terça-feira, 31 de agosto de 2010

Elogio à escrita




ENTRESCREVER


Tenho amputada a mão
quando com cinco dedos a vejo.
É que me causa aflição,
quando a caneta se posta longevo.


PFF

domingo, 29 de agosto de 2010

Discurso de Steve Jobs na Universidade de Stanford

Aulas terapêuticas têm o objetivo de auxiliar os alunos para que encontrem seus personalíssimos caminhos. A porta por excelência que abre esses caminhos é a indagação. Quando se inicia um curso de graduação, é a indagação que deve prevalecer nos primeiros momentos de natural estranhamento com o mundo que se descortina. Porque fazer o curso que escolhi fazer? Na nossa aldeia tribal-urbana, em que continuam os médicos e bacharéis (e outros "doutores") como detentores dos lugares privilegiados na torre de Babel da "nobreza" (beeeeeem entre aspas), devem todos estar atentos para os caminhos do coração, como já disse Goethe, que podem (e apenas podem) ser diferentes daqueles indicados por nossos pais, por nosso meio e por todo o resto que nos circunda.

Também não se pode ser simplesmente ácido a ponto de não perceber a boa intenção de quem nos indica caminhos, já que a intenção, apesar de ingênua, é fidalga. Como é penoso fazer outros perceberem que o que lhes é caro na vida não é o que é caro para todos! O velho filme Sociedade dos Poetas Mortos representa isso que quero dizer, quando o rapaz que queria fazer teatro, sufocado pelas imposições do pai de ser um "doutor" reconhecido, mete um tiro na própria cabeça em busca da liberdade que não teve pela "boas intenções" do pai que, por certo, queria realizar seus projetos frustrados por intermédio do filho. Autenticar dogmas é preciso. E é isso, apesar da quase vitimização do S. Jobs, que o vídeo enviado pela Ana Sefrin mostra.

sábado, 28 de agosto de 2010

entreblogs: o sorriso da Monalisa


De papo com a amiga Deia, ficamos com a seguinte dúvida: porque a Monalisa sorri sem mostrar os dentes, se é que sorri?

O eterno sentir






Universal e atemporal, mesmo mesmo, só as sensações.

PFF

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Adestrar o monstro


Não tem jeito! Ainda que aos olhos de todos estejamos sempre (falsamente) estáveis, de banho tomado e roupa passada (porque a vida quer alinhar nosso desalinho natural), internamente, pelo menos uma vezinha do dia, o abismo nos abraça, nos jogamos, nos esborrachamos e depois, lambendo as feridas que fazem do nosso corpo e espírito um projeto de totalidade, subimos até a beira do abismo de novo, num movimento sem fim à la Sísifo, o incansável rolador de pedras da mitologia grega. INSIGHT: será que os Rolling Stones vem daí?

Mas voltando, o monstro indomável que nos habita dorme menos que nós, é incansável o filho da puta, invisível como aquelas lombrigas malditas que ficam comendo a comida que é nossa, e ficamos tentando durante todo o sempre domá-lo, agarrá-lo pelos chifres demoníacos que por certo carrega. A nossa natureza não entende esse palco que a gente mesmo criou. Durante o tempo de um dia, somos o vilão e o herói, amamos e odiamos. Pelas feridas nos invetamos como feridor. E talvez por isso que o tempo, não pelo simples fato de ser o assunto salvador da pátria no elevador, seja assunto corrente. Nos identificamos com ele, que muda tanto que engana até a "ciência" que tenta apreender o futuro dizendo se vai ou não chover amanhã. Entenderam porque a ciência é coitadinha? A ciência (ainda) não tomou ciência que opera com metade dos motores pifados.

E a guerra mes amie, a guerra não é essa que se pode ver, não se enganem não. Só depois que nos conquistarmos, poderemos conquistar o que está fora de nós. Eu não descobri nem a América nem a Oceania em mim, e o trabalho é deveras longo porque depois dos continentes tem esse universo todo cheios de buracos negros e lugares que nossas cabeças não entendem. Boa comparação para o bicho homem seria: o bicho homem é como o universo (sem maiores explicações).
E a não ser que se queira estar alheio de si-mesmo, renunciando a própria vida, a personalíssima vida que não é de mais ninguém - nem amigos, nem amores, nem filhos - além de nós mesmos; dialogar com si mesmo é o caminho para dialogar autenticamente com os outros. Namore-se, portanto. Com beijos invisíveis no espelho, a gente se entende com a gente mesmo. Quando a gente senta para conversar com a gente mesmo (frase de Érica), no silêncio de um crepúsculo (ou mesmo no banho que é o local de reflexão por excelência da pós-modernidade) não tem como mentir. O cara a cara conosco é um momento de opção pela autenticidade, a não ser que você não perceba os próprios vazios para preenche-los de invisível. É preciso preenchê-los de invisível mes amie. Eles não se enchem nem com os outros, nem com comida, nem com trabalho, nem com todas essas bugigangas do Shoptime e de todos os Shop do inferno que andam te dizendo (e te domesticando sem você sequer notar) que servem para ocupar nossos espaços não preenchidos...

