terça-feira, 30 de agosto de 2011

MÍNIMAS - 1




Chapéu azul diz: "olha ali o mínimo"
Chapéu vermelho diz: "aqui é menor ainda..."


O Bob Di(z)lan: “I dont care about the economy”… Eu concordo com ele, com a arte, com a música. Também não me importo com a economia. A economia devia economizar a paciência das pessoas. Papo de economia é coisa de tiranossauro rex. Economia é não passar fome.

*

A beleza é a sabedoria da juventude. As sensações são a sabedoria da velhice. A arte de libertar a liberdade é a sabedoria das crianças. Aí, quando você consegue passar por todas essas estações da sabedoria, você acaba descobrindo que a sabedoria da sabedoria é saber as três sabedorias juntas. Depois que você é sábio ao cubo, você descobre que a grande sabedoria é esquecer todas as sabedorias. E termina-se vazio, plenamente vazio. E com um tesão vicioso por mais alguma coisa pra se saber.

*

Coisas complexas devem ser ditas com simplicidade, que é pra se facilitar as coisas...

*

A diferença entre o inicio e o meio de um relacionamento está na consciência do peido: no inicio você dorme preocupado em não peidar, e acaba peidando inconsciente durante o sono; depois de uns meses você finge que dorme pra poder peidar, peidar conscientemente. De todo modo nada substitui a legitimidade de um peido solitário. A solidão flerta com a maior liberdade possível. A solidão é o peido.

*

As mentiras são um jeito sincero de mostrar que a verdade é uma mentira.

*

O NASCIMENTO DA PREGUIÇA - Eu sou o que não sei ser. E isso não me basta, pois me falta tanto.

*

Os homens não existem. As mulheres também não existem. As pessoas existem de verdade se entenderem que os homens e as mulheres não existem. Uma mulher chupar uma buceta ou um homem dar o cú não tem nada a ver com ter atributos femininos ou masculinos. Os anjos não têm sexo não porque não gostem de trepar, mas porque, pra eles, trepar é coisa de homens e mulheres que pensam que existem. Esse é o próximo degrau da escada, vossos temas de casa.

*
Por falar em buceta, uma coisa é certa: o dicionário Aurélio está equivocado quando diz que buceta se escreve com “o”. Alguém já viu alguma buceta com “o” por aí? Boceta, assim com “o”, é coisa de quem fala de buceta apenas na teoria. Na prática elas são todas com “u”.

*
Quando for chutar a macumba, aproveite pra comer a galinha morta.





domingo, 28 de agosto de 2011

Bukowski tapes - 1

born into this

"Entrei no consultório do doutor. Minha consulta era a primeira. Sendo o homem que era, estava 30 minutos adiantado, pensando no câncer. Caminhei pela sala de espera. Ali estava a enfermeira-recepcionista agachada no chão com o seu vestido uniforme branco e justo, seu vestido subira até os quadris, coxas grossas e potentes. Esqueci do câncer.

[...]

A enfermeira desapareceu pela sala e continuei lendo a Life. Quando ela voltou voltei a imaginar se haveria alguma maneira de estuprar a enfermeira e não ser preso."


Buk (com intimidade)

O FEDOR DA PUREZA



Que nós encobrimos a verdade,
não há nenhuma novidade.
As vísceras da morte,
enganamos com algodão no nariz.
Os peidos todos... escondidos:
embaixo do cobertor,
no silêncio assoviado das cuecas,
no íntimo privado dos nossos fedores.
É esse fedor da verdade que fica encoberto por aquilo que só pode ser contorno.
Esquecer do fedor gera em mim uma intolerância em relação ao que é definido por alguma definição.
Essa maquiagem que disfarça o pus que contrasta a higidez,
é a mesma que borra as fronhas antes limpas dos travesseiros.
Mas é que nosso fedor tem tantos desejos de dissipar-se no ar
que acaba sendo um fedor meramente de origem.
O fedor privado tem em si um desejo de ser público.
É como se só pudessemos ser curados
à medida que as mãos envergonhadas pelo choro cedessem,
para que nossas lágrimas pudessem ser vistas pelo mundo...,
ou como se o orgasmo múltiplo
só pudesse se dar com uma overdose de vouyerismo passivo,
para que fosse realmente possível aprender sobre o fedor de ser puro.
A pureza tem um fedor ainda pontiagudo aos nossos narizes castos.
Nosso olfato - e nossos outros sentidos -
ainda rezam um terço de joelhos pra pagar um pecado inexistente.
Ou então as flores, que sabem ser flores - e são -
mesmo vivas, mesmo mortas.

