segunda-feira, 28 de junho de 2010

O Direito no País das Maravilhas - Parte 2


Para fazer as pazes com suas próprias sombras – que na psicologia analítica de Jung é representação do plano inconsciente –, Alice precisa dar uma resposta a realidade e, ao mesmo tempo, convencer-se com suas respostas. Mas para construir essa autêntica realidade, precisa atirar-se no mundo irreal, na sua própria reserva selvagem (Warat). E segue os vestígios de irrealidade que aos poucos contestam os cristalizados conceitos impostos pelo seu meio. O coelho falante de vestes elegantes que perambula entre os jardins, é um convite ao inconsciente. Um chamado às verdades escondidas nos sonhos, ao que Freud bem sedimentou na história da psicanálise como o caminho por excelência para o inconsciente, ou, a via régia para o inconsciente. Alice, ao buscar a fantasia e o simbolismo onírico – uma vez que a história se passa dentro de um sonho –, transgride os padrões da sociedade burguesa e burocrática da Inglaterra do século XIX da qual pertencia.

O coelho branco se perde na escuridão de um buraco escondido no jardim, e incita Alice à descobrir-se, a dialogar com seus territórios desconhecidos. A aparente fragilidade da menina de cabelos louros é suplantada pela coragem: Alice se atira no invisível, no breu de uma extensa queda, uma queda que não terminaria nunca? O coelho falante, a escuridão, a interminável descida, a deformidade das imagens em relação aos traços preestabelecidos da razão; todos esses elementos da narrativa revelam indícios de que é nas profundezas de si mesmo que Alice se lança. Sua queda é a abertura de um caminho interior, que busca responder as angústias que a estreiteza do estado de vigília não pode oferecer.

Esse desapego de Alice à racionalidade de traços predestinados é bravio, corajoso. E é essa coragem que o surrealismo, enquanto expressão do selvagem e do onírico, reclama do Direito. O movimento surrealista ganha relevância nessas linhas porque pode ser considerado um desdobramento artístico e literário das revelações de Freud sobre o inconsciente no início do século passado. Ainda que tenha mantido alguns vícios do paradigma científico-cartesiano nas suas teorizações sobre o inconsciente e os métodos psicanalíticos, o mérito de Freud é imorredouro. Foi por meio do estudo das neuroses de suas pacientes que, pela primeira vez, revelou que toda ação consciente estava ligada a uma raiz de natureza subliminar. A instauração da psicanálise freudiana foi marco de um movimento ruptural entre o antigo casamento das verdades científicas com a lógica cartesiana que, muito antes de Freud, já se havia iniciado.

O físico estadunidense Fritjof Capra aponta que para formular uma teoria científica, a psicanálise freudiana se valeu dos preceitos da física clássica newtoniana. O autor repete as palavras do próprio Freud: os analistas são, no fundo, mecanicistas e materialistas incorrigíveis. As estruturas psicanalíticas, desse modo, restam amarradas ao paradigma racional-científico, uma vez que não dão conta de superar o esquema sujeito-objeto próprio da filosofia moderna. A teoria da personalidade de Freud se apóia em seus três elementos nucleares: id, ego e superego, todos vistos e nominados pela própria teoria como “objetos” internos, localizados e dispostos no espaço psicológico. O aspecto dinâmico da psicanálise, tal qual o da física de Newton, consiste em descrever como os “objetos materiais” interagem através de forças que são essencialmente diferentes da “matéria”. Essa umbilical relação entre psicanálise e física clássica torna-se flagrante quando consideramos os quatro conjuntos de conceitos que são base da mecânica newtoniana: 1) os conceitos de espaço e tempo absolutos, e o de objetos materiais separados movendo-se nesse espaço interagindo mecanicamente, 2) o conceito de forças fundamentais, essencialmente diferentes da matéria, 3) o conceito de leis fundamentais, descrevendo o movimento e as interações mútuas dos objetos materiais em termos de relações quantitativas e 4) o rigoroso conceito de determinismo e a noção de uma descrição objetiva da natureza, baseada na divisão cartesiana entre matéria e mente. Esses conceitos encontram correspondência com as quatro perspectivas básicas da psicanálise: topografia, dinamismo, economia e genética.

É na tentativa de superação das barreiras impostas pela cultura, pelo sujeito cônscio escondido no cogito e pela moralidade moderna, que a explicitação do lado humano recluso foi paulatinamente pintalgada na consciência histórica dos indivíduos. É possível afirmar que o desenvolvimento intelectual e emocional fomentado pela literatura romântica, bem como as tentativas de ruptura em relação à arraigada moralidade cristã – ainda muito presente na sociedade européia do século XIX –, foram os grandes estímulos para que o aprofundamento humano pudesse ser colocado como algo a ser pensado pela ciência. Se, de um lado, Edgar Allan Poe (1809-1849) e sua literatura fantástica, podem representar a emergente profusão literária da modernidade, de outro, a abertura da literatura erótica, fundamental para apoiar mais tarde Freud, deve muito ao ideal libertino de Sade (1740-1814). Nessa mesma esteira, o surrealismo infantil de Carroll com o mundo das maravilhas de Alice, é apenas mais um dos tantos aportes literários e culturais que colaboraram, ainda que indiretamente, para a abertura histórica e coletiva do discurso do inconsciente.