Uma hora dessas o monstro filho da puta vai arrancar teus pedaços hein, ele adora os distraídos de si mesmo.

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Perguntinha filha da puta




Me fizeram a seguinte pergunta:


Porque tu, que és livre, não voas mais?


E cá estou, matutando, rastejando nas nuvens e voando entre as terras do chão; sem saber se abrir as asas é rastejar ou se rastejar é alçar voo. E duvido tanto da minha liberdade...como duvido!
Pergunta filha de uma boa puta!



domingo, 22 de agosto de 2010

Caminho das bocas



OCHEIRODOSILÊNCIO

A voz quando pausa
deixa um perfume no ar.
E por incompreensível causa,
enleios de beijo ocupam o lugar.
Mas não o toque das bocas,
senão o ainda não-beijo,
essa sim situação como poucas,
entre tantas, tão raras a se estar.

A invisível ruela até o lábio
cerca-se de jardins de cores.
São os amantes os sábios
que sabem confundir seus odores.
E que se sabem nas bocas em quase
a lançar no silêncio em pedido
que o desejo não extravase,
e se possa eternizar em cheiro
o dileto silêncio detido.


PFF

O poeta rasgador de guarda chuva


"En un texto violentamente poético, Lawrence describe lo que hace la poesía: los hombres incesantemente se fabrican un paraguas que les resguarda, en cuya parte inferior trazan un firmamento y escriben sus convenciones, sus opiniones; pero el poeta, el artista, practica un corte en el paraguas, rasga el propio firmamento, para dar entrada a un poco del caos libre y ventoso y para enmarcar en una luz repentina una visión que surge a través de la rasgadura, primavera de Wordsworth o manzana de Cézanne, silueta de Macbeth o de Acab. Entonces aparece la multitud de imitadores que restaura el paraguas con un paño que vagamente se parece a la visión, y la multitud de glosadores que remiendan la hendidura con opiniones: comunicación. Siempre harán falta otros artistas para hacer otras rasgaduras, llevar a cabo las destrucciones necesarias, quizá cada vez mayores, y volver a dar así a sus antecesores la incomunicable novedad que ya no se sabía ver."
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Extraído do blog Deleuze de Fernando Reberendo.

sábado, 21 de agosto de 2010

Tabacarias





TABACARIA ESSENCIALISTA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
(Fernando Pessoa)

TABACARIA EXISTENCIALISTA
Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sentimentos do mundo.

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Barulhinho bom

Sem caber de imaginar,

até o fim raiar!

plim plim, plim plim-plim, plim plim, pirilimpimpim.

Filosofia do chiclete: dialogando com Luiza


O chiclete quando perde o doce, ainda que mantenha a capacidade de grudar, acaba sendo jogado fora. Às vezes no lixo, às vezes no chão, que são lugares bem diferentes. Temos que atentar para que se jogue os chicletes sem gosto sempre no lixo, que são o cemitério dos chicletes sem porquê, caso contrário, corre-se o risco de que nossa distração permita que o chiclete sem gosto grude na sola do nosso próprio sapato. E convenhamos, ô coisa desagradável chiclé na sola do sapato.

quinta-feira, 19 de agosto de 2010

Inter campeão e a felicidade nostálgica

Eu vinha esperando, numa infinita e paciente quietude. Queria ter certeza de que poderia lançar legitimamente um veneno para os azuis quando o colorado de glórias superasse o rival em títulos nessa corrida histórica. Nunca tinha falado de futebol por aqui, senão para celebrar a amizade e dizer que o futebol, diferentemente das suas razõs normais, se presta apenas para aproximar, para fazer assunto, para nos identificar. Superar a ideia corrente acerca do futebol é tentar vencer a cultura dogmatizante, afinal, ninguém duvida que para os fervorosos, o seu time é um locus de onde emanam verdades apodíticas, quase divinas. As paixões fortes são o sol que nos ilumina, meus amigos. Não as ter é acostumar-se a sentir frio.

Mas é que venho trilhando um caminho de luta contra o dogma. E o futebol não ficou de fora. O meu inter do coração, que tanto me fez sofrer quando eu era guri, no tempo de colégio em que o grande rival azul abocanhava todos os canecos, entrou no barco dos dogmas inquestionáveis que combato hoje com unhas e dentes. Até se pode pensar que estou complicando, já que bastaria comemorar, azucrinar a paciência de quem tem sono com um buzinaço de madrugada e encher o saco dos amigos gremistas. A sinceridade que tenho comigo mesmo não permitiu nada disso e, depois do jogo, quis comemorar a minha cama nova tão cheia de espaços, sagrado reduto dos cansados.

Esperei para falar do colorado porque sou da filosofia de que é melhor ter um passarinho na mão que dois voando. Estou com os dois na mão, os dois canecos que teriam me feito tão feliz na época do colégio e do microonibus que ia de Casca para Marau. Mas (sempre ele) lembrando a perguntinha filha da puta do recém ausente Saramago quando ganhou o nobel de literatura, agora somos bicampeões da América...e quê? ou, e aí? As vezes tudo parece tão nada, nadica de nada... Ganhamos a América e na verdade eu lembrei dos meus amigos gremistas, saudoso de todos eles. Fiquei foi nostálgico com o bi colorado, lembrando do bicampeonato do Grêmio, quando jogava supernintendo com o Vini e comia Cheetos com Coca-Cola, naquele tempo em que os dogmas justificavam minhas alegrias e tristezas, no futebol e fora dele...

