sábado, 21 de novembro de 2009

Catalepsias de amor


FÚNEBRESIRONIAS

Diferente do imaginado e do que havia sido,
foi um fim protocolar.
Em verdade não tinham,
em momento algum, sido protocolares.
Enganava-se ele,
ou mesmo ambos,
pelo erro corrente de todos:
pensar-se especial.
Todos sempre caem na mesma trampa.
E nada mais do que
pela qualidade anestésica do amor.
A armadilha ferrava com intelectuais e meliantes.
A cura, então, só foi possível
com pílulas no instante do choque,
e com repaginação, essa, passada a pancada.
Repaginar – pensava – era a solução.
Resolveu então organizar as lembranças.
Tinha como certo que cada amor vivido e passado,
merecia um pomposo funeral.
Sempre condicionado por ser ou não ser amor.
Não fosse, devia ser jogado aos porcos,
isso se restasse algum corpo para contar a história.
Se nem corpo restasse, simplesmente,
apagava-se a luz e dormia-se.
Mas tendo sido esse um amor,
contemplado estava a provar o rito de passagem.
Merecia seu espaço no subsolo da alma,
ou noutro sítio sagrado, individualizado e definido.
Definiu o armário para tanto.
E aquele morto amor, agora passaria a dividir
um espaço eterno com
as tralhas, as bugigangas e outros amores defuntos.
Assim tinha sido com outros ensaios de amor.
Aquele lhe parecia, porém, ter um cariz notável.
Mas bem não podia assim determinar,
pois ainda estava embebido por ele.
E as cabeças más sempre suspeitavam que
não havia neutralidade para se falar de defuntos vivos.
Havia uma lenda que contava que algumas pessoas,
ainda que parecessem mortas,
seguiam a encher os pulmões de ar no seu próprio velório.
Lenda ou catalepsia, não importava.
Fato é que havia um ar naquele funeral.
Assim, não tinha legitimidade para falar
de uma morte tão duvidosa quanto esta,
pois lhe parecia que o defunto lhe escutava
mesmo quando pensava baixinho em completa solidão.
Mesmo assim, resolvera enterrar,
tal qual os corpos podres e mal cheirosos,
aquele amor que, em verdade,
cheirava a broto de terra molhada da chuva.
***
Os corpos mortos nas tumbas e gavetas dos cemitérios
eram agora tudo isto:
as fotos, com e sem recados no anverso,
as bijuterias sem par,
as tarrachinhas desencontradas,
as peças de roupa com bolinha,
também as peças íntimas furtadas dolosamente,
os escritos todos, desde os bilhetes sem propósito
até as cartas obrigatórias das datas obrigatórias,
as entradas de cinema esquecidas no bolso,
as entradas de um show de jazz franco-americano,
e o que mais restava,
conservasse ou não o cheiro primeiro.
Tudo isso com as lembranças imateriais e sem corpo,
constituíam o corpo-mor de um amor declaradamente morto.
Morto pela imprensa oficial e pelos anúncios dos jornais.
Para alguns desses corpos de amor morto um envelope bastava.
Outros requeriam uma caixa de bombons.
Os demais, algum grande baú ou coisa parecida.
E nunca tivera por aquelas redondezas,
nenhuma morte de amor de baús.
E as pensava quão dolorosa seriam.
***

Reuniu os fragmentos desse posfácio
numa caixa que antes guardava uma camisa sem cor.
Seria o bastante para o presente caso.
Não representava nenhuma pequeneza,
mas apenas a prematuridade daquilo tudo.
Estranhamente,
o corpo não cheirava mal,
e a caixa de camisas foi a única que não entrou
no armário reservado para organizar as lembranças!
E ninguém nunca soube se a culpa tinha sido
do coveiro, da caixa de camisas, do defunto ou do armário.

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