FARPAS CARDÍACAS
Quando acordou e alçou as costas para que se divorciassem dos lençóis, uma dor súbita no peito o fez urrar de dor, a mais aguda que já sentira. Voltou a colar as costas no lençol, imóvel, com olhos fixos naquela imensidão que era o nada. Era um solitário, e não fosse por Lurdes, que há vinte e oito anos limpava as cuecas, as taças de vinho e os ladrilhos da casa que era aquela sua vidinha; por certo teria padecido e engatinhado para a mansão dos mortos ali mesmo. Sem outra chance para esta vida e seus infernos.
Na CTI do hospital rasgaram sua veste tétrica de dormir. Sem nenhuma pena dos bichos de seda que tanto esforço tinham empregado naquele pijama cheio de tramas. A veste essa era de um luxo tamanho que se podia sentir – mais sensível que fosse o apreciador de pijamas – o suor dos pobres bichinhos, de tantas indas e vindas sobre o mesmo fio. De peito nu o anestesiaram, ainda que o caminho da morte já fosse uma anestesia e tanto. Tal qual haviam feito com o pijama, rasgaram também a ossada do peito, que tinha valor equivalente ao pijama àquelas alturas do campeonato.
Aberto o espaço necessário ao seu porém que era o coração, o médico arregalou os olhos, ficou engessado no instante, deixou cair o queixo. Hesitou em pura descrença à cena que os próprios olhos lhe entregavam. Esfregou as pálpebras com as luvas de látex, quase que a cortar a própria maçã do rosto com o bisturi que lhe assessorava. Não entendeu o que sucedia com o coração daquele homem que quase jazia estirado na mesa cirúrgica.
O coração pulsava muito, muito devagar; a manter apenas uma suave esperança. Isso, porém, foi o que menos surpreendera o médico. Atônito, não entendeu quase nada: nem o arame farpado que envolvia o coração do homem, nem as unhas e cabelos que dos músculos cardíacos haviam nascido, nem os soldadinhos em miniatura que transitavam rígidos naquela planície melecada de sangue. Até uma bruxa feiticeira, com verruga no nariz e tudo, mexia substâncias de cores duvidosas em minúsculos tubos de ensaio, olhando com ares petulantes para o médico e seu bisturi.
O médico lembrou das juras à Hipócrates e varreu o coração do homem. Eliminou todas aquelas estranhas defesas, sem deixar qualquer resquício. Reatou os ossos. Costurou a pele. Passados os efeitos anestésicos o homem abriu os olhos. A enfermeira foi a primeira a cruzar seu campo de visão. Se apaixonaram, e o homem nunca mais morreu.
PFF
Abençoado médico que teve compaixão e paciência de realizar a limpeza e expurgar aquilo que o homem adquiriu durante sua vida - aquilo que não serve para nada e só estava prejudicando a sua vivência.
ResponderExcluirSerá que alguns precisarão chegar ao limite para que a limpeza possa ser feita? Por outrem, ainda?
Paulo,
ResponderExcluirgostei muito....
e mais ainda da coragem de escrever em prosa.
abração!
Gostei muito !!!
ResponderExcluirA forma como escreveu fez com que eu refletisse sobre algumas pontos em minha vida ... achei "interessante" os soldadinhos, acho que tenho alguns ... kkkkkk :D
Lindo Paulo!
ResponderExcluir"amar é mudar a alma de casa" e fazer varreduras, por vezes, é necessário.
bjos
Que delícia de blog. Que lindeza. Que lin-de-za!!!
ResponderExcluirbeijos