Hoje é um dia nostalgicamente feliz. Que frio de mim.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Acordar



Meu maior sonho?
Meu maior sonho é acordar, acordar completamente.
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PFF

terça-feira, 17 de agosto de 2010

Platão e a unidade no amor



[...] desde que a nossa natureza se mutilou em duas, ansiava cada um por sua própria metade e a ela se unia, envolvendo-se com as mãos e enlaçando-se ao outro. No ardor de se confundirem, morriam de fome e de inércia em geral, por nada quererem fazer longe um do outro. E sempre que morria uma das metades e a outra ficava, a que ficava procurava outra e com ela se enlaçava.
Tomado de compaixão, Zeus consegue outro expediente, e lhes muda o sexo para frente – pois até então eles o tinham para fora, e geravam e reproduziam não um no outro, mas na terra [...] É então de há tempo que o amor de um pelo outro está implantado nos homens, restaurador da nossa antiga natureza, em sua tentativa de fazer um só de dois e de curar a natureza humana.

Platão, O Banquete

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O Direito no País das Maravilhas - Última parte


Voz firme contra a dominação das características masculinas alastradas no paradigma cultural ocidental, Warat afirma que o maior problema do excesso de racionalismo no Direito é a perda de sensibilidade. Uma insensibilidade que toca aquele que julga e seus vínculos. Que torna insensível a percepção do mundo pela frieza da ficção de verdade, que fomenta uma fuga alienante, que proporciona as abstrações e os anseios modernos de universalidade que não permitem perceber o que a rua grita.

Tal qual Capra, que fala de uma cultura nascente e vaticina o equilíbrio entre os opostos culturais e psíquicos, entende-se que, no Direito, movimentos como o Direito alternativo , o Direito Achado na Rua e as inovações da resolução n. 9 do CNJ com o horizonte de humanizar o julgador, ainda que incipientes pela desatenção à autoridade constitucional e pela provável dogmatização das disciplinas propedêuticas nos certames para magistratura, são vagos prelúdios que confirmam, no âmbito jurídico, os prenúncios de Capra e a sensibilidade tão reclamada por Warat. Na mesma linha – porém com mais chance de êxito – estão as novas propostas de descentralização e desburocratização do poder jurisdicional por meio da mediação.

Sem que aqui se alongue as explicações em torno do “como” fazer ou extrair resultados da mediação, apenas ressalta-se que esta é uma proposta que busca, por meio do resgate da sensibilidade própria do feminino cultural, analisar o tipo de Direito a ser aplicado em sociedades/comunidades determinadas, diferenciado-se, assim, o Direito regulador do Estado deste Direito que emerge da mediação e que tem um caráter emancipatório. A mediação busca aquilo que já Nietzsche havia reclamado da sociedade: quer estar além do bem e do mal. A mediação não se preocupa com a adequação do fato à norma, própria do prístino Direito, mas com o bem estar daqueles que estão envolvidos no conflito, vendo na autocomposição uma possibilidade de superação das angústias inarredáveis de todo e qualquer conflito.

A resposta que o surrealismo dá ao Direito com a mediação é, em verdade, uma reticência amorosa, que só pode ser alcançada por meio da recuperação das forças de yin na cultura ocidental. Se entregar à mediação é não querer vencer, de lado a lado, mas aparar contundências. O novo Direito que emerge da mediação tem como condição um novo homem, afinal, para que a colheita seja abundante, antes de revolucionar a terra, é preciso estar atento à saúde da semente...Esse novo indivíduo pertencente à sociedade deve permitir a abertura das cancelas que guardam seus territórios subterrâneos e inconscientes, copiando o desapego e a coragem de Alice.

ÚLTIMAS ANOTAÇÕES

A verdadeira democracia, diz Warat, é o direito de sonhar o que se quer. Para tanto, vencer a centralidade egóica, permitindo que os desejos coletivos se constituam como expressão da fraternidade, é também tarefa essencial para que se tenha na mediação um passo inicial de superação do Direito patriarcalizado instituído que já não se amolda aos reclamos da atual sociedade da angústia.

Castoriadis, ao comentar os efeitos simbólicos na sociedade que institucionaliza a solução dos conflitos, alerta que a instituição estabelecida por meio desses contornos projeta no meio social uma verdade construída por indicativos essencialmente objetivos e formais, onde, por meio da juridicidade, legitima-se um entendimento manipulador de interpretação que conduz a um vazio existencial acomodado justamente pela amordaça e pelo sentimento de segurança que as relações internas de uma determinada instituição tencionam supostamente proporcionar.

O imaginário, por conseguinte, surge como um baluarte em que sua força motriz potencializa no inconsciente de cada subjetividade, a argamassa rejuvenescedora que considera as reais necessidades e desejos de forma vocacionada. Essa projeção espontânea refletirá na espiritualidade de cada ser de forma a direcionar o elemento criativo para uma perspectiva que se deixe brotar o surgimento de novos significados das relações intersubjetivas no cenário das instituições.

