Epopéias são poesias longuíssimas, que contam grandes histórias. Ilíada e Odisséia de Homero, ou mesmo o roda-roda-vira Lusíadas de Camões, são crias dessa espécie. E em um dia da semana que passou, em tempo distante da Guerra de Tróia e das andanças marítimas de Vasco da Gama, tive um dia épico. A parte trágica começou logo cedo, quando uma viagem de 450km me aguardava pelo interior da querida Santa Catarina.
Terno, gravata e sapato social. Tudo bem afivelado e ajustado, como manda o roteiro do teatro cotidiano. Não é de agora que se deixa de ser quem se é a depender dos panos e dos cortes que se carrega na couraça, sim, a couraça que é igual para todos com umas diferenças de tom e outras pitadas de cheiro. Tem gente que fede MESMO, um fedor natural e sem relação de causalidade. Outras têm um fedor contingencial, fragmento da tragédia fedorenta das epopéias diárias de muita gente que tem que se virar com lotação que é lotada até no nome, falta de desodorante, metro com gente amontoada, falta de banho por falta de banheiro e outras fontes de fedor... coisas que, no fim, ninguém merece. Bendito meu espermatozóide que ovulou numa família com mais condições de curar o fedor natural da humanidade, benditos os que se dão conta e mais benditos ainda aos que fazem mais do que eu pelos de fedor contingencial...a gente sempre faz tão pouco...
Pois bem, a gravata às vezes pesa, parece que não combina com minhas pregações, mas vou usando até que pare um dia de pensar que ela não diz quem eu sou. Aprendi a entender as mulheres depois que passei a usar sapato social com frequência. Salto e panturrilha são duas coisas que não se afinam. E ainda que o nosso salto seja fichinha perto do delas, é coisa triste. Aliás, por que será que sapato social masculino tem aquele salto? Não fosse pra resolver o problema dos baixos, só posso pensar que é coisa pra completar o pedestal imbecil da maioria da gente que usa terno e gravata. De todo modo, meu pesar às mulheres que precisam se equilibrar em tacos todos os dias. É coisa de circo, com a diferença que trapezista não precisa sorrir...
Cedo da manhã, armadura posta e a chuva torrencial resolve dar o ar molhado da graça. Compromissos profissionais são coisas que tem horário marcado, na exatidão dos ponteiros do relógio, e, portanto, imprevistos na estrada demoníaca que liga o litoral ao interior do Estado devem ser ou previstos ou não devem ser, sob pena de estragar o humor de muita gente que já anda com ele pelas beiradas com os saltos. Tive sorte, ou melhor, meia sorte. Apesar de nenhum imprevisto, a viagem foi típica. Dia de chuva e trânsito é aquilo que todo robô urbano já sabe.
Três horas de estrada até a chegada ao pórtico de Trombudo Central. Confirmei com um vivente que almoçava e que me respondeu com a boca cheia de arroz e polenta que o caminho era aquele mesmo. Senti no olhar do vivente a solicitude, o carinho. As pessoas do interior tendem a ser sempre mais ternas, mais puras, mais gente humana, menos robóticas, menos ávidas por sabe-se lá o quê. Atalanta – meu destino – era na direção que me apontava o homem. Até ando pensando em comprar um GPS mas, talvez, ele me faça perder essas possibilidades de perguntar informação para um regional com a boca cheia de arroz e polenta. A tecnologia nos vai esfriando, congelando os corações, e é preciso atenção para continuar sentindo de verdade hoje em dia. De Trombudo Central até Atalanta, uma viagem de cinema. Estradinhas estreitas, casas de grama delicadamente cuidada. Umas com fontes de água clara e flores cheias de carinho simples, exatamente como o carinho deve ser. Tive dejavus naquela estrada. Não fosse pela tecnologia dos carros e dos caminhões, todo o cenário era muito familiar.
Cheguei a Atalanta perto das 13 horas. Parei no único posto de gasolina da cidade. Perguntei ao frentista aonde tinha um restaurante e aonde era o Banco do Brasil. Me respondeu com três “alis”. Dois dos alis era para os dois restaurantes da cidade que ficavam por ali. O terceiro ali era o do Banco. “Lá” não é um advérbio de tempo que se use em Atalanta. Já que a viagem andava cinematográfica, o primeiro restaurante indicado parecia uma mistura de “O Albergue” com “A Casa dos Espíritos”, tinha um outro vivente – bem diferente do arroz com polenta – de olhar sanguinário fumando um paiêro (essa é a tal palavra que não se pode escrever de acordo com o dicionário, perde-se a essência dizendo palheiro) e segurando um taco de sinuca na mão. Tinha cara de matador o desgraçado, de quem chupa a jugular de galinha viva. Forasteiro vestido de gravata era como Armstrong na lua: raridade.