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

territórios desconhecidos





Minha mulher perguntou o que eu achava da roupa que ela ia usar numa janta. Por falar em janta, ela  anda enchendo o meu saco dizendo que não se diz “vou numa janta”, mas sim “vou a um jantar”. Ah, foda-se, vou seguir falando janta. Enche o meu saco também porque eu falo “vou no banheiro mijar”. Me ensinou que banheiro é quando tem vaso (de cagar) e que, em restaurantes e afins, o correto é chamar o banheiro de toalete. Não sei se vocês entenderam, porque eu mesmo fiquei muito tempo pensando nisso. O negócio é o seguinte: quando dá pra tomar banho é banheiro, e quando não dá pra tomar banho não é banheiro, é toalete.

Quanto ao mijo ela me indicou evitar, não o ato do mijo, mas o nome do mijo, ou seja, é preciso batizar o mijo com outro nome que não "mijo". Como me neguei a falar xixi, ela disse que era pra eu dizer simplesmente que estava indo ao banheiro. O problema é que ai fiquei confuso porque não entendi se o banheiro deveria ser usado apenas quando era pra tomar banho ou se também podia ser usado pra ir no banheiro pra fazer mijo com outro nome.

Sobre a roupa ela me disse: “baby, o que você acha de eu ir com uma saia plissada, com uma meia calça com cor de tigre africano, um sapato de tira entrecruzada entre o cinza e o roxo, uns colares de paetê e um look estilo monobloco de cores, que é a última tendência?”*. “Acho bem bom”, respondi.
*o figurino é fictício porque eu não lembro como ele era exatamente dada a variedade de coisas que ela ia pendurar na carne. Falo que é pra não ter que escutar depois que minha mãe vai achar ela brega quando conhecer.

terça-feira, 23 de agosto de 2011

AFINANDO A LOUCURA

Os processos de criação desenham em nós alguma coisa que todos os outros processos não podem desenhar. Os círculos de criação coletiva são uma necessidade para quem pretende ensinar caminhos ou descaminhos (estes que são lugares mais inéditos e, portanto, mais ricos). É preciso excitar os pontos de energia colorida... mas eu nem sei o quê é um ponto de energia colorida, tampouco sei onde eles estão. È preciso absorver a música até o final, a poesia até a ponta dos cabelos, a respiração auscultada dos ácaros que nos rodeiam...mas também não sei nada sobre isso, falo por falar, pra enganar a torcida, tomar tempo de gente que reclama que não tem tempo mas que lê irracionalidades porque anda cansada de fazer algum sentido...

É preciso estar confortável, em casa, inserto no seu hábito mnemônico, nos dogmas da sua existência, entre as paredes que sustentam o caos que lhe pertence. É triste ver que as pessoas não aguentam a própria solidão, que são dependentes de outros fantasmas como elas. No que se refere à companhia, em geral, prefiro os livros às pessoas. Eles tem mais o que dizer. De todo modo, contraditoriamente, entendo que os livros são engodos, fugas da realidade. Depois de um tempo, os livros dizem sempre a mesma coisa, são substancias comuns em formas articuladas pluralmente. A vida não vive nem acontece nos livros. Depois de ler, é preciso viver. Se os livros nos trazem conhecimento, as pessoas nos trazem crescimento. Não há como dar passos senão comparando diferenças. Comparar diferenças é avançar por meio da fusão de horizontes que foram previamente atritados pela nossa capacidade de confrontação com o estranho. Para aumentar de tamanho, portanto, é preciso conviver. A indispensabilidade do outro é um tema de casa pra mim. Encarar o outro e seus olhos defensivos, que atacam nossos reinos pelas costas. O universo de cada um de nós, visto como o útero que nos detêm, acaba se tornando facilmente uma pequena pulga atrás da orelha de um deus ou de um diabo. 