Albano Pêpe é exato ao usar o Chapeleiro Maluco da narrativa de Carroll como analogia da institucionalização do Caos:

O Chapeleiro é um personagem onírico que acontece nos sonhos de Alice [...] A partir destes lugares-personagens posso pensar a des-ordem, o Caos, a ausência de um sistema de ordenamentos que estabelecem “sentido” para os habitantes do mundo sublunar, marcado pelo tempo histórico. Mas, alguns destes habitantes percebem fissuras nestas densidades espaço-temporais, nestas densidades institucionais produzidas para ancorar os animais pensantes que somos. Tais fissuras, tais brechas, negam o totalitarismo das práticas discursivas absolutas; e assim, produzem outras densidades, sutis e plenas de novos sentidos, que por sua vez libertam as subjetividades aprisionadas nos “corpos desaparecidos” [...] A modernidade produziu estrategicamente instituições, instituídas de tal forma como se existissem desde sempre [...] O instituído é o Leviatã que a todos pretende submeter através dos signos postos como significante únicos produtores das máquinas racionais educativas. A nós cabe o permanente deslocamento, o estado do nomadismo, errantes de muitos lugares, errantes em um mesmo lugar, onde o instituinte não nos alcance, ali onde o Chapeleiro Maluco se movimenta, no Caos. Des-velar, retirar os véus que encobrem os lugares eruditos das falas dos mortos.

Diga você leitor, que pode estar achando esse texto uma insanidade, uma grande loucura, você está ai pensando eu bem sei, pensando nesse absurdo todo. Pensando que o surrealismo para o Direito é apenas uma vã tentativa de buscar poesia e algum lirismo em lugares em que tudo isso não existe. Que isso é como a charada sem solução que o Chapeleiro Maluco faz à Alice quando a interroga: “Por que um corvo se parece com uma escrivaninha?”... Repito que para nós surrealistas, o absurdo não é soldado do exército do mal. E é esse “estado do absurdo” que quero dar-lhe de presente. É esse “estado do absurdo” que necessita, de você paciente leitor que conseguiu chegar até aqui, o universo que o cerca. Então diga ai leitor incomodado, do alto do seu “estado de absurdo”, qual a sua compreensão do mundo que todos nós necessitamos?!


sábado, 14 de agosto de 2010

Quadra dos amores que são






Eis o segredo revelado
do amor perfeito e certo:
Primeiro fique acoplado,
depois fique perto.


quinta-feira, 12 de agosto de 2010

Pós-modernidade simplificada




A pós-modernidade é uma loja de 1,99
com produtos de preços variados.

Poema de e para hoje, mas apenas para hoje




LISBON REVISITED (1923)

Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.
Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.

Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui a metafisica!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências (das ciências, Deus meu, das ciências!) ­
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?
Se têm a verdade, guardem-na!
Sou um técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?
Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim,
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul ­ o mesmo da minha infância ­,
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!

Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta.
Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo...
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!
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Álvaro de Campos por Fernando Pessoa

Casa Caio Fernando Abreu


Colaborando com o movimento capitaneado pela amiga Deia, este blog se alia à campanha de preservação da Casa Caio Fernando de Abreu no bairro Menino Deus em Porto Alegre. Essa força toda é para que futuramente possamos contar com mais um reduto cultural na capital gaúcha, nos mesmos moldes (se bem que a palavra molde não muito me apraz...) da Casa de Cultura Mario Quintana. Todos grandes, como Caio, merecem que se eternize capelas de preservação e difusão de suas obras. Em Lisboa, por exemplo, já existe um espaço belíssimo para o magnânimo Fernando Pessoa e os tantos que o habitavam, lá as paredes literalmente falam e têm ouvidos. Em breve, na mesma Lisboa, inaugurará a Casa José Saramago. Nada mais justo que nós, admiradores de Caio Fernando Abreu, façamos uma força para levantar sua capela em nossas terras.

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Alunos da FURB: atenção!


"A humanidade nunca foi educada para a paz, mas sim para a guerra e para o conflito. O “outro” é sempre potencialmente o inimigo. Levamos milhares e milhares de anos nisto."


José Saramago

domingo, 8 de agosto de 2010

O Direito no País das Maravilhas* - Parte 5


Buscando sair do País das Maravilhas, Alice indaga o Gato: “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?”Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato. Tem o Direito, por si só, livre arbítrio para eleger seus caminhos e suas chegadas? Ou, ao contrário, é mero títere da cultura e da consciência coletiva do seu tempo? Onde estará a fonte inconsciente do Direito, para que lá se possa servir do maná curador de todas as chagas?

Para que se possa aproximar à idealização de Warat, que pretendia trocar os fantasmas do Direito pelas suas fantasias, é necessário compreender que o Direito codificado da modernidade nasce da mente do sujeito “ainda sem inconsciente”, ou melhor, ainda incapaz de percebê-lo. Quando a modernidade declara que a razão é a essência do homem, revela um estado fragmentado, uma não essencialidade suplantada pela monarquia do reino da lógica. As poeiras do inconsciente, a franja de significações pressupostas, o mundo por trás do espelho (que sempre nos cega diante da obviedade narcísica da autoimagem); tudo isso é esquecido na produção do Direito moderno que ainda hoje tanto deixa rastros.

