OLHOS DE QUEM
E num acesso de ira incontrolável, pediu de volta os olhos que lhe tinha emprestado. Desde sempre via o mundo com os olhos que eram seus, duplicados, fotocopiados. Quatro olhos num mesmo rosto: os dois genuínos que estavam de férias prolongadas, mesmo mortos, dividiam os buracos a que aos olhos cabem com os outros dois que não lhe pertenciam. Como não queria saber de nenhum altruísmo, arrancou-lhe a canivetadas os olhos que eram seus, para que nunca mais pudesse ver o mundo de cores pela possibilidade de seus olhos que sabiam olhar como ninguém. Em verdade se tratavam de obras de arte possíveis, afinal, que seriam delas sem os olhos? E as pinturas que via lhe eram devidas. Desde quando acordava até quando as pálpebras lhe cobriam a retina. Ignorando o inacesso, usurpou a visão alheia e pediu suas contas, afinal, quanto de nós fica nos outros? Quanto lhe pertence e quanto não é mais seu? Mesmo diante dos urros de dor, não mais foi complacente. Comeu os dois olhos ferozmente. Entre dados instantes, tudo parecia em ordem. Tudo voltava ao lugar devido. Havia uma dívida, e cobrá-la de outra maneira não podia, senão arrancando-lhe os olhos, que eram seus desde o início. Foi acometido, de súbito, por uma tremenda dor de barriga. Salivou. Salivou mais. Vomitou os olhos em meio à bílis. Não lhe haviam caído bem no estômago. Não eram mais seus. E os devolveu com todo aquele aspecto nojento de vômito fresco.
PFF
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