Eu tenho conclusões pra esconder que não tenho nenhuma. Eu acabo enganando quando sou porque ser alguma coisa é deixar de ser todas as demais. Poder de escolha? Ah, ando suavemente cansado de falar de livre arbítrio ou relatividade, condeno os fantoches do meu tempo sabendo que também sou um. Escolhemos o quê afinal? A comida que nos come, uma mulher pra ter como companheira, as rotas da estrada da vida, as músicas que nos chegam aos ouvidos, nossos desejos de não castração? Ou estamos castrados desde todo o divino SEMPRE? Qual a liberdade que existe quando sequer podemos dizer aos amigos que não estamos com saco pra aguentar a companhia deles? Eu tenho requerido uma honestidade honesta de verdade, sem culpa, sem dor, autônoma, que fuja da onipotência das certezas únicas da ciência, da religião, dos relacionamentos, dos paradigmas que copiamos da TV.

A rejeição da universalidade com a matéria corpo é a pior das castrações. E essa polenta congelada que eu tenho que comer, o que dizer sobre ela? Essa polenta industrial da Sadia que de sadia não tem nada me escolheu antes que eu pudesse escolhê-la, razão pela qual eu não posso mais falar em lívre arbítrio, liberdade ou autonomia. Eu tenho nostalgia da Rute, uma querida amiga que trabalhava na casa dos meus pais que fazia uma polenta deliciosa, verdadeira, à mão, com carinho, açúcar e afeto como disse o Chico. Sem afeto, afecttio, afeição, sentimento de bem querer, a coisa acaba ficando uma merda mecânica completa.

Fazer poesia é o único jeito de enganar o destino, mas se esse não for o único jeito, me conte digno leitor que gasta seu precioso tempo lendo essas letras manchadas de esperança e desassossego. Digo isso para que não me descubram, quero o privilégio de ter a certeza de que posso chegar antes de qualquer um na minha descoberta, de ter certeza de que o processo de ser não acaba nunca, nem na mortalidade do passado, nem na eternidade do porvir.

A loucura talvez seja uma benção pela sua desrazão, pela conexão direta e régia com o divino. Ter nascido assim com pouca loucura me faz sentir pobre de uma pobreza maior que as pobrezas que aparecem na TV. A TV aqui em casa pifou. Era daquelas grandes, com tubo de imagem. No meio de uma pequena reforma, deixei ela sobre a cama. E, da sala, praguejei sobre o peso daquela porcaria dos anos 90. Aconteceu que ela se atirou da cama, se espatifou no chão e estragou. Agradeci. Minha namorada me emprestou a TV dela. Mas acontece que a TV plasma dela não funcionou e estou até hoje sem ver TV. A TV é um movimento, uma companhia na solidão. Com esse quadro todo, percebi que a TV era uma bengala. Pago a TV a cabo até hoje, mas sem ver as imagens. Fico imaginando os programas que a TV passa...e é provável que tudo continue igual: os mesmos gols do futebol, os mesmos boa noites do Bonner, as mesmas tragédias.

