segunda-feira, 31 de outubro de 2011

DISQUE BÚZIOS




Estávamos todos no meu apartamento fumando uns cigarros, bebendo umas bebidas e escutando Billy Holliday na vitrola. Eu gostava de festas de verdade. Por festas de verdade entendo estar com pessoas que valham a pena do mundo, lugares pra sentar, música suportável e, claro, bebida. Meu corpo cansa de ser bípede nesses tumultos de gente jovem. Conjunção perfeita para a dança de viabilidade da vida neste rito contemporâneo em que poucas coisas se justificam fora da inconsciência - dos sonhos ao porre.

Eu já tava conhecido entre os vizinhos como o vizinho problema. Depois de um estágio da bebedeira, para o bêbado, a lei do silêncio não existe. A antilei é uma lei que todo dionisíaco conhece. Era sempre a mesma coisa: o porteiro tocava o interfone como porta-voz dos vizinhos incomodados e eu prometia o fim da farra. Mas, como mudo bastante de uma hora pra outra, acabava não cumprindo o combinado. Daí ele batia na porta e era um pouco mais dramático, dizia que os vizinhos não estavam conseguindo dormir, que o bebezinho da fulana isso, que a velha caquética do 8º andar aquilo. Esse bebezinho, quando nasceu – é bom que se diga pelo bem da justiça – urrava a noite toda. Parecia barulho de porco sendo carneado. Uma praga auditiva da madrugada. Não que o choro dele atrapalhasse meu sono, mas hoje que sou eu que torro a paciência dos pais dele, posso usar isso como argumento pra dizer que estamos quites. Se a criança é inconsciente de seu choro esganiçado, o mesmo pode-se dizer da música de um bêbado.

A festa ia bem, com uma boa música na vitrola envenenada que ganhei do meu vô. Rolava um papo de música retrô misturado com filosofia barata, autoajuda angelical e contingência dos mestres ascencionados que controlavam as galáxias... enfim, todas aquelas mentiras que parecem verdade quando a gente bebe. Como sempre, o interfone tocou e o porteiro disse que os vizinhos andavam bem descontentes com o barulho que o meu antro pocilguento produzia. Eu disse que a lei do silêncio tinha sido alterada naquela semana, que tinha passado das 22 para as 23 horas, o que significaria 40 minutos a mais de farra, caso minha mentira fosse considerada. O importante era ganhar uns minutos a mais pra que a gente pudesse tocar mais umas músicas no violão, já que a essas alturas tinhamos desistido da vitrola e passado pro estilo quem sabe (bem pouco) faz "ao vivo".

A escassez do êxtase fazia com que eu o protegesse como se fosse um filho recém nascido. Tem esse papo de que o êxtase é o prelúdio da agonia, mas é que meditar me dá uma agonia desgraçada, então melhor ficar no jogo-do-claro-escuro e respeitar minha natureza dual e descontente. A imposição de ser equilibrado desequilibra muita gente, então melhor prescindir do equilíbrio, afinal, a vida não é uma corda esticada entre dois arranha céus, não vamos cair em lugar nenhum pois já estamos em terra firme e todos completamente quebrados pela humanidade que nos pertence.

A vitrola deu lugar não só ao violão, mas também à gaita de boca e às percussões de improviso. O porteiro devia estar procurando a alteração da lei do silêncio no Google... A qualidade de um ouvido de bêbado é insuperável: toda música produzida por gente borracha é afinadíssima. Como todos estavam num porre federal, a música que a gente fazia era uma orquestra sinfônica do etilismo.

Tocamos umas músicas a mais e o porteiro logo tocou à porta. Era uma boa pessoa, se divertia com a subversão alheia, tinha salvação. Abri a porta e ofereci um gole à ele, que recusou, afinal o emprego exigia que ele não tomasse nada - uma injustiça. Ele deu uma espiada pela escotilha da porta, curiosíssimo, louco pra abandonar o emprego e encher a cara com o pessoal. A vizinha apareceu na escada, com a criança no colo pra dramatizar (coisa comum nas mulheres) e disse num tom áspero que, em linhas gerais, eu não era um cara muito legal. Prometi a ela que o barulho acabaria. Pensei na covardia do marido dela, mas pensei que aquilo era mesmo instinto maternal de preservação do sagrado sono da cria. O marido dela devia estar bebendo uma cerveja ou fuçando na internet, com vontade de comer alguma capa da Playboy, insatisfeito com a mulher que tinha ganho, além da dor de cabeça, o argumento do bebê pra dar evasivas antifoda.

Como eu não queria que chamassem a polícia, acabamos o sarau. Alguém disse que ia ligar pra um cara que jogava búzios em Porto Alegre e que passava todas as revelações ao consulente por telefone. Achei que essa pilantragem, por ser por telefone, era muita pilantragem. A consulta custava 50 reais. Declarei o cara como estelionatário por puro preconceito. O pessoal me contestou, eu era minoria, o único cético entre todos. Eu disse que o ceticismo me impedia de acreditar que um cara do outro lado do telefone pudesse dizer alguma coisa que prestasse sobre a minha vida ou sobre o acaso do futuro incerto e prodigioso. Alguém disse que os búzios eram uma coisa fortíssima, sem explicar porque. Resolvi que devia pagar pra ver antes de dizer que não funcionava. Mas como meu telefone foi cortado porque as companhias telefônicas se tornaram as maiores batedoras de carteira do mundo global, melhor esperar pra ver se minha sorte melhora.

sexta-feira, 28 de outubro de 2011

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

GERÚNDIO



A vida,
se fosse um gerúndio,
estaria sempre acontecendo.

As pessoas,
caminhando pelas calçadas,
vão acontecendo.
Umas andam em trios,
outras andam sozinhas,
mas a maioria anda em pares.
Umas vão acontecendo de mãos dados,
outras não.

Olham pra dentro das padarias.
É preciso atender à função dos olhos e olhar pra qualquer lugar...
Ter sentidos e não usá-los?
Porque ser carne, então?
Querem os doces que estão à mostra,
como as moscas que não estão à venda.
Olham também as vitrines e, através delas,
querem uma blusa em promoção.
Olham os manequins de caras cortadas pela metade.
Esses manequins são tão estranhamente vivos.
Eles se identificam com os que andam pelas calçadas,
em grande parte, no quesito palidez.
(ou será o contrário...?)
Uma vez um amigo contou
que trepava com uma manequim que se chamava Preta.
Tem muita gente trepando com manequim pensando que é gente humana.

Nas farmácias não existem vitrines, mas soluções.
Remédios não têm vitrine porque são necessidade, dizem.
As soluções dos remédios sem vitrine querem matar as dores.
Sem dor não haveria nenhuma farmácia.
E elas são tantas por aí que até ficamos felizes de ter uma perto de casa.
Farmácias por perto valorizam os imóveis.
Dado fatídico de que estamos doendo é o excesso de farmácias.

O excesso de soluções, porém, nos afasta da morte.
Quando as curas eram poucas, a morte sempre rondava o berço.
Quando as curas eram poucas, morrer era normal como um peido.
O excesso de curas traz consigo uma culpa pela morte.
Como é que vou me permitir a morte
com todo esse aparato que existe pra me manter vivo? - indagam-se.

Se a morte é uma culpa em quem vive,
viver é um excesso de covardia?
Eu não sei se sou louco porque não sei saber as coisas.
Só sei a partir do que me descrevo inutilmente senão à mim.
Assim me descrevo sozinho,
no meio de pessoas sozinhas e de pessoas que andam em trios.
Mas a maioria delas anda em pares,
sendo elas por serem também o outro que lhes oferece uma mão inconfiável.
Estimo que boa parte dos solitários estejam enganados:
a salvação não está em outro solitário qualquer.
Estimo que boa parte dos trios esteja querendo se livrar dos empata-fodas.
Estimo que existem poucos casais que vivem em três,
como a Vicki, a Cristina e o Javier Barden.
A Scarlet nos enche de uma boa dose de esperança,
assim como as bundas novas.

Na calçada uma índia fumava um cachimbo
e segurava uma criança no colo
e vendia artesanatos inúteis e sem graça.
As pessoas iam acontecendo no passo metódico dos meus olhos.
Um pai que passava disse ao filho:
“...então o pai compra mais um presente se você me der um beijo”.
Os afetos também valem uns centavos, afinal, e nisso não há mal.

Dos cortes do mundo pingam moedas.
Cortando cebola esses dias, cortei um dedo.
O sangue manchou meu macarrão de bolonhesa humana.
Só que ainda pingo sangue no gerúndio, assim, pingando, pingando, pingando.
Somos uma goteira numa casa velha de teto furado que molha os lençóis.
E estamos num ônibus lata-velha que nos leva pro norte de lugar nenhum.
É um ônibus pinga-pinga que nos leva pingando.
Tudo moroso como caminhar numa piscina.

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

MÍNIMAS - 4


Roedor recém batizado numa igreja neopentecostal: "Abençoa senhor as famílias amém!"



Os difíceis dias difíceis de hoje são os mesmos dias difíceis de qualquer tempo. Democracia e "diretas já" com 256Kb de uma internet que cai mais que Jesus com a cruz e um trânsito-infernal-salve-se-quem-puder, não é democracia.

*

Sexo de amor verdadeiro não impõe variações pornográficas de posição. Sexo sem compromisso é sexo que varia em excesso. Abaixo à cultura kama sutra.

*

A modernidade líquida é, na verdade, a direção tradicional do Chico Buarque tratando o sexo como um floreio poético em oposição à direção futurística – meio Bukowski meio Raul Seixas – que quer comer a aranha de uma máquina de foder, com a cobra bem dura, claro.

*

É provável que a velhice seja a melhor de todas as férias. Sinto saudade de ser velho.

*

Quando se tem algum dom que pessoalmente custa muito e que, na verdade, não custa nenhum centavo, é sinal da derrocada da astúcia capitalista. A astúcia de hoje é uma produção do medíocre.

*

As ex-namoradas são cadelas paradoxais. Quando estamos pouco se fodendo pra elas, elas querem foder de novo com a gente.

*

Mais liquidez contemporânea: enquanto os corpos trabalham qual máquina, as consciências tateiam numa floresta escura.

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Loucura da superfície: um tópico para o futuro.

*

Tudo que se erige de grandioso com a laboriosa consciência dos trágicos, dos céticos, dos niilistas, dos subversivos e dos, assim chamados, reacionários, não lhes ameniza em nada a dor constante, quase eterna não fosse o sono.

*
Ditadura é quebrar o ovo antes, democracia, depois. No final, a mistura de mortes é a mesma: antes na vala fria, hoje zumbis desalmados caminhando pela rua.

*

 
Deixei de querer o cachorro que antes queria depois de racionalizá-lo. Se, por um lado, pensar é excluir, por outro, todos os afetos são infantilidades.

quarta-feira, 19 de outubro de 2011

OMELETE QUE NOS ESPERA NO PARAÍSO



A televisão como companheira é uma amante que ronca depois que goza. A TV fazia um zumbido chato. As costas no sofá estavam em desacordo com o ISO 9001, com a ABNT, com o InMetro. Eu era o homem natural, que tinha trabalhado o dia inteiro e que sentava resignado no sofá às dez da noite, sem saco pra ler, com preguiça de comer, sem vontade de tocar punheta, sem interesse no violão.

No canal de esportes, um campeonato de futebol que teria um campeão como em todos os anos. No canal de notícias, uma fraude na previdência, pessoas que tinham se aposentado por invalidez, mas tendo validez. Eles estavam dando cambalhotas ai, rindo, recebendo pra não fazer porra nenhuma (eu os invejava). O desequilíbrio dos trabalhadores que trabalham para que os vagabundos possam vagabundear, é o mesmo desequilíbrio do empresário que não faz porra nenhuma e tem cem funcionários que fazem força enquanto ele peida prazerosamente em alguma poltrona de avião rumo à um safári na África. O desequilíbrio é o mesmo de um muçulmano que pode ter cinco mulheres enquanto uma das cinco só pode ter o pau do muçulmano filho da puta. O desequilíbrio é o mesmo entre os que conseguem ter paz e os que vivem sob o manto do niilismo cético ou de surtos psicóticos. É trágico, sim, mas se não houvesse desequilíbrio, não estaríamos vivos, o que significa que não ganhamos nem o direito de reclamar.

O Galvão Bueno comentava a rodada do campeonato, odiado pelo Brasil inteiro, indiferente ao Brasil inteiro. Havia os seriados da TV americana com aqueles discos de risada que, por si só, tornavam tudo sem graça. Havia os filmes sessão pipoca, demorados, dublados, cansados. No GNT passava o “Superbonita”, um programa sobre beleza feminina feito com depoimentos de mulheres de plástico que diziem como era preciso levar a vida pra ter um rabo arrebitado e menos pelancas na barriga. O segredo é sempre o mesmo: comer grãos de bico, passar o dia remexendo o queijo da bunda numa academia narcísica, comer iogurte fibroso pra poder cagar direito – já que as mulheres vem geneticamente modificadas pra não cagar e, caso tudo isso desse errado, fazer uma plástica como se a mulher fosse um pedaço de carne de churrasco que o açougueiro corta com precisão burocrática para o que assado saia bem saboroso com a mistura da graxa e da musculatura bovina.

