sexta-feira, 16 de setembro de 2011

uma madrugada



2 da madrugada.
Eu escrevia.
Ouvi gritos da rua, era uma mulher.
Gritava com todo o pânico que a voz podia.
Pedia socorro.
Corri na janela.
Vidros se estilhaçaram.
As janelas dos apartamentos brilharam,
uma a uma, com as luzes acessas.
Outras janelas viam tudo do escuro com seus inquilinos medrosos.
Os gritos da mulher seguiam.
Ninguém podia ver nada, dos edifícios da frente e dos lados.
Outra vidraça se quebrou.
A mulher clamava por socorro,
como se estivesse diante do diabo.
Alguém disse ter visto o ladrão.
Eu não via nada, mas assistia tudo.
Era o palco flagrante da vida,
que ia sendo assassinada em flagrante.
Os piores flagrantes são os que não se permitem aos olhos quando estão acontecendo.
Um homem herói jurou morte ao ladrão pelo ar escuro da noite.
Ele vestia pijama azul, falava do 5º andar...
e é provável que fosse o mais cagão entre todos os vizinhos.
Outro herói desceu com lanterna e revólver na mão.
Deve ter visto todos os filmes do "Máquina Mortífera".
O Mel Gibson copman é o sonho de todo nazista homossexual contemporâneo.
Ninguém podia ver nada.
Alguém mandou alguém ligar para a polícia.
Era uma comunicação entre as janelas nunca antes vista.
A solidariedade pelas janelas vizinhas.
Uma solidariedade que protegia os solidários do suposto ladrão, assassino, estuprador.
Uma senhora que estava caindo aos pedaços ligou para o 190.
Fechou o chambre tentando evitar a dor alheia que urrava pelo vento.
Eram gritos de uma mulher como ela, de um ser humano como ela,
quase insuportáveis aos ouvidos da velha,
que só gaguejava pelo telefone com o policial.
A velha tremia.
Deve ter sido bolinada pelo pai alcoolatra quando criança.
Ver que o ser humano treme ante a bestialidade de sua condição é um espetáculo.
E eu nem precisei pagar ingresso nenhum.
Todo o show era grátis, da janela do meu quarto.
A grande virosa  humana ali, para quem quisesse ver ou estivesse acordado na madrugada.
A madrugada é a subersão das 24 horas.
A madrugada é o surrealismo do dia,
é o aurora da escuridão dos sonhos.
Os olhares dos outros eram curiosos.
Antes estavam todos dormindo,
tinham caras de sono e de casamento.
Teriam que trabalhar no dia seguinte
pra que não precisassem ser ladrões durante a noite.
Iam acordar, tomar banho, vestir suas roupas, comer suas torradas sem gosto e ir pro trabalho.
Trabalhar é preciso pra que se possa ter onde dormir.
Dormir é preciso pra que se possa trabalhar.
É assim que vive-se incessantemente aventura da vida...
A vida toda se resume a isso...
com algumas sobremesas como as férias ou as trepadas de sábado a noite.
"Todos os maridos funcionam regularmente, porque é sábado", disse o Vinícius de Morais.
Os trabalhadores e os ladrões se identificam na necessidade de ter necessidades.
Ambos necessitam.
Resolvi dar outra volta na chave da porta,
ser covarde cansa menos.
Não tenho pretensões heróicas.
A convivência terráquea anda de mal a pior.
Todos estavam desesperados.
O ladrão também.

2 comentários: