provável que não seja nenhuma das três.
Não tenho métrica pra guardar arquivos.
Frases estão soltas,
textos perdidos pra sempre.
Cartas e poemas e filosofias...tudo de gaveta.
Escritos para ex-namoradas, ex-amantes. Prefiro ex-amantes.
Todas mulheres têm a potência de "ex".
No flerte da conquista já há uma morte.
Algumas narrei.
Outras mortes preferi deixar morrer.
É um exercício do livre arbítrio, afinal, uma dose de autoengano nos salva.
Vídeos pornô, fotos antigas...tudo em desordem.
Esquecidos como despachos numa esquina,
abandonados como autistas de um sanatório estatal.
A área de trabalho é um parque surrealista de diversões.
O jardim de um asilo de velhos e dementes.

Sempre foi uma máquina de escrever com prerrogativas a mais.
Morrerá apenas máquina de escrever.
Tudo que morre fica gravado na história por aquilo que fez mais, não pelo que fez melhor.
Essa é uma das tristezas da vida.
O mar de letras ordenadas como uma pedra bruta que esconde uma escultura.
A ordenação da desordem é dos dedos, do cérebro, da metafísica, das nuvens, dos espíritos.
Ele foi minha coroa de espinhos e minha mãe.
E por honra, agora sou o enfermeiro.

terça-feira, 24 de julho de 2012

MÍNIMAS FEMININIMAS





Uma mulher que traz, de uma só vez, a garrafa de vinho, a taça e o saca rolhas, é uma mulher pra casar. 

***

Longe dela os dias são lesmas pegajosas, que resistem ao sal das horas.

***

As mulheres dos dias fragmentados desse tempo são ansiosas, inseguras e ocupadas com muitas coisas. Preferem pintos confortáveis e que não tardem em gozar. É preciso estar adaptado. Os pintos pequenos perderam a batalha mas vencerão a guerra.  


***

Mulher satisfeita se satisfaz com o final. 

***

Entre um sexo e outro, espera o homem. Entre um sexo e outro, vive a mulher.

***

Sem um cachorro ou uma televisão ou uma planta ou uma mulher, a vida fica muito desgraçada.

sexta-feira, 20 de julho de 2012

um plágio incapturável



um chasque para o derretimento das calotas polares.
um chasque para as redes de balanço.
um chasque para os que vão morrer na cadeira elétrica.
um chasque para as estradas e os carros.
um chasque para quem inventou as estufas Nikon.
um chasque pro processo de digestão.
um chasque para o GPS.
um chasque para a rejeição e para a serpente no quadrante crístico.
um chasque para os elevadores, os motores, e tudo que vai sozinho.
um chasque para a falta de conclusões.
um chasque para as faturas mais caras que a promessa.
um chasque para os assaltantes de banco.
um chasque para as batatinhas fritas com queijo e bacon.
um chasque para as aparências.
um chasque para todas as ilhas que existem na terra.
um chasque para as tendas de umbanda e candomblé do Brasil.
um chasque para os cronópios que vivem dentro dos livros.


voltei com Kate


Em 1997 me apaixonei pela Kate Winslet. O Titanic tinha sido lançado. Fui 4 vezes no cinema. E esperava por aquela cena que o Leonardo DiCaprio desenhava ela nua, branca, lisa, maravilhosa, numa poltrona abençoada por Deus, um anjo guardião do céu da vida. 

Com braços acima, e pernas juntas, e esfregando a pele que fica do lado direito do corpo.  Recortei uma foto dela na Zero Hora e escondi embaixo do travesseiro. Minha cama era no andar de cima do beliche. Kate me inspirava.

As nuvens passavam. As chuvas caiam. Começava o dia. E terminava o dia. E eu cavalgava a imaginação na Kate. Ela era o que me salvava. Porque desde sempre só as imaginações me salvaram. 

O que sempre houve, na verdade, foi que sempre fiz da idéia uma verdade antes da própria realidade, meio como pensava Platão. Platão é meu carrasco e minha sacristia.

Depois a paixão passou, como acontece com toda paixão. Mais tarde vi a bunda dela pelada num outro filme que não lembro o nome. Percebi que ela já não era a mesma. A bunda se mantinha lúcida só porque a luz da cena do filme ajudava. Pude ver. Sou um técnico em bundas, como esses caras que arrumam máquinas de lavar roupa.

Depois disso fiquei vários anos separado da Kate. Ligar, como eu nunca tinha ligado, nunca mais liguei. Emails, que eu nunca tinha enviado, jamais voltei a enviar. Até lembranças de aniversário deixei de lembrar, ainda que nunca tivesse feito uma.


Encontrei ela de novo como a aluna analfabeta que trepava de tarde, ingenuamente, com um aristocratinha que lia livros pra ela.  O leitor lia e ela escutava pelada, de bruços. Eu pensava: "essa mulher me persegue". Volta e meia, ela era outra na minha frente.

Depois veio Em Busca da Terra do Nunca. Era ela. De novo maravilhosa e vulnerável. Dentro de vestidos ajustados e em paz com o universo. Sorrindo no inicio. Doente no fim. Devota dos filhos. Devota do marido morto. Fiel até a morte e mesmo depois dela. 