Enquanto no livro de Carroll a batalha entre o Cavaleiro Vermelho e o Cavaleiro Branco pode representar simbolicamente um embate inconsciente de Alice entre seus pares de opostos (masculino X feminino); no filme dirigido por Burton essa simbologia é ainda mais presente quando os exércitos Branco e Vermelho se confrontam. O Exército vermelho, representando o animus de Alice, já que comandado pela tirânica Rainha que resolvia todo e qualquer problema decapitando seus convivas ("Cortem-lhe a cabeça!"); e a Princesa Branca, representativa do genuíno feminino de Alice, expressão da delicadeza, da bondade e da fraternidade.

Outra categoria de Freud que foi revista por Jung foram os complexos. Desmentindo o caráter patológico dado por Freud, Jung os considera como unidades funcionais de energia psíquica, presentes no inconsciente pessoal-biológico. Apropriando-se da noção freudiana dos pares de opostos, Jung afirma anima e animus como dois dos principais complexos presentes na natureza da psique. Desse modo, anima representaria a parte feminina oculta no inconsciente dos homens e animus a parte masculina oculta no inconsciente das mulheres.

Também Capra, apoiado na estrutura oriental do I-Ching, observou a relação entre feminino e masculino. Sua análise, porém, foi mais abrangente e tocou a alternância na cultura destes dois pólos arquetípicos: o yin como representação simbólica do feminino e o yang como representação simbólica do masculino. A dinâmica desses dois pólos esta associada a várias imagens antagônicas colhidas na natureza e na vida social. O autor refere que da mesma forma que homens e mulheres passam por fases yin e yang, também a cultura, como fenômeno dinâmico, experimenta picos em que um aspecto se sobrepõe ao outro. A cultura ocidental patriarcal, que tentou estabelecer de forma rígida que todos os homens e mulheres têm exclusivamente aspectos masculinos e femininos respectivamente, distorceu o significado desses termos da sabedoria chinesa e colocou os homens como protagonistas na cultura. O predomínio do pensamento racional se sintetiza no cogito, ergo sum cartesiano e demonstra que os indivíduos ocidentais equipararam sua identidade com sua mente racional e não com seu organismo total, cingindo arriscadamente corpo e mente. Associando o yin ao intuitivo e o yang ao racional, Capra constrói sua tese demonstrando que atualmente assiste-se a uma transição cultural que culminará com o enfraquecimento da cultura patriarcal e a inflação do feminino, cambio que, consequentemente, suplantará a supremacia do racionalismo em detrimento das características próprias do feminino (yin), como a intuição, a criatividade, a sensibilidade, a emotividade e todos estados ampliados de percepção da consciência.

Sem a pretensão de alongar a argumentação em torno da supremacia dos aspectos masculinos e da sujeição da mulher na cultura ocidental, por ser uma constatação de obviedade ululante, principalmente no período iluminista em que se construíram as bases do positivismo jurídico; cabe mencionar en passant que esse resultado cultural tem raízes históricas. Na Grécia antiga, as mulheres já eram marginalizadas e comparadas com estrangeiros e escravos, vivendo sempre sob tutela e dependência de algum homem da família (pai, irmão ou marido). Em Sêneca, Cícero e Terêncio; é possível vislumbrar o parco valor atribuído às mulheres pelas sociedades de seu tempo, quando afirmam, respectivamente: a mulher apenas ama ou odeia, e quando pensa, pensa somente coisas malvadas; a mulher tem tendência a delinquir em razão de sua ganância; as mulheres são fracas de intelecto, quase como crianças. Também o conhecido relato bíblico de Provérbios VII (25-27), confirma o truculento repúdio ao instinto feminino: a mulher é mais amarga que a morte porque é uma armadilha; seu coração, uma cilada; suas mãos, cadeias; quem ama Deus foge dela, quem é pecador é capturado por ela. Esses breves relatos e a ainda persistente – mesmo que verdadeiramente amenizada – cultura patriarcal, de homens que possuem melhores postos de trabalho e salários, posições políticas e diretivas, demonstram a supremacia de yang e a supressão de yin na cultura ocidental.

Além disso, a ideia do homem como dominador da natureza e da mulher, e a crença no papel superior da mente racional, se apoiaram na tradição judaico-cristã, que adere à imagem de um Deus masculino, personificação da razão suprema e fonte do poder único, que governa o mundo do alto e impõe sua lei divina. O progresso da civilização ocidental se deu, pois, pelo predomínio da intelectualidade e da racionalidade, sendo que, atualmente, essa evolução unilateral atingiu um estágio alarmante. Incapacidade de manutenção de um ecossistema saudável, dificuldade na administração das cidades, falta de recursos para uma adequada assistência à saúde, educação e transportes públicos, riscos da ciência médica e farmacológica e – acrescente-se – o sistema caótico e burocratizado do Estado e particularmente do Poder Judiciário, um Poder paquidérmico, caro, oneroso, devolvido a sua grande missão: garantir os contratos sinalagmáticos e a propriedade privada, em nome da confiabilidade no mercado internacional, como assinala Morais da Rosa; são alguns dos resultados da exagerada ênfase dada à polaridade yang (masculino) na nossa cultura.
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CONTINUA
* Versão sem notas de rodapé e indicações bibliográficas

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

Alan Pauls

Entrevista com o escritor argentino Alan Pauls que fala sobre linguagem, amor e esquecimento. Quem considera o diálogo como cenário amoroso e o amor como uma patologia alienante é, por essas poucas razões, paradoxal e interessantíssimo, como só os paradoxais podem ser. E profundo, não há dúvida. Dias atrás ele participou de uma outra entrevista na Globo News em que falava dos entremeios da sua novela A História do Pranto. É um escritor "lado B" da turma dos contemporâneos latinoamericanos. Escreveu também O Passado, que foi adaptado por Babenco ao cinema. Fica a dica!

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

O céu dos amantes



Perceber, à dois, o teto do quarto,
é experimentar o céu dos amantes.


PFF

Sentir frio e sentir quem sente frio

O texto abaixo é do amigo Gabriel Divan. Fiquei felizão de ler o que ele escreveu. No inverno passado, eu e o amigo Giovani Rigoni fizemos em Passo Fundo o "Churrasco do Guerreiro" para alguns moradores de rua, com carne, cachaça e cigarro, tudo ao gosto do freguês. Guerreiro porque só sendo um para poder enfrentar uma noite de inverno com a barriga vazia e nenhuma coberta para jogar em cima do corpo. Comento não para publicizar a boa ação (ainda que seja melhor fazer e publicar do que não fazer porra nenhuma). O desejo não é fazer propaganda senão demonstrar que são as experiências que nos fazem ver os outros lados da moeda (pensar que a moeda só tem dois lados é o primeiro engano...). Falando com os moradores de rua, entendemos que é a bebida o cobertor invisível, o anestésico que bloqueia as sensações do corpo que enfrenta o minuano congelante. Entendemos que os moradores de rua dormem durante o dia porque o sol dá as caras e porque ninguém, mais resistente que seja, consegue ter uma noite de descanso e sono com a temperatura perto do grau zero. Entendemos que o "cidadão de bem" (o moralista chinfrin que o Gabriel fala abaixo) deveria entender essas coisas se tivesse a capacidade de se colocar e de perceber que a vida não é como os cem metros rasos em que todos partem do mesmo lugar. Tempos atrás a também amiga Deia Beheregaray escreveu sobre o elogio hipócrita dos adoradores do inverno, comparando a nossa natureza egóica que se põe a bendizer as delícias do vinho e da lareira enquanto esquece que o charme do inverno castiga quem vive mal ou na rua. A gente que felizmente não precisa sentir frio, tem o DEVER de sentir (e me incluo, e me condeno).






Em um dos mais bem sacados esquetes da TV PIRATA (indiscutivelmente o mais genial programa humorístico da televisão brasileira em todos os tempos – os mais veteranos que nem eu vão lembrar), repleto de ironia non-sense, Diogo Vilela interpretava um pedinte que atacava na calçada uma mulher – vivida por Regina Casé – e lhe pedia uns trocados para comprar cachaça (veja aqui - a partir dos 2 min. e 20 seg de vídeo).

“Que nada, eu sei que você vai é encher essa cara de PÃO“, dizia ela. “Não moça, eu juro que vou tomar uma cachaça“, retrucava ele. “Pensa que eu não sei que tu vai é encher essa cara de pão, seu safado“, sentenciava ela, sem dar o dinheiro e deixando-o sozinho em cena, conferindo seu próprio bafo.

Vagando pela NIGHT de Passo Fundo certa vez, TROMBO com uma figura que, sorrindo, me estende a mão querendo cumprimento. Sorrio de volta, mais por surpresa do que por ver alguém que, definitivamente, não é um conhecido.

A fera exibe sua CARTA DE APRESENTAÇÕES da seguinte maneira:

“Fala chefe! Passeando? Curtindo a noite, então? Beleza. Seguinte meu MEU DIRETOR, eu sou EX-PRESIDIÁRIO, cumpri uma cana aí por causa de UNS HOMICÍDIOS (sic.) e estou tentando aí ganhar a vida de novo. Estou meio DURO, chefia e queria saber se o senhor não me adiantava uns trocadinhos, QUALQUER CENTAVO aí…”

O que me chamou a atenção foi o que ele disse logo em seguida:

“..olha só, NÃO É PRA COMPRAR DROGA não, é só para eu TOMAR UMA CACHAÇA mesmo…”

Um pouco ENGOLFADO pelo senso comum no quesito ao longo de boa parte da minha aventura na terra, costumava praguejar que o ideal estaria em dar COMIDA ou algum OUTRO tipo de ajuda aos “necessitados”, eis que dar dinheiro, pura e simplesmente, era um passe na medida para que a pinta fosse correndo comprar loló.

