sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Cartas


Ontem tomei uma pinga, solito. E bastante. A pinga é uma amiga. Amiga porque nos joga em nossos próprios terrenos, nos nossos terrenos mais selvagens como diz o mestre Warat. Mas não só por isso. Porque ela nos pega pela mão e, delicadamente, nos joga no nosso terreno sem muros, comlpetamente aberto e de vastidão que a vista não alcança, e podemos deslizar com a maior parcela de liberdade que temos quando erguemos nossas cancelas morais e nos permitimos a pureza de ser, no sentido mais possível de existir, ainda que não seja a pureza completa, aquela que só com a morte somos premiados. O intróito é para dizer que com teu email fui longe, meditando sobre essa doçura existencial que é o encantamento de um por outro.

Ontem escutei o Chico falar sobre amor, dizer com outras palavras que só com simplicidade se pode explicar o amor. Como se fossem os três passos simples que traduzem o amor intraduzível por alguém. E o disse numa canção que resumiu as etapas da simplicidade da explicação do amor:

1) Gosto dela.
2) Gosto dela, porque era ela.
3) Gosto dela, porque era ela, porque era eu. (e ponto)

E ainda que seja inegável a beleza da bela que me chega por meio da foto, é uma beleza que a mim chega fria. É uma beleza quase morta, ainda que belamente morta. Desconfio dos ares sombrios da morte que paira no imaginário comum. Só concordo que a morte seja feminina, de resto, deve ser gostosa, apertada e com uma cinturinha de tocar polegares e indicadores com as mãos. Mas mesmo fúnebre, não deixa de ser bela. Tal qual tantas outras belas que nos perambulam e já perambularam. As belas das revistas. Que ejaculamos com o olhar e depois que folhamos a última página, voltamos a reiniciar a angústia a partir do novo piscar de olhos para o mundo. As belas tantas que trotam nas ruas em que nunca vamos estar, nas esquinas em que nunca vamos cruzar.

E por isso tudo, amigo, que mais belo que a imagem da bela que me envias, é o encantamento teu. Teu mais puro estado de encantamento é, este sim, a apoteose da beleza humana. Não da beleza de se ver, mas de outra mais fidalga que é a de se sentir. Da beleza que não tem traços definidos, mas que habita aquele universo sem nome, em que esforçadamente sempre tentaste estalar os dez dedos das mãos em riste para criar estrelas ao redor dos momentos mágicos que a vida te presenteou. E foram tantos, eu lembro bem. A vida - pressinto e sei - é graciosa com o amigo, que recebe encantamentos de presente em embrulhos tão delicadamente feitos. Com direito à fita mimosa e outros mimos notáveis.

Eu até poderia dizer, como a auxiliar tua subliminar angústia, se ela serve ou não serve pra ti. Mas não o farei. Porque o encantamento é uma divindade em que a resposta não tem vez, porque não se pode questionar. Se não há pergunta, prescinde-se da resposta: condição número um dos encantamentos. No dicionário dos momentos mágicos não consta a palavra porque, que provavelmente seja o mais amaldiçoado dos verbetes. Essa pergunta que fazes, é como a pergunta filosófica sobre Deus, que não é uma pergunta possível, por não requerer resposta. Como não to posso ser o respondedor que querias, me findo como narrador privilegiado já que acompanho teus poréns desde há mundo. Permita-me, com a humildade plena que'inda busco, ser o narrador de teu existencial. E o que narro, como amigo do coração, é que ela é um encantamento teu, e que, por isso apenas, ela é divina nos arredores de ti mesmo, que é o único universo que te pertence.

Hoje me sinto muito em mim mesmo. E sem fronteiras. E a vontade era de sentar na frente do mar, com o amigo na mesa de um bar e passar o dia se alimentando de diálogos sobre os encantamentos da vida. Dos instantes mágicos que passaram e dos que virão. Dádivas de ontem e de hoje, mas dádivas, seguramente dádivas.

2 comentários:

  1. Paulito, eu não tomei pinga, mas muito me identifiquei com a vontade de sentar na frente do mar, com um amigo na mesa de um bar e passar o dia se alimentando de diálogos sobre os encantamentos da vida...

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  2. Das coisas que fazem a vida significar, sem dúvida Miche!
    Beijão

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