quinta-feira, 8 de abril de 2010

Contos Imediatos XV


CERVEJA NO CAFÉ


A camisa pólo amarelo claro e a calça bege, que era um engarrafamento de pano sobre o tênis, denunciavam a despreocupação estética de Nelson. A estética vaidosa, essa que nada tem a ver com a vaidade do espírito.

- Posso sentar, perguntou ele.

- O senhor fique à vontade, respondi.

- Senhor está no céu, retrucou.

Ainda que às nove horas que o relógio anotava e a cerveja com o pote de queijo em cubos não encontrassem muita correspondência com um café da manhã, para Nelson era o seu de todos os dias. Octagenário, carioca, boêmio e pianista; essa era a identidade superficial do Nelson, que dissertava com uma suavidade saudosa as histórias de toda uma vida no tempo de um encontro efêmero de café da manhã. Disse ser amigo de Chico, companheiro de banda de Tim Maia, parceiro de charlas de Vinícius. As lembranças musicais e líricas soavam duvidosas, como se as informações fossem perfumes nobres de uma história cheia das mesmas histórias já sabidas de um oitentão que se deleita falando do tempo que já tinha sido.

Às nove e vinte da manhã, já tinha amassado três latas de cerveja, e disse antes de todas:

- Essa é a penúltima.

Das mulheres, disse o mesmo:

- Sempre tem aquela penúltima que permanece até quando os oitenta anos declaram nossa morte anunciada.

Falava das duas filhas sem saber ao certo se tinha apenas duas filhas, afinal, ser malandro – que era quase sinônimo de ser carioca – era ter que manter aquela eterna pulga atrás da orelha do mundo, mesmo que nem um matusalém como ele pudesse perceber que passava a vida toda a desconfiar de si mesmo, jogando para longe suas próprias e pobres certezas. Através dos óculos escuros, percebi que Nelson perdia o olhar em cada caminhante. Olhava como quem esperasse, a oitenta anos, alguém que lhe viesse com um tapa nas costas e uma promessa de recompensa por toda aquela espera tediosa da vida. Mas ele não sabia disso e, enquanto o papo fluía como sexo em sintonia, tomou a quarta cerveja, acostumado que era de desjejuar com queijo prato em cubos e algumas latas de cerveja.

Quando vi aquele excesso de cabelo artificialmente grisalho sobre as orelhas, tive certeza de que ali habitava o espírito do Alain Delon, todo aquele charme senil que seduzira – e seduzia – o mundo e a si mesmo sem se dar conta. Como com todo bom malandro reinam as entrelinhas, perguntei:

- Os dois casamentos, foram dois?

- A história sempre passa, e as penúltimas é que vêm Jorginho; me disse ele com o ar de proprietário do oráculo de todas as verdades do universo.

Já entupido de cerveja e bêbado de queijo prato, saímos das mulheres e voltamos para as letras. Nelson me contou de umas composições e lembrou que era a vida boemia e o piano os responsáveis pelo desalinho com as mulheres. Percebi que os assuntos não podiam se divorciar. Lembrando alguns sambas e umas poesias, Nelson indagou:

- Sabe quais são os cinco maiores letristas do Brasil Jorginho?

E sem permitir sequer o chute, decretou:

- O primeiro é o Chico, o segundo é o Chico, o terceiro é o Chico, o quarto é o Chico e o quinto está no grande oriente, Vinícius. Tinha bom gosto o velho.

Classificações à parte, falamos de maçonaria. Chamar o céu de grande oriente era sabidamente coisa de maçom. E não porque coincidíamos nossas duas solidões naquele café, mas na burocracia de alguma coisa, nos tornamos, assim de repente, tio e sobrinho. Como que se qualquer empatia anterior se apagasse para que se fizesse absoluto o conceito inventado pela instituição de que ele e eu, mesmo sem nenhum consentimento, participávamos. Ainda assim, estreitamos o olhar que já vinha de antes, mas que a ele se avolumou pela condição nova que nos colocamos. Mesmo maçom, confessou umas gonorréias expúrias, mulheres que ficaram pelo caminho, abraçadas com suas promessas bêbadas. Famílias suas que suas já não eram, deixadas para trás em absoluto esquecimento.

- As verdades habitam o decorrer da conversa, disse ele. Sem se importar com a falta de correspondência de suas atitudes com os cânones da instituição que nos familiarizava.

Ainda falamos de futebol, da pobreza das cidades, das possibilidades intelectuais de cada um e da nostalgia dele dos vinte e poucos anos que eram meus pelo nosso fuso horário que divergia.

Terminou a sexta cerveja, se despediu e partiu. Como se fosse direto dali para o túmulo. A seduzir também a morte, que estava prestes a lhe dar um tapinha nas costas.

-

PFF

Nenhum comentário:

Postar um comentário