Pois bem: e se o dinheiro for para comprar loló? Cola? Merla? Crack, enfim?

Respondo em duas palavras: MORALISMO CHINFRIM.

Se um amigo nosso pede um REFORÇO no meio da pira para arranjar uma GOTA ou uma BALA, a gente, QUANDO TEM, SE APRESENTA (e “se não tem tudo bem” – tal como na canção). Se algum ALIADO pede um MANGO no Siriú para pegar um FUMO com um parça na beira da praia, a gente empresta. Se a CONSUMA do BROTHER estourou na festinha, de tanta vodka entornada, a gente COBRE.

E o cara SUJO e FEDORENTO DA RUA: para ele a gente diz(ia): “sai fora que tu vai é FUMAR todas essas moedas, seu cretino, ao invés de comprar um café com leite”.

FODA-SE.

A situação é SÓ UMA: encaro a coisa da seguinte maneira hoje em dia – é um IRMÃO que está na (MUITO) pior. Ou você dá uma grana que estiver SOBRANDO para ele ficar um pouco menos na pior – seja de que jeito for – ou não. E pronto.

Tá a fim, colabora para o cara enfrentar a NEVE. Não tá a fim, não precisa pagar full time de Madre Teresa (mas também não XINGA, que não era).

Apertei a mão do galo e lhe estendi uns pilas em moeda que estavam dando sopa na CHARTER, e não sei se era para cachaça, para o fumo ou para a banana na quitanda. NÃO INTERESSA.

Não interessa MESMO.

Ou AJUDA ou NÃO AJUDA: esse “condicionamento” ao “gasto lícito” e ao “bom uso” da esmola é filosoficamente insustentável, a menos que o sujeito seja um asceta abstêmio Testemunha de Jeová ou um fundamentalista islâmico fanático.

Não é, mesmo, o meu caso nem o dos meus amigos e meus camaradinhas que me respeitam – pois é.

LOGICAMENTE não estimularia ninguém a fumar crack, assim como não estimulo meus amigos a fazerem uso do Chá de Fita e das demais boletas existentes. Agora: se eu vivo argumentando que quem QUER e CURTE se alucinar tem esse DIREITO, porque para o cara que me pede grana na rua eu vou REGULÁ-LO através da liberação ou não do MEU vil-metal?

Repito: a questão passa por estar a fim ou não de dar uma ERGUIDA nos CAÍDOS. Não interessa muito o fim MEDIATO disso tudo.

Até porque 100% das pessoas que pregam que “não é bom dar esmola” porque serve de “estímulo” para as pessoas “viverem” na rua não fazem absolutamente NADA nem tomam NENHUMA outra medida – por menor que seja – para mudar a situação de algum outro jeito.

Difícil é encarar que, diante do QUADRO, o MELHOR que temos a fazer, por vezes, é AJUDAR o cara a viver chapado para aturar a MERDA em que vive.

Somos bons ou maus, no fim das contas?

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Elogio ao surrealismo


ELOGIO AO SURREALISTAS

À vocês surrealistas, que puderam entender que a vagina, apesar dos poucos centímetros que tem, é uma terra de vastidão imensurável, que se perde aonde o poder dos olhos não alcança.
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PFF

a.S/d.S = antes e depois do sexo


"A relação vai bem na cama, mas no momento de olhar para o teto fica-se com vontade de sair dali e ser astronauta. Nenhum dos dois fala. Ambos tartamudeiam. A química da pele queima, só que a boca não funciona para outra coisa a não ser beijar. Como se portar? Tirar proveito do humor, brincar, atiçar papéis. Procure descobrir o que ela curte, solte curiosidades, confesse suas taras. Ousadia é melhor do que omissão, não importa a dosagem. Ninguém pede desculpa pela ousadia, mas é possível se arrepender pela falta dela. Em primeiro lugar, não deixe o silêncio tragar o casal. Fale do incômodo do próprio silêncio, se for o caso, para interceptá-lo. Está provado, mulheres gostam de homens divertidos. Rir já é voltar a transar. Fazer sexo é também conversar. O sexo não acontece somente no quarto. Inicia-se antes, no jantar, no cinema, nos olhares prolongados, nas mãos dadas, no jeito de contornar o rosto e o pescoço. A véspera determina a umidade. O homem também tem receio de ser enganado com o orgasmo. Um orgasmo fingido é o que mais o abala.

De que modo definir se ela está gozando? Pelo ritmo. O que é contido, sincopado, fica desgovernado ao final. Uma mulher se expulsa na hora H. Ou melhor, na hora M. Ela se derrama e a cama é escassa para recebê-la. Uma mulher quando finge continua segurando as rédeas. Uma mulher quando goza deixa ser levada pelo animal do instinto. Mas não questione nada. Se desconfiar que ela não teve arrebatamento, recomece em vez de perguntar. O orgasmo aumenta com a soma de vacilações e dificuldades. Uma mulher que demora mais para atingir o prazer será justamente a que terá maior prazer depois."


