segunda-feira, 21 de junho de 2010

O Direito no País das Maravilhas - Parte 1


Alice, assim como os juristas, mastiga uma angústia diária. Começa sua fábula aborrecida, angustiada e cansada de estar sentada ao lado da irmã na ribanceira, e de não ter nada que fazer [...] Alice mal podia refletir (qualquer remissão ao azedo “operador irreflexivo do Direito”, que simplesmente manuseia uma máquina que desconhece, é mera coincidência) já que o calor a fazia se sentir burra e sonolenta.

A angústia que mastiga Alice não pode ser desfeita nem pela maceração dos dentes nem pelas enzimas salivares. A angústia dela é a mesma que acompanha a história da civilização: ela também quer descobrir verdades, as suas próprias verdades. Vê-se envolta em um sublime terremoto particular, em que os mais suaves sismos se transformam em grandes movimentos ctônios em seu interior. Buscar respostas é, então, seu objetivo (in)consciente. A Alice de Lewis Carroll e o Direito se reconhecem, desde já, na intimidade que têm com a (sensação de) angústia .
No Direito, esse desassossego já vem de há muito apontado pela doutrina crítica. Cansativamente narradas, as angústias jurídicas pairam, com mínimas variações, sempre sobre conhecidos problemas e fracassos. (1) Fracasso do positivismo-lógico-dedutivo-apriorístico, que afasta jus e lex sem condições de responder a efervescência pluralizada que é gritada nas ruas ; (2) monarquia de uma instrumentalidade burocrática, que acaba por retardar a solução dos problemas no único mundo que existe, aquele que está fora dos manuais de Direito que ainda separam o mundo em real e jurídico; (3) hipocrisia do discurso em torno do “princípio da segurança jurídica”, fórmula institucionalizada de curar o misoneísmo próprio da natureza humana; (4) esquecimento do caráter tópico-problemático do Direito, em que reinam decisões dadas de antemão com a cultura das súmulas e, por fim, (5) o estado de natureza (Hobbes) ou o caos interpretativo gerado pela produção arbitrária das decisões. Todos esses fios condutores compõem o que se poderia chamar de top five em matéria de discurso crítico do Direito contemporâneo. Afinal, desconstruir é algo que nunca fica démodé em todo discurso que pretende criticar...

A vida de Alice, tal qual a vida do Direito e dos juristas engravatados (em época em que o já tórrido calor brasileiro entre trópicos é temperado com os fenômenos niño do tempo), é burocrática. Diante desse sufocamento que alija tanto Alice quanto o Direito das verdades capazes de curar suas angústias, é preciso indagar: como superar o oceano de incertezas que separa Alice dos continentes que guardam suas próprias verdades? Como fazer com que os juristas des-cubram as entrelinhas capazes de fazer brotar as novas verdades que amenizarão as angústias do Direito?

Para os mais ortodoxos – e são tantos no Direito – pode parecer uma grande loucura falar da intocável “ciência jurídica” por meio de uma fábula infantil do século XIX. Direito e Literatura, por si só, é das coisas que não entram bem na cabeça dos juristas mais tradicionais . Mas como esquecer da literatura no Direito, ela que é um esforço para tornar a vida real, a única forma de tornar transmissíveis as impressões do mundo, diz Fernando Pessoa . Aos que a rejeitam no Direito, sequer é possível culpá-los, afinal, quem poderá explicar de onde brota a sensibilidade? Ou será que ela brota em todos e só depois é que somos adestrados/domesticados pela moral, os (bons?) costumes, a lei e o Direito? Educados para poder sermos partícipes da fábula real das certezas... Seja como for, é da natureza da tradição negar o novo. Lá nas terras do Rio Grande do Sul de onde venho, os Centros de Tradição Gaúcha – CTG, não aceitam que homem use brinco na orelha, já que o adereço é uma insígnia do feminino e, portanto, é antidemocrático no microuniverso gauchesco que se rasgue a tradição... Antes, melhor, se rasgue a orelha do desgraçado que ousa tal petulância...