Essa ode à beleza é um dado importante do nosso tempo e, mesmo assim, é pouco testemunhado em relação aos seus verdadeiros porquês. A overdose do senso estético corporal é apenas um efeito de um tempo em que tudo se justifica pela materialização. Isso não tem a ver com o já detectado tempo do consumo ou o capitalismo selvagem combatido pelos marxistas que nunca leram Marx, mas sim, com a necessidade que temos de ver as coisas funcionando bem perto dos nossos olhos. Se você é um grande empresário, que abra uma empresa e tenha sucesso. Se você é um grande músico, deve gravar discos. Se você é uma grande puta, deve escrever livros de todas as trepadas e torcer pra que algum diretor grave um filme como o da Bruna Surfistinha. Se você é um grande pensador, que fale ou escreva. Se você resolver que deve ser gostosa, que seja gostosa de verdade e se instrumentalize, inclusive assistindo ao “Superbonita” do GNT.

Ainda sobre a ode ao corpo, que delimita um horizonte de sentido para a estética do guisado humano, é preciso detectar a máquina de ressentimento e culpa que nasce sempre que os modelos são instituídos no meio da zumbizada. No momento em que se institui o modelo – seja do corpo maçã, melancia, samabaia ou mesmo o modelo político, econômico e estrutural do “corpo coletivo” – cria-se instantaneamente uma máquina de produzir angústia.

As igrejas, nesse sentido, continuam sendo um lugar que promove uma “cegueira do bem”, já que afasta o pessoal dessa centrífuga que, no mais das vezes leva à depressão, ao suicídio ou à bebedeira generalizada. As igrejas também estavam na televisão, o pastor dizia: “meu irmão, minha irmã, é preciso força para sobreviver, é preciso boa vontade para ter fé em Jesus, o Jesus é senhor de toda a fortuna e dará a cada um o pedaço de pão que lhe couber.” O Polishop vendia o sonho americano dos jatos power de lavar sofás e carros enquanto os filhos dos gringos veem pornografia na internet. Um engravatado ensinava dano moral do consumidor na Rede Vida. Vendiam jóias, tapetes, esperanças. O mundo estava à venda, com promoções e boas condições de pagamento no cartão de crédito. Amanhã de manhã, todos estarão à venda, vendendo suas almas e suas paciências. O CQC testava os parlamentares com um quiz sobre o nome da namorada de não sei quem. Eu era uma testemunha do Brasil, do mundo, da grande fome de tudo, da ânsia, da rinite universal, da angústia, dos 150 canais de televisão, da minha fome. Com o passar do tempo percebo que o melhor é dizer apenas aquilo que os olhos veem, assim simplesmente, sem dizer nada ao cérebro que gosta de pensar, sem julgar sins e nãos, deixando a tarefa de valorar para alguém que ainda não nasceu. Senti fome. Não é pessimismo, mas uma omelete é um cocô ao contrário.

sexta-feira, 14 de outubro de 2011

A PACIÊNCIA DOS AMANTES


Algumas amantes são exclusivas do inverno. Digo amantes no sentido de fazer amor e não no sentido-comum-traiçoeiro... que na verdade não é tão traiçoeiro assim. Interfonei e subi. Quando sai do elevador ela me olhou com um olhar de “você não tem jeito mesmo”.

- Encontros e desencontros da vida, ela disse.
- Arte do reencontro, eu disse, plagiando o grande de Morais pela metade.

Sou um grande plagiador da vida. Plagiar as coisas pela metade não leva ninguém pra cadeia. E como a imoralidade nunca tirou meu sono, vou fazendo de conta que tudo em mim é inédito como uma verruga nova. É preciso muita auto-ilusão pra não ficarmos bastante decepcionados com quase tudo que a vida tem pra nos oferecer.

Alguns amores de amantes são sazonais, às vezes, amantes de verdade ficam meses sem nenhum contato. Acho que é possível chamar de amor o amor de uma noite apenas e, por isso, é bem provável que eu fique sem um amor tradicional como são esses que completam bodas. Falta boa-fé nos relacionamentos de hoje, e boa-fé não tem nada a ver com fidelidade. Falta honestidade com relação aos nossos desejos humanos quando nos juntamos com alguém. Jorge Amado me afiança com a Dona Flor, que repartia seus desejos humanos entre a subversão da morte e a metódica da vida. Sentir perenemente é coisa de gente mecânica. As engrenagens são assim, operam independentemente do clima, do estado de espírito ou do humor da máquina. Há quem ainda acredite que os sentimentos podem ser tão estáveis quanto são as engrenagens de um relógio, como se os desejos fossem afetos de uma calculadora. Quem acredita que a realidade pode ser batizada/rotulada/nominada, acaba convencido de que amantes são pares adjetivados pela mácula do pecado.

O vinho é o pretexto eterno dos amantes de inverno. Ainda somos acostumados a fazer mil rodeios antes de trepar efetivamente. Depois de uns bons tragos de vinho o amor nasce em qualquer coração que seja de verdade. Vinho tinto, claro! Deve ser porque o vinho tinto é escuro como sangue vivo. Deve vir daí aquela história do sangue de cristo que justificava e até hoje justifica o alcoolismo dos sacerdotes. Quem dera, só enchendo a cara pra aguentar a santa castidade (que ao meu ver é demoníaca castidade). Aliás, a santa castidade deveria ser chamada de santa paciência.

Sentamos ao redor da mesa de centro do apartamento dela. Uns dvds de música boa na televisão-quadro-LCD-3D-putaqueopariu de gente rica. O vinho estava servido e as conversas eram suportáveis. O cabelo dela cheirava bem, assim como o perfume do incenso. Os peitos siliconados dela me olhavam atrás da blusa de linha branca e do sutiã de alças que era como o suporte de um grande arrepio. O fim da garrafa trouxe o instinto de androgenia, que é um jeito bonito de dizer que eu tava com um tesão filho da puta. Mas as mulheres gostam de fábulas, gostam de dizer que a culpa pelo desejo é da embriaguez e não do desejo em si. Devem ser os resquícios de uma cultura que foi muito sacana com as mulheres. Se eu tivesse sido mulher antigamente, morreria queimada, assim meio puta meio Joana D’arc.

O sexo com as mulheres começa com o modo como falamos no telefone. Desde a ligação elas começam uma odisséia que só termina com o café da manhã que ela nos preparará, parecendo que tivemos uma noite de cinema. O desejo de sentir-se desejada e viver numa história inventada pelas comédias românticas e não pelas comédias de verdade do Woody Allen, sempre são o veneno que as próprias mulheres fazem questão de tomar. O instinto de androgenia trouxe mais uma garrafa. O vinho percorria cada fio de músculo. O álcool já não tinha casa dentro de nós porque todas os espaços estavam ocupados. Conversa vai, conversa vem. O pau dava umas levantadas, depois se recolhia, devia estar achando tudo um saco maior que o dele. O papo continuava e continuava e continuava. As pálpebras começaram a cair nos olhos... mesmo sem ser sacerdote, as vezes é preciso uma santa paciência celestial.



domingo, 9 de outubro de 2011

o amor para chinaski





"...vemos isso tarde demais:
depois que o pau é engolido
o coração vai atrás."



Sir Bukowski



sábado, 8 de outubro de 2011

KALO


Borra de Frida Kahlo

I


A tristeza de sentir a morte
não é porque não há mais vida naquilo que morreu.
O que dói nas mortes é o abandono.
É um amigo de infância dos anos 80 que vai morar longe,
num tempo sem email, sem facebook,
e, claro, sem mais futebol de rua numa rua sem saída.
A morte em quem vive, não morre,
mas deixa sensações.
Sensações bem vivas - diga-se de passagem.
Às vezes mais vivas que quando, antes, morte morrida não havia.
Quando existe morte entre coisas que se acham vivas,
a covardia vence a coragem.
Os tetos das casas são embustes que impedem a inundação
de pares supostamente vivos que precisariam morrer afogados.
Ser covarde é morrer aos poucos,
é tumor que contamina as células da vida,
sem cura, quimioterapia ou cirurgia espiritual.
Essa é a morte das coisas que têm medo de morrer...
Quem não tem medo de alguma mortezinha por aí?


II


Na morte “tradicional”,
dos velórios,
das coroas de flores,
dos padres embebidos em vinho
e todos aqueles desinteressados no defunto
– mas sempre ocupadíssimos com os protocolos;
existe a tristeza do desencontro, não a tristeza da morte.
A tristeza do desencontro é uma tristeza de não saber.
Não saber,
é a dor mais dor mais aguda que uma alma pode sentir,
mais que qualquer morte morrida, assim "tradicionalmente".
Não saber é a necessidade de acordar para a vida,
mas nunca deixará de ser o abismo sepulcral do prelúdio do sono,
este que é terapia diária da morte,
acordo tácito entre o é e o vir-a-ser,
ponte para o quê já se sabe acaso,
mais uma vez,
a covardia seja Senhora.

III


Matar é uma profissão de quem tem projetos de vida assassinos.
Assassinar a própria vida é suicídio do renascimento.
Integração das sombras sombrias e uivantes como os corvos do cinema.
Matar projetos exige técnica:
a técnica de encontrar uma cova confortável.
Quem quer estar disponível àquelas hienas sorridentes do Discovery?
Uma cova é o oco de esperança que salva,
é possibilidade de reencontrar amigos que já morreram.
Morrer é nostálgico, é vintage, é cult, é um medo danado.
Todo “se e quando” é um samba triste de lamentação,
um veneno insuportável a todo espírito do novo mundo.
Contemplar a paisagem?
Mas que porra é essa de contemplar paisagem!
Contemplar é tarefa de gente morta que pensa que vive.
Viver é viver no meio do sangue da placenta,
da dor do parto, da dor da buceta da mãe.
Não há como viver sem ir nascendo.
As casas de campo têm bosta de vaca
misturada à floresta perfumada.
O cartão postal dos cânions não revela o risco do abismo.
O mar só é bom onde não vivem os monstros marinhos.

IV


Existir é ser lançado como flecha.
A flecha tem uma metafísica confusa entre o alvo e seu caminho no ar.
Se é o ponto vermelho minúsculo nosso destino,
que o arqueiro aumente o grau dos óculos míopes.
Se Deus é esse arqueiro, é certo que é um bebedor contumaz.



terça-feira, 4 de outubro de 2011

CADAQUÉS



Vamos viver em Cadaqués?
Podemos viver lá,
largar tudo por aqui,
todos esses projetos de merda,
essas pressões que não são nossas, que nos fazem não ser.
Vamos viver lá,
na praia antiga de Cadaqués,
como fizeram Gala e Dalí,
num castelo de desejos surreais não partícipes da vida,
vivendo o processo da vida como processo e não como meta.
Uma amiga esteve em Cadaqués e conta maravilhas.
Vamos viver lá,
podemos viver lá, basta ir.
Vendemos todas as nossas tralhas.
Posso vender poesias baratas como essa,
ou vender discos de vinil ou vender ilusões à alguém.
Posso inventar uma terapia da loucura e cobrar alguma coisa por isso.
Queria te levar comigo pra Cadaqués...
Podemos viver lá, com roupas mais largas
e algum amor – quando o amor quiser ser amado por nós,
no mais absoluto respeito até à idiossincrasia do amor.
Nosso amor é assim estranho,
mas o que de humano que não é estranho?
Cadaqués tem sacadinhas e ruas de filme intelectual.
Cadaqués tem sonhos de liberdade.
Lá o mar é bonito,
quem precisa alguma coisa além de um mar bonito e um além?
Vamos escrever livros,
beber vinhos do porto no gargalo,
pensar em meios fajutos de salvar o mundo,
ver filmes em espanhol,
fumar fumaças,
foder bem gostoso,
comer peixes salgados..e até podemos pescar, porque não?
E viver, nem que seja com esse atraso de quase 30 anos,
ou sabe-se lá quanto tempo.
Bora?

domingo, 2 de outubro de 2011

REFÚGIOS DA CONSCIÊNCIA NIILISTA

Hoje quero dizer as coisas com calma. Se você está com preguiça, pare de ler. Provavelmente este seja um texto longo, a não ser que eu canse antes de que o texto fique longo. Ando deveras preocupado com o pragmatismo do meu pensamento e com o embuste da minha razão equivocadamente sensível. 

Talvez trate-se de uma revisão de paradigmas ou mesmo de uma confirmação. Atravessar o autoritarismo da matéria é um tormento para quem habita dimensões etéreas, tão dispensáveis a tudo que parece ter algum valor ou brilho terráqueo. A matéria, que só cede com cortes profundos de lâminas assassinas (e "reais"), acaba quase intocada com a lentidão e suavidade do pensamento, por mais cáustico que ele seja.  

