quarta-feira, 2 de junho de 2010

Contos Imediatos XXIV



A MOSCA E A ABELHA

Ainda existem espaços kafkanianos nos tempos em que as mutações andam tão velhas que mal conseguem se transformar! E na Cidade dos Centavos, um homem acordou no meio da madrugada fria transformado em mosca. Completamente desqualificado como humano no ínterim do sono. A consciência era tudo que sobrava da antiga natureza de homem. Mesmo assim, o chamado da noite fez as asas baterem zunidamente. Era da qualidade das varejeiras. Daquelas que têm duas laminas brilhantes nos olhos negros, que mais parecem escudos sem pupila. Às moscas desde sempre lhes foi negada a pupila, e talvez por isso lhes tenha sido negada também a alma. É na consequencia da pupila que se percebe a alma: dos homens e dos bichos que a tem.

O homem agora mosca, voou pelos ares. Sua nova natureza fez com que se enfiasse no lamaçal fétido dos esgotos, na podridão dos lixões. Carregou – na circunferência atômica das patas – todos os germes das doenças, comprometendo todas as superfícies. Andou pelo pus e pelo sangue putrefato dos lixos hospitalares. Pousou nas feridas abertas dos bichos urbanos em decomposição. A efemeridade de seu estado de mosca terminou quando o primeiro raio de sol se desenhou no horizonte. Transformou-se em abelha. A benesse do destino o fez sublimar em mel imortal o frágil perfume das flores. Sugou o néctar das pétalas sem tirar-lhes, porém, o viço. Libou as rosas, as orquídeas e as todas as margaridas que encontrou pelo caminho. Virou doçura e misericórdia. Virou poesia.
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PFF

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