sexta-feira, 19 de março de 2010

Contos Imediatos XIII


PALAVRAS EMPAPADAS

Com os dicionários do futuro a coisa funcionava diferente. Às palavras não bastava simplesmente existir para que tivessem o são privilégio de pertencer à ordem mais cartesiana da linguagem engendrada desde a aurora do mundo. No futuro, ainda que se houvesse fixado a derrota das tolas dicotomias nas consciências, posto que o socialismo morrera de paixão e o capitalismo de afogamento, persistia viva a supremacia dos valores materializáveis sobre qualquer outra coisa na Terra, respirasse ou não. Assim, precisariam as palavras pagar a TP, a taxa de presença, para que pudessem figurar no grande rol que já não se sabia se seria de todas as palavras.

De cara, o “marxismo” se negou a pagar a quantia solicitada, alegando que o dicionário, além de amansar a cretinice dos desvalidos de intelecto, era um meio de produção dos intelectuais e, portanto, descabida era a taxa de ingresso. A “preguiça”, que andava perenemente indisposta e inebriada na mais cruel inércia, sequer cogitou levantar da rede que repousava para dar o ar da graça naquele distante amontoado de letras esquecidas nas prateleiras. O “escândalo” achou a normativa absurda, escandalosa, e prometeu nunca mais por o pé em dicionário nenhum. O “abraço”, como desprezava as finanças, pagou as rúpias devidas e mergulhou no sopão de palavras, abraçando o “carinho”, a “tolerância” e o “liberalismo” que, cada qual por suas razões, já estavam serigrafados nas páginas. A “palavra” não se negou a pagar a taxa, mas, sentido-se desde sempre a grande princesa daquele instrumento todo, solicitou um espaço especial. As outras palavras contestaram. O administrador, por decisão da maioria absoluta no plebiscito feito, resolveu que a “palavra” não teria nenhum privilégio sobre nenhuma outra, devendo permanecer postada entre os seus vizinhos de sempre, o“palato” e a “palavrada”.

A “palavra” não gostou da decisão, e retirou-se. Outras tantas também se negaram a pagar a taxa e abandonaram o dicionário. Terminado o trabalho, as palavras que começavam com “a” descobriram, entre conversas e chás de menta lá pelas letras “g” e “h”, que as palavras que começavam com “z” haviam pagado menos, já que figuravam na rabeira do elenco. Depois de conferências e uma total falta de consenso, todas as palavras iniciadas com “z” se retiraram. O alfabeto passou a terminar no “v” . E o dicionário nunca mais foi chamado como tal.

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PFF

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