domingo, 1 de novembro de 2009

Mude-se de você mesmo




Muda-se muito em três anos e dois meses. Há três anos e dois meses li o Budapeste do Chico. Hoje vi o filme da adaptação. E porque muda-se muito em três anos e dois meses, esvaiu-se entre os dedos - com a mesma rapidez de um sorvete nesses insuportáveis dias de verão -, a velha certeza clichê de que os livros são sempre melhores que os filmes. Esses que contam a mesma história dos livros em imagens não imaginárias. Todo mundo sabe que a possibilidade de criação imaginária faz o livro ser o que de melhor há em que o lê. Melhor que os filmes, portanto. Se produz ambientes, gentes e cheiros; tudo ao gosto do cliente. Mas, deveras, essa lógica pode ser revertida quando o leitor deixa de ser quem foi outrora. Três anos e dois meses depois, já não se é quem se era. Quem julgar falsa essa premissa: pobre inconsciente!

Budapeste é um roteiro em que circundam sobre o tema da linguagem, reconhecimento e, mais no fundo, ignorância. Serão mesmo os escritores que acabam cegos? O grande risco de firmar uma posição é a de que ela pode estar equivocada. Com essa certeza na cabeça nada mais razoável que o silêncio em exatamente tudo...ou então as onomatopéias...

Enquanto Vanda queria ver reconhecido os dotes literários do marido, que escrevia biografias para terceiros sem levar nenhum louro por isso, Costa queria morbidamente que nada em casa faltasse. Sendo ele a mente iluminada, não conseguia fazer com que seus próprios adjetivos atingissem a vaidade da esposa: única, intacta, intraduzível. Se partissem de sua boca seriam escarros de gripe suína. No andamento normal das coisas, Costa é que deveria estar no palco e nos jornais. Mas assim não era. Escrever era um ofício que não devia trazer o reconhecimento de um bom escritor, mas apenas sustento. Afinal, o dinheiro, a bufunfa, o faz-me-rir, não deveria, por si só, trazer reconhecimento para quem os leva na algibeira virtual das contas-correntes? Assim que funciona muito antes da derrota filosófica de Marx. O mundo abre alas para quem tem brilho nos bolsos ainda que carregue dias nublados na alma. Isso que se chama pobreza de espírito não faz diferença alguma. Esses pobretões continuam a usar o elevador social, a pisar no estrado alto da ala vip, a limpar a bunda com cheirinho de lavanda. Essa episodica pobreza não lhes tira o lugar de destaque. Mas tudo bem! Falta tanto para que se vejam essas incogruências, que vamos estar todos frios na terra quando essa consciência se banalizar.

Costa o escritor, pela mente de Chico, escancara pela analogia do idioma que não sabemos porcaria nenhuma. Nada de nada. A incomunicabilidade pela ignorância de um idioma, num mundinho tão pequeno dentro do universo, é um bom jeito de perceber que não sabemos absolutamente nada. E essa sentença vale também aos poliglotas e seu admirável dom da compreensão plural. Como curar essa ignorância universal? Essa de não saber quase nada? Resposta: abraçando a ignorância cega do amor! Pra que descobrir alguma coisa, falar dez idiomas ou escrever livros se se está em paz com o amor? E aqui peço desculpas públicas e parciais aos ceguinhos do castelo!!

O mesmo amor que amortece a ignorância generalizada, também faz sarar até a incomunicabilidade de quem fala português e húngaro. Os sussurros de amor de Kriska eram universais, tal qual os gemidos e o ranger de dentes. Tudo volta a ser tão complicadamente simples. O amor não carece de linguagem. O amor não pede sequer um "eu te amo". O amor só é no silêncio dos gemidos brutos. Na parte mais vazia da linguagem, no instante mais animal do humano. E todos esses livros, reconhecidos ou não, viram farelo diante das onomatopéias do amor. Em Budapeste descobri que persona, o que Jung bem chamou de máscara da psique, tem origem em per sonare, justamente uma máscara que permite que apenas o som a atravesse pela fenda na altura da boca. Assim, o que é expresso em palavras pode estar em conflito com o que a máscara esconde ou representa...Com as onomatopéias do amor, talvez, se dê o genuíno momento em que se está mais próximo da pureza que só é plena em solidão. Quando em sussurros encontra-se no outro o amor, caem-se as máscaras, penetram-se os olhares. Nesse vago instante, homem e mulher podem se descobrir em um só. Reconhecidos plenamente não pelos livros que venderam, nem pelo dinheiro que carregam, nem pelos corpos que levam suas almas, nem pelos seus nomes nos jornais. Se reconhecem nos efêmeros estados do amor. Ela branca, bela e crua. Ele mais pálido por ela. Esses estados, porém, não se repetem. Muda-se muito em três anos e dois meses. Há três anos e dois meses não lembro o que eu era.

Um comentário:

  1. Como diria Clarice:
    "O importante é a mudança, o movimento, o dinamismo,a energia.
    Só o que está morto não muda.
    A SALVAÇÃO É PELO RISCO, SEM O QUAL A VIDA NÃO VALE A PENA!"
    bjos

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