terça-feira, 13 de abril de 2010

Contos Imediatos XVI


O MUNDO DE CARMINHA

Carminha mal conseguia encostar os pés no chão quando sentava no vaso do banheiro todo branco de sua casa. A casa que era o seu quarto, ou melhor, o castelo de sonhos impossíveis de ser sonhados que era o seu quarto. Afinal, um quarto repleto de regalias como o dela era o sonho de princesinhas sem um quarto repleto de regalias. Circunscrita em sua terrinha do nunca, que era colorida com todos os tons de rosa e verde cintilantes, Carminha já meditava com sabedoria tibetana. Voltava-se pra si mesmo com a necessária ingenuidade que é bem exclusivo das crianças e dos loucos. Ser criança é poder ser louco antes de ter coragem de ser. E sem prejuízos de convívio. E ali, sentada no vaso, meditou todos aqueles azulejos entrepostos pela arte incompreendida que eram aqueles rejuntes rosa chá. E meditou em cânticos sussurrados, os mantras da paz que a existência toda havia reduzido no seu corpinho miúdo de princesa. Cantarolando inaudível, meditou aquela centopéia que andava entre os azulejos. Como poderia ela caminhar tanto sem se cansar? Observara Carminha que a centopéia era incansável. E o quê buscava naquele passeio de círculos irregulares e viciosos num banheiro de aparatos exclusivos de princesa? Porque carregava a perversão dos homens nas suas raízes, Carminha bateu forte o pé no chão, imaginou o estrondo sísmico que causaria na calma da centopéia. Queria observar suas reações, ver aquele desespero em cem patinhas frenéticas à procura de algum abrigo. Queria se reconhecer na centopéia? Ela nem podia indagar seus próprios botões a tal fundura. Porque também carregava a fraternidade do mundo feminino, não cogitou esmagar a transeunte de cem patas. Vendo a indiferença da centopéia, tanto pelo barulho nos ouvidos quanto pela imagem nos olhos, pensou que não sabia nada sobre centopéias. Será que elas têm olhos e ouvidos? O bichinho não reacionou e seguiu buscado o vago da existência de ser bicho naqueles azulejos brancos de um castelo feito para todos os tipos de bicho. Pensou que a centopéia estava mesmo assustada, mas que, por ser uma centopéia experiente, apenas disfarçava o temor com aquela indiferença toda. Lembrou que se mantinha indiferente e imóvel toda vez que o escuro da noite lhe presenteava um barulho indecifrável. Melhor jeito para tratar os medos não havia, estava escrito na história do mundo, que era seu mundinho, o mundinho do seu quarto. Pensou que se assustada estivesse a centopéia, não poderia correr para muito longe, ainda que tivesse tantos pés a atritar o chão de azulejos. E caraminholou Carminha que para ir longe era preciso continuar com os mesmos passos. Que fugir era fugir da fuga. Que ir longe dependia de ficar bem perto dos próprios medos, encará-los e transformar todos os pés estrondosos em azulejos pelo caminho, em outros chãos possíveis. Para as centopéias tudo era chão, até as paredes. Carminha não entendeu como a gravidade não valia para as centopéias. Ia perguntar para a professora de Ciências sobre essa regra furada e relativa que diferenciava ela daquela centopéia que ela invejava tanto.

PFF

Um comentário: