Buscando sair do País das Maravilhas, Alice indaga o Gato: “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar para ir embora daqui?” “Depende bastante de para onde quer ir”, respondeu o Gato. Tem o Direito, por si só, livre arbítrio para eleger seus caminhos e suas chegadas? Ou, ao contrário, é mero títere da cultura e da consciência coletiva do seu tempo? Onde estará a fonte inconsciente do Direito, para que lá se possa servir do maná curador de todas as chagas?
Para que se possa aproximar à idealização de Warat, que pretendia trocar os fantasmas do Direito pelas suas fantasias, é necessário compreender que o Direito codificado da modernidade nasce da mente do sujeito “ainda sem inconsciente”, ou melhor, ainda incapaz de percebê-lo. Quando a modernidade declara que a razão é a essência do homem, revela um estado fragmentado, uma não essencialidade suplantada pela monarquia do reino da lógica. As poeiras do inconsciente, a franja de significações pressupostas, o mundo por trás do espelho (que sempre nos cega diante da obviedade narcísica da autoimagem); tudo isso é esquecido na produção do Direito moderno que ainda hoje tanto deixa rastros.
Enquanto no livro de Carroll a batalha entre o Cavaleiro Vermelho e o Cavaleiro Branco pode representar simbolicamente um embate inconsciente de Alice entre seus pares de opostos (masculino X feminino); no filme dirigido por Burton essa simbologia é ainda mais presente quando os exércitos Branco e Vermelho se confrontam. O Exército vermelho, representando o animus de Alice, já que comandado pela tirânica Rainha que resolvia todo e qualquer problema decapitando seus convivas ("Cortem-lhe a cabeça!"); e a Princesa Branca, representativa do genuíno feminino de Alice, expressão da delicadeza, da bondade e da fraternidade.
Outra categoria de Freud que foi revista por Jung foram os complexos. Desmentindo o caráter patológico dado por Freud, Jung os considera como unidades funcionais de energia psíquica, presentes no inconsciente pessoal-biológico. Apropriando-se da noção freudiana dos pares de opostos, Jung afirma anima e animus como dois dos principais complexos presentes na natureza da psique. Desse modo, anima representaria a parte feminina oculta no inconsciente dos homens e animus a parte masculina oculta no inconsciente das mulheres.
Também Capra, apoiado na estrutura oriental do I-Ching, observou a relação entre feminino e masculino. Sua análise, porém, foi mais abrangente e tocou a alternância na cultura destes dois pólos arquetípicos: o yin como representação simbólica do feminino e o yang como representação simbólica do masculino. A dinâmica desses dois pólos esta associada a várias imagens antagônicas colhidas na natureza e na vida social. O autor refere que da mesma forma que homens e mulheres passam por fases yin e yang, também a cultura, como fenômeno dinâmico, experimenta picos em que um aspecto se sobrepõe ao outro. A cultura ocidental patriarcal, que tentou estabelecer de forma rígida que todos os homens e mulheres têm exclusivamente aspectos masculinos e femininos respectivamente, distorceu o significado desses termos da sabedoria chinesa e colocou os homens como protagonistas na cultura. O predomínio do pensamento racional se sintetiza no cogito, ergo sum cartesiano e demonstra que os indivíduos ocidentais equipararam sua identidade com sua mente racional e não com seu organismo total, cingindo arriscadamente corpo e mente. Associando o yin ao intuitivo e o yang ao racional, Capra constrói sua tese demonstrando que atualmente assiste-se a uma transição cultural que culminará com o enfraquecimento da cultura patriarcal e a inflação do feminino, cambio que, consequentemente, suplantará a supremacia do racionalismo em detrimento das características próprias do feminino (yin), como a intuição, a criatividade, a sensibilidade, a emotividade e todos estados ampliados de percepção da consciência.
Sem a pretensão de alongar a argumentação em torno da supremacia dos aspectos masculinos e da sujeição da mulher na cultura ocidental, por ser uma constatação de obviedade ululante, principalmente no período iluminista em que se construíram as bases do positivismo jurídico; cabe mencionar en passant que esse resultado cultural tem raízes históricas. Na Grécia antiga, as mulheres já eram marginalizadas e comparadas com estrangeiros e escravos, vivendo sempre sob tutela e dependência de algum homem da família (pai, irmão ou marido). Em Sêneca, Cícero e Terêncio; é possível vislumbrar o parco valor atribuído às mulheres pelas sociedades de seu tempo, quando afirmam, respectivamente: a mulher apenas ama ou odeia, e quando pensa, pensa somente coisas malvadas; a mulher tem tendência a delinquir em razão de sua ganância; as mulheres são fracas de intelecto, quase como crianças. Também o conhecido relato bíblico de Provérbios VII (25-27), confirma o truculento repúdio ao instinto feminino: a mulher é mais amarga que a morte porque é uma armadilha; seu coração, uma cilada; suas mãos, cadeias; quem ama Deus foge dela, quem é pecador é capturado por ela. Esses breves relatos e a ainda persistente – mesmo que verdadeiramente amenizada – cultura patriarcal, de homens que possuem melhores postos de trabalho e salários, posições políticas e diretivas, demonstram a supremacia de yang e a supressão de yin na cultura ocidental.
Além disso, a ideia do homem como dominador da natureza e da mulher, e a crença no papel superior da mente racional, se apoiaram na tradição judaico-cristã, que adere à imagem de um Deus masculino, personificação da razão suprema e fonte do poder único, que governa o mundo do alto e impõe sua lei divina. O progresso da civilização ocidental se deu, pois, pelo predomínio da intelectualidade e da racionalidade, sendo que, atualmente, essa evolução unilateral atingiu um estágio alarmante. Incapacidade de manutenção de um ecossistema saudável, dificuldade na administração das cidades, falta de recursos para uma adequada assistência à saúde, educação e transportes públicos, riscos da ciência médica e farmacológica e – acrescente-se – o sistema caótico e burocratizado do Estado e particularmente do Poder Judiciário, um Poder paquidérmico, caro, oneroso, devolvido a sua grande missão: garantir os contratos sinalagmáticos e a propriedade privada, em nome da confiabilidade no mercado internacional, como assinala Morais da Rosa; são alguns dos resultados da exagerada ênfase dada à polaridade yang (masculino) na nossa cultura.
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CONTINUA
* Versão sem notas de rodapé e indicações bibliográficas
Gostei bastante do texto. Coaduno com Jung em vários aspectos, principalmente: mulheres com animus aflorado (me vejo mais nessa classificação) dificilmente terão uma relação harmoniosa com homens que possuem a anima latente, precisamente porque constitui-se uma relação doentia em que a mulher passa a exercer muito poder sobre o homem e o equilíbrio logo vai embora juntamente com a admiração (pressuposto primeiro para uma relação dar certo). Dessa forma, sou totalmente contrária ao velho jargão popular "os opostos se atraem". Não, os opostos se atrapalham. Em tempos de metrossexual, de homens com medo das mulheres sem-medo e homens fazendo papel de mulheres na relação, eu estou carente de homens com animus latente...
ResponderExcluirTeu comentário pareceu um MANIFESTO Ana. E mesmo concordando sobre a inviabilidade dos opostos nas relações, detectei uma contradição do que vc disse, o que, na verdade acaba caindo no velho jargão dos psicos que diz que não gostamos nos outros aquilo que não gostamos em nós mesmos. Afinal, porque vc só aceita que o teu animus aflore e não a anima de um possível parceiro??
ResponderExcluirPode que algum homem desintegrado (sem anima latente) reclame por uma mulher sem animus aflorado, delicada, feminina e com ares de donzela...!
Beijo