Não tenho saco pra ligar de novo pra um 0800 e tentar consertar a falta de sinal. Esses dias liguei para o 0800 da SKY. Uma mulher eletrônica atendeu, falando de forma gravada como se não estivesse falando de forma gravada. Falando coisas do tipo “então, olha só, se você tá com problemas de sinal, tecle 2; se tá com problemas na fatura tecle 4” e assim por diante. Acho que é um jeito de fazer com que a nossa paciência aumente. Eu fui teclando os números do meu problema complexo que era simplesmente voltar a ver TV. Quando falei com uma vagabunda de verdade, a bateria do meu celular acabou e prometi que ia pagar a SKY sem ver a SKY, apenas imaginando os programas, imaginando que essa era uma mensagem dos deuses pra me fazer exercitar a imaginação. Me foi conveniente pensar assim. Estou alienado do mundo, sem saber se a bolsa caiu ou se os terremotos pré programados pelo destino estão devastando alguma terra do mundo. Não escuto o rárárá do CQC e do Pânico na TV. Tenho postergado a ligação e vou seguir assim até que a coragem volte. Tenho visto os DVD’S que estavam por ver e eles têm sido interessantes. Busco a loucura para depois ter um problema pra resolver. Quero ser um inquilino da normalidade, mas com aluguel atrasado. Essa televisão que me abandonou, essa polenta artificial da Sadia, essas crostas de comida nos talheres mal lavados pela faxineira, esses fantasminhas camaradas...tudo isso é de mentira, criações imaginantes. Ao final, nos melhores diálogos que temos com nossos abismos, estamos sozinhos. Confirme você mesmo antes de dormir.

domingo, 21 de agosto de 2011

Cartas de Jung

"(...)O 'modus philosophandi' de Heideger é totalmente neurótico e baseia-se em última análise em sua excentricidade psíquica. Os seus afins mais próximos e mais remotos estão em manicômios, alguns como pacientes e outros como psiquiatras com ares filosóficos. Apesar de todas as suas falhas, o século XIX merece mais do que ter Heidegger como seu último representante.(...) Com toda sua crítica a filosofia ainda não conseguiu eliminar seus psicopatas. Para que existe um diagnóstico psiquiátrico? O ranzinza Kierkegaard também faz parte deste capítulo. A filosofia ainda precisa aprender que ela é constituída de pessoas e que que depende seriamente da constituição psíquica. Um capítulo de uma filosofia crítica do fututo terá como título "A psicopatoloia da Filosofia". Hegel quase explode de presunção e vaidade; Nietzche goteja desonrosa sexualidade etc. Não há pensamento em si, mas há eventualmente um pote de impurezas de todos os demônios inconscientes, como qualquer outra função que reindivica hegemonia. Muitas vezes é menos importante 'o que' é pensado do que 'quem' pensa.(...) A neurose desmente todo filósofo, pois ele está discorde consigo mesmo. Então sua filosofia nada mais é do que o combate sistematizado de sua própria insegurança. Desculpe estas blasfêmias! Elas brotam de minha tendência higiênica que lamenta ver tantas inteligências jovens serem contaminadas por Heidegger."


Do livro C. G. JUNG - Cartas (1906-1945)

balbuciando o inexprimível


DINÂMICA DO INEXPRIMÍVEL:
1) beba 6 copos cheios de vinho;
2) fique olhando para a figura acima durante 6 horas ininterruptas, sem piscar;
3) depois faça uma colagem com revistas velhas;
4) beba mais um copo;
5) descreva as sensações do inexprimível;
6) chame uma ambulância.




Todo pronunciamento é uma falha.
A Queda do homem está na linguagem escrita e falada.
A expressão que diz, é de uma pobreza intolerável.
Dizer é contestar a universalidade.
Dizer é deixar de dizer o resto que não se disse.
Traduzir é equivocar-se ao quadrado.
A linguagem é uma bomba relógio ao contrário,
que vai nos deixando cada vez mais distantes daquilo tentamos buscar com ela.
Todos os livros e discursos são silêncios prematuros.
E as poesias, crianças cagando nas fraldas.



sexta-feira, 19 de agosto de 2011

O CHURRASCO DOS DEUSES


Dalí, que acabou namorando eternamente.

Um amigo que começou a namorar a pouco tempo,
criou em tempo recorde uma barriga que nunca teve.
Talvez case em breve.
O casamento é o corredor da morte no matadouro dos deuses.
Como se os nubentes fossem vacas no átrio de um frigorífico com câmaras frias.
Os deuses nos casam pra que a gente engorde.
As mulheres são enviadas pelos deuses pra nos fazer engordar.
Vamos aumentando a pança.
Criando carne.
Formando graxa.
Quando estamos no ponto,
como um bife que não é nem bem nem mal passado,
os deuses metem uma estricinina divina nas veias da gente.
Morremos,
com direito a velório, chazinho de carqueja e velinhas religiosas com a coluna atrofiada dizendo:
"...pelo menos descansou".
E enquanto os familiares choram no velório
(isso se a morte for caso de choro e não de festa),
os deuses divertem-se esperando que a gente vire o churrasco deles.
Acho que é preciso evitar o orgasmo do casamento
pra que o ímpeto de sono-pós-orgasmo não amoleça as carnes do relacionamento.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

POESIA FUTURO





Uma conclusão é sempre um atraso atrasado.
O preconceito das datas é assim:
Você planeja que a data seja assim,
Mas ela acaba sendo assado.




segunda-feira, 15 de agosto de 2011

NASCENÇA





Quando os “olhinhos infantis” do Caetano soaram pela sala de cores,
disfarcei meu sentimento olhando para as letras do livro,
sem, porém, ler palavras.
Ela escrevia uma receita nova, a “Pizza Freudiana”.
As receitas iam virar livro, e isso já era um projeto,
um prato solto no ar que deveria receber um tiro certeiro.
Ela também disfarçou, mexendo a caneta sem nada escrever.
Então cantamos em disfarce a música enquanto a música tocava,
um olhando para a folha do livro, outro para o caderno.
O risinho meio safado meio de Buda, não era de se ver, mas sabia-se.
Éramos disfarçados e disfarçáveis nos tantos que tínhamos que carregar com nossas criações.
Ela falou umas coisas que não consegui entender.
Desconsiderei, ela falava sozinha.
Tinha uma loucura,
e por isso era minha mulher sendo, antes, um broto do mundo.
Uma propriedade dos deuses que eu tinha alugado com moedas de sorte.
As normais são muito anormais pra mim, sinto fadiga.
Disse que estava com 70% de vontade de mijar,
quem na terra há de saber o que significavam os outros 30%?
Talvez fosse um pretexto sincero pra ficar ali comigo,
como quando deixamos de mijar pra ficar na cama no domingo de manhã.

Depois olhei ao redor,
tentando entender todas as aquelas cores.
Mas não dá pra entender as cores.
O colorido confunde quem vê.
A sedução é uma confusão de sentidos.
Estava de novo seduzido, enfim.

domingo, 7 de agosto de 2011

o homem vitruviano




O homem vituviano chegou sem bater na porta. As grandezas que são recheadas de intensidade, em geral, não são matéria anunciada. A presença do homem vitruviano requeria um vinho especial, uma iluminação confortável aos olhos, uns sonetos sem linguagem na caixa da vitrola. Velas disfarçadas de vela nos cantos da mesa lateral. E eu. Quem mais? Quem mais, me diga destino, destino meu? Haveria paciência capaz de suportar o transborde do meu lamento de poeta? Se não sou um aos olhos da história, sou aos meus olhos que veem o quê apenas quero ver. Que outros olhos importam para quem não pode ver demais? Ou será que vejo de menos?

Sobre ver, o que sei é que ver-se é a única maneira de pertencer, isso caso você seja alguém que percebe o engodo da existência. Pertencer é uma mentira coletiva, um pretexto. Pode ser uma igreja, podem ser as metas da sua empresa, pode ser o filho que nasceu e que chora por seu cuidado, fazendo você se sentir único num mundo que ignora coisas únicas. Pode ser sua egrégora de final de semana, pode ser sua família, pode ser o esporte, o videogame, a cervejada no fim do expediente... pertencer a si mesmo, no entanto, no ardor calmo das letras, é saída possível ao poeta, que vai em solitude lapidando os pensamentos, alinhando as desordens do caos que há dentro da alma, compreendendo que a compreensão da desordem depende do ajustamento mecânico das frases. Que as frases nada digam é expediente corrente ao poeta, que em geral é bom em estuprar a linguagem. O poeta é um mecânico das letras assim como um mecânico é um mecânico de carros. Mecânica há até no pensamento, vejam só. Eu, ali, tendo tudo que havia ao meu redor, existia, existindo errado.

Enfrento o outro esforçadamente, fardo-me e, logo, me farto. Entendo a necessidade de abraçar meu entorno, sei dessa importância para a bússola que aponta ao norte nosso. Percebo a benção que haveria se eu fosse o útero materno das coisas que me envolvem, me cobro, me culpo, me julgo, me absolvo... mas sempre duvidando da sentença e da soltura. Absolvo-me pelo esforço mas condeno-me pelo fracasso interno que a mim grita quando não suporto o assalto dos outros àquilo que penso. Quero pensar o que o pensamento em mim pensa, não aquilo que quer me pensar por coação de forças que não estão em mim. Sou o tipo egoísta, portanto? Nunca saberei saber o que é o ego ou o que são os ismos. E por isso pasmo!

Quero diluir-me naquilo que ganha vida em mim por meio das letras? Quero vencer a necessidade de crer na bendição do discurso da aceitação...Mas me incompreendo, irrisório, flácido em relação aos demais que também pensam o que eu não penso... Como posso não querer o que querem? Como posso destino meu? Como posso não sorrir pelo riso que dá riso aos rostos todos? E como posso rir do que em geral não é matéria para fazer riso? Como posso não ter objetivos tão puerilmente anestésicos a ponto de estar condenado durante sabe se lá quanto tempo a ter clareza de que a maior delicadeza da vida é acreditar em mentiras? Ou, senão, ser grande suficientemente para, mesmo descrendo, embriagar-me de consciência para crer mesmo ante toda ausência de sentido, ante toda falsidade do paladar, ante todo o deslumbre dos olhos?

Abandonei o fardo da minha carne sobre o chão gelado do inverno. Abri o peito como se mal na terra não houvesse. A entrega aos ares mansos do universo fez de mim o vitruviano. Pensei no quê as pessoas pensam quando pensam no homem vitruviano. Pensei em como da Vinci pensava penetrantemente e materialmente a ponto de transformar tanto a realidade, em fazer sentido para o passado e gerar plausibilidade ao porvir. Pensei nas teorias, nas ratoeiras enganadamente montadas sobre as razões da criação do vitruviano pelo gênio. A genialidade faz da certeza da ilusão o sangue que mantém a vida dentro do corpo existencial. Será que o homem vitruviano tem um coração capaz de viver sem pulsações? Os corações sempre precisam desse vaivém...pobres corações necessitados. Meu coração é uma carne enganada, um pedaço de vida desconfiado, mas que espreita pelos andarilhos a trazer novidades vindas de outros reinos e pelas donas a balançar suas ancas sorridentes. Espreito na sacada que outrora foi de tantos que também encostaram a bunda no parapeito para tragar com mais suavidade o suicídio do cigarro.

As velhas que não amam morrem corcundas porque o coração amargurado lhes rouba a postura da coluna, pobres velhas mal amadas. Talvez eu me deva delclarar, então, um novo mal amado porque amo essas letras que eu vou letrando ao longo da tela? Só me vitimizo porque preciso pensar que há em mim uma cura a ser feita, caso contrário, declararia minha morte por automatismo, que é uma espécie de morte ainda não prevista nem pelos livros de medicina, nem pelos livros de psiquiatria. O amor é a única ilusão que nos cega. Cegueira é pior que aids, a cegueira é a única das doenças que realmente é incurável. A aids já foi controlada, o câncer só mata quem não pode fazer renascer suas partes podres, o ebola acho que só existe mesmo nos filmes... porque tudo que vive longe de mim não vive em mim. As demais ilusões como a continuidade da vida, a prepotência da matéria ou mesmo a nossa fajuta lógica dos desejos podem, todas, ser descortinadas com a visão de um olho. O amor indomável nos deixa de olhos abertos no fundo do oceano escuro. É bom saber que a qualquer hora um tubarão me partirá ao meio, dilacerando minhas carnes e livrando minha alma, talvez até mesmo dessas letras.