quinta-feira, 29 de abril de 2010

Contos Imediatos XIX


FARPAS CARDÍACAS

Quando acordou e alçou as costas para que se divorciassem dos lençóis, uma dor súbita no peito o fez urrar de dor, a mais aguda que já sentira. Voltou a colar as costas no lençol, imóvel, com olhos fixos naquela imensidão que era o nada. Era um solitário, e não fosse por Lurdes, que há vinte e oito anos limpava as cuecas, as taças de vinho e os ladrilhos da casa que era aquela sua vidinha; por certo teria padecido e engatinhado para a mansão dos mortos ali mesmo. Sem outra chance para esta vida e seus infernos.

Na CTI do hospital rasgaram sua veste tétrica de dormir. Sem nenhuma pena dos bichos de seda que tanto esforço tinham empregado naquele pijama cheio de tramas. A veste essa era de um luxo tamanho que se podia sentir – mais sensível que fosse o apreciador de pijamas – o suor dos pobres bichinhos, de tantas indas e vindas sobre o mesmo fio. De peito nu o anestesiaram, ainda que o caminho da morte já fosse uma anestesia e tanto. Tal qual haviam feito com o pijama, rasgaram também a ossada do peito, que tinha valor equivalente ao pijama àquelas alturas do campeonato.

Aberto o espaço necessário ao seu porém que era o coração, o médico arregalou os olhos, ficou engessado no instante, deixou cair o queixo. Hesitou em pura descrença à cena que os próprios olhos lhe entregavam. Esfregou as pálpebras com as luvas de látex, quase que a cortar a própria maçã do rosto com o bisturi que lhe assessorava. Não entendeu o que sucedia com o coração daquele homem que quase jazia estirado na mesa cirúrgica.

O coração pulsava muito, muito devagar; a manter apenas uma suave esperança. Isso, porém, foi o que menos surpreendera o médico. Atônito, não entendeu quase nada: nem o arame farpado que envolvia o coração do homem, nem as unhas e cabelos que dos músculos cardíacos haviam nascido, nem os soldadinhos em miniatura que transitavam rígidos naquela planície melecada de sangue. Até uma bruxa feiticeira, com verruga no nariz e tudo, mexia substâncias de cores duvidosas em minúsculos tubos de ensaio, olhando com ares petulantes para o médico e seu bisturi.

O médico lembrou das juras à Hipócrates e varreu o coração do homem. Eliminou todas aquelas estranhas defesas, sem deixar qualquer resquício. Reatou os ossos. Costurou a pele. Passados os efeitos anestésicos o homem abriu os olhos. A enfermeira foi a primeira a cruzar seu campo de visão. Se apaixonaram, e o homem nunca mais morreu.

PFF

5 comentários:

  1. Abençoado médico que teve compaixão e paciência de realizar a limpeza e expurgar aquilo que o homem adquiriu durante sua vida - aquilo que não serve para nada e só estava prejudicando a sua vivência.

    Será que alguns precisarão chegar ao limite para que a limpeza possa ser feita? Por outrem, ainda?

    ResponderExcluir
  2. Paulo,
    gostei muito....
    e mais ainda da coragem de escrever em prosa.
    abração!

    ResponderExcluir
  3. Gostei muito !!!
    A forma como escreveu fez com que eu refletisse sobre algumas pontos em minha vida ... achei "interessante" os soldadinhos, acho que tenho alguns ... kkkkkk :D

    ResponderExcluir
  4. Lindo Paulo!
    "amar é mudar a alma de casa" e fazer varreduras, por vezes, é necessário.
    bjos

    ResponderExcluir
  5. Que delícia de blog. Que lindeza. Que lin-de-za!!!

    beijos

    ResponderExcluir