terça-feira, 20 de setembro de 2011

O PROVINCIANISMO USA GEL BOZZANO

Sinto nada. Não sinto nada aqui. O aqui é a cidade em que eu nasci. Não sinto a cidade em que eu nasci. Sinto, estando nela, um grande deserto. Um vento uivante distante como as coisas que são longínquas como as tumbas dos cemitérios. Na cidade em que eu nasci não se pode usar chapéu nos bares e nas ruas. Nas ruas, a intolerância é um olhar de reprovação, é um "bico torto". Nas ruas é melhor ser como a mediocridade cristã e pagã determina que se seja. Nos bares, usar chapéu é tão nefasto e proibido quanto fumar cigarro em lugares fechados. Qualquer espécie de desvio em circunscrições provincianas faz um mal danado aos pulmões das gentes médias e coletivas, que estão desde sempre domesticadas com a fumaça falsamente clara e saudável da moral.

A moral, como já disseram tantos e tantos não lidos pelos provincianos da cidade em que eu nasci, fode o rabo dessa gente maniqueísta que acredita que o julgamento do vizinho é uma espécie de postulado moral por excelência (ideia próxima àquilo que Kant chamou de imperativo categórico) que deve prevalecer sobre os desejos personalíssimos de todos que são vizinhos dos vizinhos. A metavizinhança acaba retroalimentando a miséria das províncias que, mesmo com a invasão da internet e das TV's a cabo do mundo, acabam não conseguindo parar de correr atrás do próprio rabo (ou do rabo do vizinho). Aliás, a falácia da mundialização da informação pode ser vista nesses pequenos condados medíocres como é a cidade em que eu nasci. Quando apenas é a miséria interna que se projeta no objetivismo exterior, não há mudança significativa que ocorra. Esse é um problema dos ocidentais, que querem modificar a plantação adubando a terra, sem prestar atenção à saúde das sementes. Internet e tv a cabo por quê, se tudo se resume à assistir o Bonner, o futebol de domingo e vigiar as frestas do vizinho pelo facebook.

Não tenho pretensões de que meu discurso seja bem quisto. Não vejo saída à mediocridade senão por meio da tragédia. Precisam perder filhos em acidentes de carro, precisam de grandes choques existenciais para que um terremoto interno seja capaz de balançar as estruturas fixas e pesadas que levam nas costas, como se fossem Sísifos-besouros que arrastam eternamente o próprio bolo gigante de merda. Deixam de perceber a atraso de suas percepções animalescas, lhes falta outra cor além do cinza para que possam enxergar a multiplicidade, a paradoxalidade que até a ciência já detectou.

Na cidade em que eu nasci existe um atraso de aproximadamente 600 anos. Em relação às vestes da moringa, ainda são medievais. Na Idade Média, quando o Deus cristão institui a onipresença da verdade por intermédio dos pastores que tocavam punheta no banho feudal, os fiéis tiravam seus chapéus quando entravam na Igreja em sinal de respeito ao grande Deus que, por ter o atributo de estar em todos os lugares ao mesmo tempo, flagrava os padres tocando bronha em homenagem aos coroinhas e às camponesas de bucetas provavelmente peludas e insuportavelmente fedorentas. Meus devires medievais trazem até meu nariz colossal os odores piscianos das bucetas do feudalismo.

Se as bucetas melhoraram de lá pra cá, nos bares da cidade em que eu nasci pouco mudou em relação ao ritual do chapéu. Usá-lo é crime de lesa majestade à saúde da homogeneidade. A diferença continua sendo um espinho que atravessa as carnes morais dos provincianos. Claro que a crítica não pode ser generalista, mas, como sou junguiano, acredito no caráter coletivo da consciência dos lugares. Resumo da ópera: fui agredido por um troglodita medieval por usar o chapéu que me apraz e que eu levava na MINHA moringa. O troglodita não era um segurança que não pode estudar, mas o próprio dono do lugar.

Os medievais contemporâneos como esse imbecil ainda vivem na lógica darwinista: seleção pela melhor capacidade. Mas como, em geral, leem pouquíssimo e fazem de suas vidas um jogo pueril que no mais das vezes se resume a futebol com amigos, bebedeiras e brochadas burocráticas resolvidas à base de viagra com a esposa que eles traem na zona pensando que são os caras mais espertos da paróquia medieval líquida, continuam acreditando que força e tamanho são poderes insuperáveis. Eu que sou um covarde mas que tenho devires sofistas, usei da retórica pra não apanhar e agora vou altivo buscar minha indenização moral depois de fazer uma ocorrência policial e uma perícia médica. Não acredito no estado democrático de direito senão quando posso usá-lo a meu favor como é o caso. O troglodita precisará pagar um advogado, precisará olhar pra minha cara numa sala de audiências, precisará sonhar comigo mijando em cima da sua própria cabeça de vento, precisará me pagar alguma coisa. O lastimável é que nada disso vai mudar o troglodita, o que escancara a falência do estado de direito enquanto locus de reeducador da conduta humana. 

Minha terra natal não aceita meu chapéu. Eu aceito cada vez menos minha terra natal. Nas terras do nunca, que são todas as que estão fora dos muros invisíveis da aurea mediocritas, os chapéus não agridem ninguém. Na verdade, meu chapéu representa a provocação à sensação de segurança que a estabilidade histórica traz. É mais fácil repetir o legado familiar do que instituir modelos novos. A psiquiatria sabe muito bem que do misoneísmo só escapam os que conseguem compreendê-lo, que meus conterrâneos visitem o dicionário e meditem.  Vivem na lama da homogeneidade, esta esquizofrenia coletiva que forja a sensação de segurança. Ainda precisam perceber que quando todos são bárbaros, é a civilização o exército inimigo. Depois desse insight primeiro, se está apto a perceber que a dicotomia não existe senão no reino das fantasias racionais (e medievais), que fazem das consciências provincianas, um sóton maculado por teias de aranha e outras coisas peçonhentas. Na terra em que eu nasci, as esposas continuam depilando o cú, os padres selando casamentos mentirosos e os homens de bem usando gel bozzano no cabelo.

3 comentários:

  1. Deixo aqui meu amor e meu afeto a todos conterrâneos que, acima de tudo, sabem que não são personagens desta crítica cáustica que é absolutamente DIRECIONADA.

    ResponderExcluir
  2. Estive presente. Afirmo e concordo. Provinciano, interiorano e imbecil. Não nasci, mas convivo com todas essas putarias que estão impregnadas à "terra de gente boa".

    Forte abraço Paulo.

    OBS: No ramo farmacêutico, usamos APRAZ para nomear um benzodiazepínico (ansiolítico).

    ResponderExcluir
  3. Penso que todos nós nascemos na mesma cidade!!!

    Bom referente ao facebook (sabes que o chuveiro é uma ispiração, assim como, dirigir para Balneário escrevendo no caderno que se encontra no banco do carona com um adesivo do grêmio no parabrisa traseiro) refleti o seguinte:

    O facebook se tornou uma conversa de elevador, ninguém sabe o que falar, fala qualquer coisa e todo mundo curte.
    Abraços....

    ResponderExcluir