Confesso que me vejo sofrível porque sofro influências. Não fosse por conta das influências (de um pai, de um pastor, de uma puta, de uma teoria), não seríamos aquilo que somos. Somos reprodutores, copistas, repetidores. Ou melhor, eu é que sou: um reprodutor, um mero copiador de formas... Esse impulso de teorizar a partir da pobreza da nossa experiência é uma pulsão esquecida pela psicanálise da velha guarda. A rua e os bares estão minados de teóricos generalistas a partir das suas experiências únicas. O que se diz pelos alto falantes do mundo, porém, é uma ode sedutora à necessidade de sermos únicos, diferentes, referentes particulares, faróis altivos na solidão do alto mar.

É que me filio sempre à empiria, à observação despretensiosa do bicho homem, dos seus jeitos e modos de lidar com as mentiras que ele mesmo cria. Nesse sentido, faço de mim um laboratório e dos outros um fenômeno de observações com conclusões imediatas. Vistos como fenômenos, os outros simplesmente acontecem, e suas ações e reações não precisam necessariamente ser efeitos de uma causa psicológica ou antropológica qualquer. O outro como fenômeno me confere a possibilidade de concluir a cada cena da vida. Não perco tempo em concluir porque o tempo do teste do pensamento já faz a "experiência" mudar, o que inviabiliza qualquer conclusão que pretenda ser minimamente honesta. Testes longos são tarefa para a paciência científica e seus aceleradores de partículas. A ciência que me pertence é a apenas a ciência de estar ciente do que faço, de porque existo e de como interajo com o meu entorno.

Tendemos a repetir - é o que vejo ao meu redor. Voltamos ao mesmo restaurante, ao mesmo prato do mesmo restaurante. Tendemos a amar a mulher que já sabemos amar. Tendemos a ter músicas preferidas ou estilos teimosos, quase arrogantes. Tendemos a criticar as mesmas coisas – e nesse aspecto eu sou um repetidor contumaz. Tendemos aos mesmos vícios, esperando que a fajuta imortalidade da vida nos conceda tempo no futuro das nossas ilusões. Tendemos a trepar do mesmo jeito. As mulheres são campeãs em gozar de poucos jeitos... ou talvez eu é que seja mesmo ruim de cama, desfavorecendo as mulheres na multiversidade de posições orgásmicas. E, falando em sexo, tenha cuidado se sua mulher goza apenas em cima de você. Isso pré-indica duas conclusões: a insuficiência carnal de seu pau, e a vontade de domínio dela sobre você. Mulheres dominadoras só gozam em cima. Com essas, o melhor é sair correndo. Tendemos, enfim, ao eterno retorno que Nietzsche disse antes e Freud, depois. E com certeza muitos tantos antes de Nietzsche e outros depois de Freud, porque até com o alto escalão do pensamento existe muita repetição...

É pelo fato de que, tanto as repetências em si como o próprio fenômeno é repetido, que precisamos entender os mecanismos de repetição que acontecem com todos, em todos os lugares, em todos espaços e tempos históricos. A ligação do pensamento de Campbell com Jung se dá exatamente nessa pequena abordagem acerca das repetições – tempo para um gole de vinho, com licença (hoje estou educado).

Os comportamentos-tipo, também chamados de comportamento padrão, que se fazem experiência em toda a existência humana, são a chave para a compreensão de nossa própria totalidade, tarefa para que possamos subir ao próximo degrau. Platão estava certo. Platão falava de verdades, ainda que fossem as verdades inventadas por ele mesmo. Mas Aristóteles também falava verdades. Os medievais falavam verdades. Os dionisíacos da razão falavam verdades. A verdade que eu falo é verdadeira. A verdade da síndica do meu edifício é uma baita verdade. A sua verdade, estimado leitor, é verdadeira. E nessas inconjuntas disparidades, a saída de todos é perceber que desde sempre estamos condenados ao êxtase e ao tormento da nossa própria verdade. Perceber esses degraus que - mesmo diferentes entre si - são, todos, o próximo de todos. Todos temos um próximo degrau, afinal.

Se cometo alguma poesia no meio do texto, peço que compreendam minha estação (estou supreso com a minha educação de hoje, talvez seja porque eu ande me sentindo culpado por alguma coisa e, por isso, estou tratando todos muito bem. Quando estamos devendo alguma coisa a nós mesmos, nos tornamos mais legais com os outros...).

Para que possamos sanar desde já equívocos futuros: Platão errou ao generalizar o conteúdo das formas. De qualquer modo, não existe ninguém com honestidade na Terra que se sinta completamente a vontade para falar de um grande filósofo. Entre os que estudam filosofia, aprofundar-se em um grande filósofo, para "colocar as lentes de determinada teoria", é tarefa básica, quase um postulado. Eu não concordo com essa regra na medida em que é impossível aprofundar a teoria de alguém sem ser esse alguém.  Para falar de Platão seria preciso ter estado do lado dele ou mesmo ter sido ele...Nesse sentido, o que se fala de Platão são atestados de incapacidade. Eu mesmo, que falo de Platão nas minhas aulas, sou incapaz de tecer comentários a contento sobre a teoria platônica, por isso é que uso o método da intuição global histórica (um método que inventei agora e que não estou com saco de explicar). Afinal, Platão errou ao generalizar os conteúdos e não as formas dos conteúdos. Platão é o pai de todos os preconceitos ocidentais. Platão é o culpado pelo aperthaid, por Hitler, pelo totalitarismo da globalização.

 Esse foi o conserto dos mitólogos que perceberam o caráter representativo-metafórico do mito. Representar, repetição e reprise, são todas palavras que tem o mesmo prefixo "rep”... provável, portanto, que tenham alguma familiaridade entre si, mas esse é um dado puramente intuitivo (do mesmo método de cima) já que não estou preocupado com comprovações científicas de absolutamente nada.

Assim, se nossa característica de “rep”etidores estiver intuitivamente certa, podemos concluir que nós somos nós mesmos só um pouquinho. Provável que o livro Repetição e Diferença do Deleuze fale sobre isso. Esse é mais um dos tantos livros que eu comprei e não li. O amontoado de livros não lidos é fonte de desassossego para quem imagina que a conclusão divina da soteriologia pode ser encontrada nos livros. De todo modo, como não podemos ser escravos de nada, que se fodam os livros. Adoto o método sincrônico de eleição de leituras: leio o livro que escolhe ser lido por mim, ou seja, quase não participo da escolha. Não apenas útil para leitura, esse método é familiar àquele dos estóicos gregos que acreditavam na indiferença como grande ferramenta para engoliar a supremacia da razão cósmica. Indiferença é um bom antídoto para as culpas e ressentimentos quando acabamos sendo demasiadamente humanos e maniqueístas. 

Tirassem a vaidade da filosofia, todos os filósofos seriam compreendidos. Os filósofos são pessoas que perdem a paciência com facilidade. Os filósofos de verdade são pessoas que não têm em si o atributo da paciência porque conseguem ser sem participar ativamente da existência, relacionando-se intimamante com elementos externos. O pensamento é o único local de nudez para o filósofo...e quanto este sai às ruas para gritar aquilo que foi pensado, já está sempre vestido e com alegorias que escondem o bruto daquilo que pensou genuinamente. O filósofo é, então, um partícipe indireto da vida, um alguém que opta conscientemente pelo diálogo interior sem que isso represente qualquer tendência egoísta.
Para Raul Seixas o astrólogo conhece a história do princípio ao fim. Na verdade qualquer um pode conhecer a sua própria história do princípio ao fim, mas apenas os filósofos que sabem que são filósofos, podem conhecer, além da história pessoal, a história coletiva do inicio e do fim. É mais ou menos nesse ponto de explicação que a coisa toda se perde. Nesse ponto, só com poesia é que as coisas podem ser ditas.  Só com as roupas metafóricas da poesia é que consegue-se dizer aquilo que não se pode dizer.  

Para que fique mais claro, é como um filósofo que lembra que, desde sempre, foi um filósofo – eu já não tenho nenhuma dúvida do caráter contínuo da consciência entre as mortes das nossas carnes humanas. Vejam essa recorrência, ou repetição - para não mudarmos os termos: espiritismo, xamanismo, cristianismo, budismo, filosofia moderna, histórias do fantasminha camarada, psicologia junguiana, regressões terapêuticas, vida eterna, cronópios verdes de Jorge Luiz Borges...tudo isso trata do mesmo assunto, das continuidades, da crença e da certeza de que além dos muros não estaremos salvos no nada, mas escravos das nossas influências contínuas. Que possamos trocar as fugas por refúgios, assim o não-sentido poderá ficar dormindo do lado de fora, como um cachorro sarnento que tem uma casinha própria.