Aos juristas medíocres (sem qualquer tom pejorativo aplicado), essa subversiva tentativa de caminhar entre a Literatura e o Direito é vista como loucura, ingenuidade. Tudo deve ter utilidade prática, dizem. Esquecendo-se de que as “utilidades” são tão domesticadas quanto eles mesmos. Falar de loucura é importante para promover interlocuções entre o Direito e a fábula de Alice, especialmente quando se tem como pano de fundo o surrealismo. Não sem razão que é de loucura que são comumente qualificadas todas as manifestações surrealistas...Que o diga o bigode espetado de Dalí ou os dois maridos da ciência jurídica criados por Warat . Entender a falta de espaço do surrealismo no mundo contemporâneo, tão escravo da racionalidade, é ter a certeza de que Dalí, se vivo fosse e motorista quisesse se tornar, seria reprovado nos testes “psicotécnicos” das auto-escolas. É comum em tais testes que se solicite ao candidato que desenhe um homem atrás de uma árvore. Avalia-se a existência de lógica na produção do desenho: se há um chão que sustente os elementos, se, de fato, o candidato desenha uma pessoa, já que se é para estar atrás da árvore não pode aparecer no desenho etc... Dalí desenharia um pênis no lugar da árvore, um céu no lugar do chão e um cachorro com asas no lugar do homem...Eis um pequeno exemplo de que a genealidade – e sua produção – não tem espaço no mundo sufocado pela lógica, na sociedade hiper-racionalizada, para usar a expressão de Gadamer.

Quase três séculos antes de Alice se eternizar na literatura mundial pelas mãos de Carroll, Erasmo de Rotterdam, em meio à efervescência do renascimento europeu no século XVI, escreve Elogio à Loucura , tornando-a, ao mesmo tempo, personagem e narradora de seu relato. A Loucura, então, explica que está presente desde a mais pueril tolice até o absoluto desvario. Que todas as ocorrências do mundo são motivadas por ela e suas infinitas facetas. Atrás de toda razão, há uma desrazão, diz Erasmo. A loucura ganha aqui amplitude e passa a ser compreendida também como a adesão consciente ao comodismo, o ingênuo comodismo. Essa acomodação, essa paralisia, essa inércia diante do posto, são também chamadas por Erasmo de loucura. É contra essa acomodação perniciosa do Direito, que o mundo fantástico de Carroll pode servir de caminho. Um caminho que desembocará na proposta do surrealismo jurídico propagada por Luis Alberto Warat. Em uma dessas tantas faces, ser louco é pretender manter a sensatez em um mundo de loucos que não se sabem loucos. É também, repita-se, uma pitada de ingenuidade consciente. Ou, pergunto, não existe uma gigantesca e sublime ingenuidade, uma loucurinha amena dos juristas que ainda acreditam que a vida está contida nos Códigos? Ou não há um consenso ingênuo e consciente de que é o Caos o grande rei dos Tribunais? Esse direito dos Tribunais que muda tal qual a direção dos ventos e as vontades soberanas (vide caso Tofoli...).

É por acreditar que toda modificação carece do abandono do lugar comum e da vitória sobre a qualidade misoneísta – o velho medo do novo e do desconhecido – que a analogia de Alice é trazida para os engessados espaços do Direito. E a loucura sensível do surrealismo é o caminho para que a criatividade – somente ela – nos mostre a possibilidade do novo. O novo que é urgente no Direito. Philippi , em metacomentário à Fenomenologia do espírito de Hegel feita, antes, por Lacan, sentencia: a única saída para superar a agonia das coisas que se recobrem, das verdades que nunca se deixam tocar, é oferecer-se como objeto de sacrifício. É assim que aqui se quer abanar em despedida ao Direito. Sacrificando-o. Deixando que padeça até que pingue a última gota de sangue e de consciência. Que se faça morte de sua morbidez. E que, ao final, se amenize a angústia.

É essa amplitude que vai além da morte, que a escuta surrealista do Direito reclama. Para deixar que a ingenuidade se dê apenas em pitadas como quer a Loucura de Erasmo, mas que não reine tirânica e cega diante das sombras do Direito. Que se abra o caminho no País das Maravilhas do Direito. Que se desvele a imagem ocultada pelo espelho. Que seja a loucura o caminho em direção ao “estado do absurdo”...
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CONTINUA...

3 comentários:

  1. Paulinho, achei fantástica a tua comparação!
    Quando li, parece que tudo ficou claro.. e continuei a indagar, roubando a tua idéia.
    É triste ver que nosso Poder Judiciário, a 'Rainha de Copas', vive na época das súmulas vinculantes, dos recursos repetitivos, das decisões unânimes nos TJs.

    Espero pela parte II.
    Abraço!

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  2. Brigadão Lili. O artigo todo (com as notas de rodapé que aqui suprimi) vai sair nos anais do Literato da UFSC 2010 e, provavelmente, na Revista de Direito e Psicanálise da UFPR, n. 3.

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  3. Essa tua analogia da "Rainha de Copas" tb é ótima!! Se fosse antes ia copiar tua ideia, fazendo referência, lógico..hahaha
    Beijão

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