Fabricio Carpinejar, dica do blog da Lu (Mil Faces de Luiza)

domingo, 1 de agosto de 2010

O lado da cama


O LADO DA CAMA

Desde que o inconsciente existe, as coisas ficaram um pouco mais complexas do que sempre foram. Seja para preparar o ritual de dormir, seja simplesmente para tirar um “tatu” do nariz (se acaso for um regionalismo do sul, tatu é o que as legendas dos filmes americanos traduziriam por meleca...), fato é que desde que os psicanalistas e psicólogos invadiram o planeta Terra há sempre uma tentativa de explicação para cada movimento ou inércia das gentes. E eu aposto que o não-movimento é um prato que além de mais recorrente é mais suculento para os tradutores da alma, já que mais se ouve falar em mecanismos de defesa, obstáculos a se transpor, fixações passadas, traumas disso e daquilo, do que pessoas preocupadas em fazer do carpe diem uma filosofia de vida e chutar o balde (dizemos assim para mandar tudo às favas lá no Rio Grande, acaso se trate de novo de um regionalismo).

O tema do inconsciente interessa porque correlato à ele está um assunto mestre: as interpretações e as traduções (estas não em sentido idiomático obviamente), ou melhor, a tentativa de interpretações e traduções (não sejamos demais atrevidos). O inconsciente é, de alguma forma, o Deus pormenorizado de cada um. Se é verdade - e imagino que sim - que viver com religiosidade e a presença constante de um Deus é um alento pelo singelo fato de que há sempre uma justificação das coisas que conosco acontecem; pode-se dizer que o inconsciente é um Deus justificador de tudo o que fazemos, do tatu, passando pelas relações amorosas e profissionais, até o ritual de dormir. Não que exista uma lógica, afinal, o inconsciente é um ilógico bêbado com mais noção de nós que nós mesmos; mas é ele que, iluminado, nos ajuda a entender. Será o inconsciente o caminho, a verdade e a vida? E penso, pensando nisso, na frase do Quintana quando diz que “o destino é o acaso com mania de grandeza”. Aliás Deus e destino deviam ter mesmo nome, já que se prestam para a mesma função de justificadores. A dúvida ia ser para saber se manteríamos a maiúscula ou a minúscula...

E foi tentando traduzir uma vaguidade que resolvi pensar no lado da cama. Sim, o lado da cama que os casais deitam todos os dias, porque se sabe que são raríssimas as alternâncias de posição. Tem-se que é sinal de educação o homem deitar do lado que fica a porta, como forma de proteção inconsciente da fêmea frágil (que já não andam tão frágeis assim). Um resquício do tempo em que morávamos nas cavernas: o homem deitava no lado da entrada da caverna para tentar salvar a mulher sapiens caso algum animal selvagem invadisse o lar sapiens durante a noite. Desde esse tempo sapiens isso já é conversa pra boi dormir porque, na verdade, não se trata de educação senão solidariedade: “- não amor, deixe que eu seja devorado primeiro, faço questão”, devia dizer o Seu Sapiens para a Dona Sapiens antes de dormir... A não ser que se queira salvar a tradição e fazer dela uma justificadora cega, isso hoje em dia é uma bobagem porque ninguém sabe o que vem primeiro: um homem selvagem entrando pela porta do quarto (os animais selvagens andam mais raros...) ou uma bala perdida atravessando a parede do quarto.

Tradições à parte, no mundo pluralizado de hoje, provavelmente essa já não seja uma regra. O que não significa que não se possa entender porque, de algum modo silencioso, homens e mulheres elegem o lado de deitar na cama. É sempre silencioso, pensem vocês, o acordo que define o lado da cama. Se alguém já não lembra como foi a primeira noite no quarto de casa, tente lembrar do hotel, simplesmente homem e mulher instalam-se na cama, silenciosamente. Mas porque escolher um ou outro lado? Se pensarmos bem, os quartos das cavernas não eram do tipo suíte como são alguns hoje, então, será que deixar a mulher no lado da porta do banheiro significa um desejo inconsciente de jogá-la no vaso? Ou será que a mulher que força o homem a deitar no lado da porta do banheiro não quer indicar à ele que faça do banho um hábito mais recorrente? São infinitas as possibilidades, não há dúvida. Mais interessante que fazer essas cogitações é pensar nas camas que são encostadas na parede. Será que os que ficam entre o companheiro e a parede são os que gostam menos? Explico: pode ser que quem deite do “lado de fora” possa estar tentando inconscientemente prender o outro. Claro, quem quer prender é porque sente que o preso quer mesmo é fugir, o que explicaria a tese de que quem deita do lado da parede gosta menos daquele que deita no lado de fora, esse que gosta mais daquele que deita do lado da parede, que, muitas vezes, o que mais quer é deitar, inclusive, virado para a parede. Tem ainda os quartos com sala de vestir, o que aumenta as possibilidades; os quartos em que dorme toda a família, as vezes com sogra e cachorro junto; os de casais com filhos recém nascidos, em que o lado da cama pode ser uma definição do tamanho das responsabilidades com o rebento...e por aí vai. Mas essas coisas são apenas especulações sem nenhuma base teórica, pois no fim das contas o melhor não é entender o lado da cama, mas quem fica em cima ou embaixo.