segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Abandonado da enchente



Ouvi o dito popular há muitos anos atrás, mas nunca tinha me interessado na averiguação da sua origem. Agora descobri, lendo as reminiscências do Dr. Sérgio da Costa Franco. Nas "Memórias de Um Escritor de Província", aquele notável historiador, ao comentar a grande enchente de outono de 1941, em Porto Alegre, fala do desamparo das vítimas da calamidade, gerando nelas tamanho assombro que fez nascer na cidade a expressão o abobado da enchente.

As pessoas ficavam dias e dias fora de casa, com a perda de quase todos os pertences. Dos lugares mais altos, livres da inundação, olhavam sem esperança as águas subirem cada vez mais, num estado de estupefação que se confundia com a debilidade mental. Explica o escritor que, por muito tempo, qualquer palermice que se cometesse era explicada com crueldade: "Coitado, ele é abobado da enchente!Pois o movimento de subida da maré daquele outono antigo apateta gente até hoje, deixando-as ao desabrigo da bestialidade:

Abobado da enchente é quem passa pela vida preocupado unicamente em acumular dinheiro, como se, ao morrer, pudesse levar nos beirais da mortalha o que guardou na caderneta de poupança.

Abobado da enchente é quem larga mulher e filhos para se juntar com uma guria bem novinha, que quando diz "eu te amo tanto, meu velho" não olha para os olhos, mas para o extrato bancário do trouxa.

Abobado da enchente é quem entra na política pensando em se acomodar no dinheiro público. Quem saqueia o povo faz para si um mal tão grande que nem o próprio povo deseja.

Abobado da enchente é todo aquele que, ao invés de consultar um médico para saber o que pode ser aquela dor aguda, vai atrás do afamado curandeiro recém chegado na cidade.

Abobados da enchente são todos os que futilizam a vida, como se ela fosse um liquidificador a produzir o mesmo caldo insosso na próxima manhã amarelada.

Abobado da enchente é aquele que não acredita no sonho da transformação. Aquele que já não guarda mais nem uma parte de si mesmo para renovar-se na utopia.

O abobado da enchente é quem acha que são os outros os únicos culpados pela sua permanente infelicidade. Se pesquisar junto ao espelho, encontrará fácil o exclusivo responsável.

Abobados da enchente são todas aquelas pessoas que jogam a saúde pela janela, em busca de patrimônio, e depois vendem tudo na tentativa de vencer a doença nascida daquela procura.

Abobado da enchente é quem se considera uma irremediável vítima da sociedade.

Abobado da enchente é principalmente aquele que acha que a viagem pelo mundo desconhecido não vale o cansaço.

O abobado da enchente tem a certeza de que vai durar perto de cem anos, e que, por isso, tem tempo de sobra para se incomodar com bobagem.

E o maior dos abobados fui eu, quando deixei de acreditar em Deus!




Texto do neointerlocutor pessoano Afif Jorge Simões Neto

2 comentários:

  1. Prof. Paulinho!
    Não resisto a uma olhadinha nas suas publicações...
    Muito me identifico!
    Beijinho, Andréia
    (em outro momento explico como cheguei no seu blog...)

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