Resolvi ir na segunda indicação gastronômica. Era OUTRO ambiente. Tudo bem que à uma da tarde não é mais horário de almoçar no interior, mas o bifê ainda estava lá. O lugarzinho era verdadeiro e quando cheguei o xiru dono do restaurante deu um pulo na cadeira. Era um cara tão simples e verdadeiro que fiquei me sentindo culpado só por existir. E também por vestir aquela porcaria de gravata. O alemão xiru que me recebeu tinha aquelas mãos rosadas, de dedos troncudos e trabalhadores. Meio desbotados de lavar prato e com uma aliança que já tinha grudado na carne. No interior o casamento ainda é uma coisa que funciona bem, felizes dos interioranos. A bisteca empanada tinha uma camada grossa de gordura, igual aos olhos expectantes da senhora do caixa. Traguei a bisteca, um arroz com feijão e uma coca de garrafa, que são mais saborosas e, por isso, provavelmente mais cancerígenas que as de plástico. O sabor da comida era tranquilo como peidar sozinho. Na móvel que segurava a televisão, uma reunião de porta retratos da família do alemão. Não se encontram mais lugares tão personalizados nas grandes cidades, achei legal. E fiquei perplexo e com alguma inveja daquela unidade familiar rígida qual concreto, forte, todos ligados como unha e carne, como a aliança que se incorporava na carne do dedo do alemão e, por certo, na mão da alemoa dele. Só senti pena dele porque a velha do caixa devia ser a sogra – e não que eu concorde com o mito das sogras – mas é que aquela tinha uma cara de cão chupando manga misturado com leão de chácara de mau humor. E o alemão tinha todo o jeito de ser mandado por ela, pobre diabo. Paguei e tomei um café. Do lado da térmica de café, um bolo caseiro, com cobertura de chocolate e tudo mais. Um afeto ao cliente materializado de forma tão graciosa. Graciosa e grátis. O alemão devia dar cursos de restaurantologia nas cidades grandes para ensinar que o carinho simples é melhor que a babação de ovo que se faz nos restaurantes chiques da aldeia urbana.
Falei com o tal cara do banco e fui embora. Tinha que dar aula em Blumenau. Depois que acabou meu sonho cinematográfico na estradinha que levava até Atalanta cheguei à estrada do Nosso Senhor seu Diabo que é a BR470. Me disseram que se o Serra ganhar a eleição vai duplicar a estrada, até cogitei em votar nele por conta disso, mas como o infeliz deve estar mentindo, vou seguir votando nulo. Cheguei à Rio do Sul para mais um compromisso até o final da tarde. Em final da tarde de chuva todo robô urbano sabe como é o trânsito, com o plus de ser na estrada satânica. Com o mostrador marcando 370 km cheguei à Blumenau. Cansado mas disposto. Aulas não me cansam, pelo menos não mais. Na época de faculdade eu dormia quando tinha que escutar um idiota como eu falando sem parar. Hoje que sou eu o idiota não durmo mais. Resolvi meu problema de sono na sala de aula. Quando cheguei na sala encontrei esse carinho no quadro, gosto das turmas como se fossem todos meus irmãos, porque também não tenho idade pra ser pai de ninguém. E os 370km mais os 70km que ainda faltavam, tinham valido a pena, pelo carinho simples que tinha sido o bolo do café e coração do quadro negro.
Admito que nesse dia, achei que tu iria ver, rir e apagar, não imaginei que um gesto tão simples de demonstração de carinho seria tão valorizado dessa maneira.
ResponderExcluirE não, não foi 'puxasaquismo' mesmo porque eu te detesto, adoro, detesto, adoro... humm... não sei ao certo, haha!
Enfim! só fico triste de não ter aparecido na foto! Haha!
Adorável!
ResponderExcluirBom poder saber que existem pessoas assim ainda...
Parafraseando Nando Reis "estranho mas já me sinto uma velha amiga sua..."
Boa semana, beijo!
Pretendia dizer que... mas a leitura dos comentários me intimidou... rs
ResponderExcluirBeijos, profe!
Intimidou porque Lu?? Essa não entendi! Para de fazer charminho e diga ai :)
ResponderExcluirBeijo
Paulo, confia em mim, teria destoado da doçura dos comentários!
ResponderExcluirBeijos!