Na esteira da metafísica clássica, mesmo tendo posto em cheque a moralidade cristã européia com o desmascare das pulsões sexuais, especialmente com a concepção edípica; Freud seguiu preso à armadilha objetificante do cientificismo. Formada a relação analista-paciente e a proposta de cura a partir da autodescoberta por meio do outro, o paciente passa a se tornar um “objeto de análise”, um objeto a ser desvelado, confirmando a instrumentalização da metódica freudiana. Para o êxito clínico, alertava Freud que era necessária uma reconstituição da história do sujeito, recomendando uma atenção flutuante do analista a ponto de não privilegiar a priori nada na escuta do paciente e a fim de repelir o risco de uma interpretação do analisando a partir de suas preferência pessoais e de seus conceitos prévios, ainda que meramente teóricos.

É notável a proximidade entre os já apontados vícios do Direito que fomentam o atual discurso crítico e a teoria freudiana. Tal qual a psicanálise, também o Direito objetificou seu discurso. O positivismo jurídico – promotor da aplicação de um método dedutivo de aplicação de regras – não foi capaz de separar faticamente o Direito e a moral. O Direito, uma vez identificado com a lei positiva, sucumbiu diante de sua natureza rígida e objetivista, acabando sacrificado axiologicamente, e mantendo-se alijado da justiça (cisão entre ius e lex). Esse equívoco do positivismo jurídico determinou a aberração virtual da criação de dois mundos: o “mundo real” e o “mundo jurídico”. O método no Direito manteve distanciada a “verdade no Direito”. Do mesmo modo que sofregamente tenta-se sedimentar a noção de cooriginariedade entre o Direito e a moral, superando o positivismo para promover o movimento neoconstitucionalista; também na psicologia, insiste-se na manutenção de uma teoria dogmática da psique humana e no método psicanalítico iniciado por Freud.
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CONTINUA

3 comentários:

  1. Estou gostando da serie (e se possivel queria ver o artigo no formato "duro", e cientificamente engessado - hehe - do modo 'paper', com citacoes e tudo!).

    Apenas para (tentar) contribuir, eu, que como tu sabe sou admirador ardoroso do Jung, tenho que dizer: creio que o "modus" cientifico da era em que Freud viveu o impelia a certos caracteres epistemologicos. E a pratica psicanalitica old school viveu um periodo de trincheira contra o que era tido por "normal"/aceitavel, e talvez por isso tenha se cristalizado em alguns dogmas bobos. Mas uma leitura atenta das obras do Sigmundo (principalmente as do final da carreira, e mais especificamente, "Moyses e o Monoteismo") mostram que ele ADIANTOU o trabalho do CARLOS GUSTAVO, muito mais do que "junguianos" gostariam de admitir, inclusive quanto a algumas coisitas que sao historicamente atribuidas apenas ao seu (ex)discipulo - OI, inconsciente coletivo? Oi "mitologias" inconscientes? (tambem continua...) haha

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  2. Ri muitos com os comentários...
    Sigmundo, Carlos Gustavo (FreuDI MoRIN, DEScartes...hahahaha)

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  3. Ainda quero dar umas aparadas no artigo formato "seja feliz ABNT" Gabriel, mas depois te mando sim.

    Concordo plenamente que o Frêude tenha sido de algum modo escravizado pelos rastros do seu tempo...disso é quase impossível se libertar...e por isso mesmo que ele tem um grande mérito/coragem.

    Mas eu me libero para falar do Sugismundo pelo Sugismundo, -aquela pergunta besta que a Marilia gabriela sempre faz.
    Li poucos textos dele e por isso tenho uma metaleitura, que justamente por isso é, sim, viciada. O que sei do Frêude em grande parte é pelas linhas do Carlos Gustavo (essa ficou ótima..hahaha). Quero dar uma olhada em Moyses e Monoteismo e no Totem e Tabu, que são obras pós briga de comadres que tiveram ele e o Carlos.
    Ignorãncia minha à parte,o que eu sou veementemente contra é essa categorização, essa briguinha de freudianos x junguianos, sendo que todos partem de um lugar comum.

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    Érica Érica: é tudo culpa do MoRIN que brigou com o DE(S)CARTE(S). Por isso que o mundo tá assim..hahaha

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