Deixou de ser a rica-afogada-e-apaixonada-por-um-pobre, e se transformou em uma mãe fiel aos filhos e ao marido, do tipo que não se importa com quantas amantes o marido tenha ou não tenha, seja nessa ou em outra vida. Uma devoção própria das madres santas da comunidade nosso senhor dos selvares de Deus. Os anos tinham feito Kate se tornar uma santa. Que chora e morre agarrada na vida. Feita para sofrer, para morrer pelo amor, e para ser só perdão, como disse Vinícius, um poeta de linhagem hermética. 

Ela sempre será uma gordinha que não aconteceu. Um abraço para a velhice. As novas precisam ser gostosas para que o colo da velhice seja mais gordo e mais quente, uma espécie de instinto de sobrevivência do macho, que busca um assento confortável para morrer, exatamente como fazem os elefantes no fim da vida.

Kate me olhava pelada pela foto congelada, esperando que eu lesse histórias pra ela.


.

terça-feira, 17 de julho de 2012

poesia da terra






Elas vão gostar de carros com cheiro de baunilha.
Elas vão querer camarão pistola.
Elas vão preferir camas king size.
Elas querem hotéis de luxo.
Elas querem as melhores escolas pros guris.
Elas querem máquinas de fazer pão.
Querem, sobretudo, comer bem:
mulher bem alimentada é mulher feliz.
Elas vão querer casas grandes,
cachorros que comem pedigree champ,
TVs de muitas polegadas.
Elas vão querer viagens, de preferência com muitas fotos.
Elas vão querer casamento, de preferência com docinhos e filés com molho agridoce.
A noite do casamento é a Noite do Nunca das mulheres.
São Peter Pans ao contrário na noite do casamento.
Elas vão querer manicure, terapia, academia, cartomante, pedicure, sobrancelha, RPG, depilação, massagem, reiki, yôga, personal stylist, coach, bronzeamento artificial, governantas pra mandar no mercado, o diabo a quatro, o diabo de quatro, o diabo do avesso. 
Ser rainha é um destino.
Querem filhos pra ornar o reino, 
salas bem decoradas,
estéticas que mostrem como elas “são”.
É o jeito que têm de se mostrarem vitoriosas ao mundo.
E são, já que a imanência é, senão o paraíso, uma possibilidade de acessá-lo.
O paraíso das mulheres é um enquanto-não-acontece-que-pode-acontecer.
O dos homens é a morte, de todos os jeitos que a morte existe.
Elas amarão de verdade.
Elas sentirão de fato e na pele.
E alimentarão com amor nossas vidas fabricantes, cogitantes, sem versos.
Serão a poesia terrena.

terça-feira, 10 de julho de 2012

O TERAPEUTA DO AMOR







  • O terapeuta do amor está disponível para viagens e fins de semana e atende apenas mulheres casadas ou com compromisso sério. 
  • Para mulheres feias, o terapeuta do amor não se envolve de modo carnal, apenas espiritual. Por feia se entende aquela que não atender aos critérios subjetivos e arbitrários do terapeuta.
  • O envolvimento carnal com as feias, se resume a abraços amorosos e passeios de mãos dadas.
  • Para as bonitas, há disposição carnal e espiritual, estando o terapeuta à disposição durante todo o processo terapêutico.
  • Se houver alguma empatia invisível, é possível que haja envolvimento carnal com uma feia, sendo os critérios de empatia definidos pelo terapeuta em cada caso.
  •  O terapeuta pode desistir do tratamento a qualquer momento, se comprometendo a devolver o valor correspondente às horas de tratamento não realizadas.



macia como a pele de gaia




- Casa comigo?, perguntei.
- Ai, que pergunta difícil, ela disse.
- Eu faço perguntas difíceis, gosto mesmo é de dificultar.
- Mas se eu consultar as enciclopédias, os livros e o google posso achar a resposta, ela disse.
- Quando penso em ti, lembro do Bukowski, que sentia ciúme dos caras que tinham mulheres lindas, bem cuidadas, perfumadas e com vestidos floridos de algodão.
- Você adora me deixar sem palavras... quando falo contigo, sinto como se estivesse lendo um livro.
- Exatamente, tudo é um livro, eu disse.
- Eu pareço uma adolescente que não sabe o quê responder...
- É assim mesmo, respondi. Cada coisa no seu lugar, cada tempo no seu espaço de tempo, cada silêncio quietinho na fila.
- Ainda bem que você entende, ela disse.
- Talvez eu me deixe seduzir pelo teu silêncio. Na verdade sou sincero demais, queria mesmo era cheirar teu cangote. Sofro dessa coisa de ser sincero demais. Ou talvez eu diga ser sincero pra mentir um pouco. A sinceridade é um vício como o cigarro ou o álcool ou a internet, hoje em dia muita gente anda viciada em internet.
- Acho que o meu vício é não saber responder, ela disse.
- Então, nesse caso, nossos vícios são viciados um no outro: meu não-silêncio é viciado no teu silêncio!
- Ai, não sei o que dizer, ela disse não dizendo.
- Que bom, eu disse.
- QUE BOM? eu me sinto uma BOBA, ela disse.
- Porque boba? Conte-me mais.
- Porque não sei o quê responder, ela disse.
- Mas essa já é uma resposta. Teu silêncio é a resposta. Aliás, o silêncio é melhor porque deixa o outro pensando o quê bem quiser.