quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Contos Imediatos III


FÔLEGO

Muito antes do descobrimento, o Brasil já existia. Os indígenas da aldeia Ciporó, situada onde hoje está plantado o estado do Mato Grosso, além dos já sabidos sadios costumes de desapego às coisas que não pudessem encher a barriga ou curar as enfermidades; também cultuavam uma deusa. Aos indígenas lhes era reto que o espírito se mantivesse em equilíbrio. Plenamente são. E cultuar a deusa, nos ritos semanais com dança e uma tinta que lembra a guache de hoje, era a forma que tinham de frear as neuroses e controlar as loucuras. Mantinham, internamente, um pacto de entrega e devoção à deusa.

Um indiozinho da tribo, porque ainda não tinha bem formado seu aparelho de consciência e também porque ia desvelando o mundo aos poucos, pouco sabia os porquês de estar no mundo e o que devia fazer com seu corpo e sua alma. Sem entender o que eram os sonhos, sonhava repetidamente com a deusa. Pela reprimenda à sexualidade, a ninguém contava o indiozinho os sonhos desejosos que tinha com a deusa, e todas as formas dela que sua fantasia onírica desenhava. Uma certa noite, depois do culto semanal à deusa dos seus sonhos, levantou de assalto do retiro de palha que lhe escorava o corpo e a alma. Levantou. Saiu da tenda armada. E quando olhou para trás, estava sua deusa, imensa, tinha a altura de uma onda de sessenta andares. Era como a via nos sonhos, com exceção do tamanho altaneiro. Era, deveras, imensa. O indiozinho fitou-a, amedrontado. Mal podia ver os olhos da deusa que se confundiam com as estrelas do céu. Num repente, a deusa bradou e caiu de joelhos na terra. Fazendo tremer até os ctônios da terra. Ficou ajoelhada por uns poucos instantes. E o indiozinho pode sentir o bafo úmido e quente que soprava de sua fenda. Percebendo que a deusa começava a desabar sobre a terra, o indiozinho correu. Sem olhar para trás. Escutava que, lentamente, o corpo pesado da deusa que caia no chão, ia devastando toda a aldeia e a floresta. Ia dizimando tudo que fosse vivo. Ela era imensa. O indiozinho correu, sem olhar para trás.
E quando o barulho das árvores quebrando e os gritos de todos os índios cessou, continuou correndo. E está correndo até hoje. Sem cansar. Também nunca mais dormiu, e nunca mais voltou a sonhar com a deusa.
PFF

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