Encontrei o texto abaixo no blog do PPGDireito da Unisinos que foi retirado da revista Carta Capital. Trata-se de uma cientificação aos cegos do castelo que gritam aos sete ventos aos seres rastejantes das ruas que não são bichos: vai trabalhar vagabundo, você tem 2 braços e 2 pernas como eu! O que é preciso fazer para ganhar a carícia de um olhar? Se não começarmos a olhar e ouvir os murmúrios para além das miradas e sussurros que agradem nossos sentidos, inciamos, inevitavelmente, o processo de convulsão da estrutura social. Talvez o nosso guerreiro da vida relatado abaixo tenha sido abatido pela nova epidemia global: "a vontade de José Mayer"...
José carlos da Conceição estava com a aparência de quem havia se perdido há muito. Descalço, com unhas, cabelos e barba enormes. Ladeado por policiais militares e bombeiros, o baiano de 26 anos saía à força do local onde pretendia dar cabo da própria vida. Enquanto José Carlos era algemado, curiosos, que ao longo da manhã interromperam suas rotinas e se aglomeraram para acompanhar o desenrolar da história, gritavam contra ele. “É um marginal. Tem de ser preso”, “Ele precisa de uma surra”, “O que ele quer é roubar”, diziam. O jovem mantinha o olhar fixo, distante.
Um ano antes, José Carlos deixava a cidade de Lauro de Freitas, na Bahia, onde vivia, para buscar trabalho a 800 quilômetros de distância, no Recife. Na capital pernambucana, além de não encontrar o que procurava, trilhou o descaminho. Ao chegar, disse, foi assaltado. Não sobrou nada. Dinheiro, lenço ou documen-to. Começou a vagar pela cidade, a dormir na rua. Virou pedinte. Pedia trabalho e ajuda. O primeiro, não encontrou quem lhe desse. A segunda, com o pouco que recebia tentava vencer a fome diária. À família, avisou apenas que iria viajar, não disse para aonde. “Perdi o contato.”
Pouco antes do dia em que decidira se matar, José Carlos se envolveu em uma briga de bar. Foi esfaqueado, na barriga. Atendido em um hospital público do Recife, teve de enfrentar uma cirurgia. Ficou dias internado. Após receber alta, voltou para as ruas. Raciocinou com a lógica do desespero e foi então à rodoviária. Pensava que no lugar de partidas e chegadas, conseguiria encontrar seu caminho de volta. Pediu em vão auxílio a viajantes. Decidiu dormir no terminal. Acabou expulso uma semana mais tarde.
Sem ter como contatar a família, sem esperança de voltar à Bahia, José Carlos escolheu o suicídio. Na manhã de uma segunda-feira subiu em uma torre de telefonia para se jogar. A cena mudou a rotina de uma movimentada avenida em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife. A polícia e o Corpo de Bombeiros foram acionados. Um carro e uma equipe de resgate, além de duas viaturas policiais, seguiram para o local.
Os curiosos se acotovelavam nas calçadas, em cima de muros, na rua. O trânsito parou. Nos ônibus, todos os rostos estavam voltados para o alto. As buzinas não cessavam. “Pula logo. Para de chamar a atenção, rapaz”, alguém gritou. Não faltou quem tentasse adivinhar o que o teria levado a tomar tal decisão. “A mulher traiu ele”, disse uma senhora. “Ele é um golpista, faz isso para tirar dinheiro dos outros”, garantiu outro.
Naquela segunda-feira, o pastor evangélico José Alencar Lopes fazia seu trajeto habitual quando viu a movimentação próxima à torre de telefonia. Informou-se a respeito e descobriu que se tratava de uma tentativa de suicídio. “Tentar se matar é coisa de quem está desesperado. Decidi conversar, tentar ajudá-lo. Ajudar os outros faz parte do meu trabalho, do trabalho de Deus”, explicou. Depois de duas horas, com o apoio do pastor, José Carlos foi convencido a descer. E só o fez mediante uma promessa: em troca, receberia auxílio para retornar à Bahia.
José Carlos carregava apenas uma sacola de plástico com o que parecia ser uma rede velha e suja. Seus lábios estavam rachados. O corpo, coberto de feridas. Na barriga, a cicatriz da cirurgia recente. “Não quero ir para hospital. Quero ir para casa. Vocês vão me ajudar? Preciso ir para casa”, repetia. Ao descer da torre, precisou ser escoltado. Ante o desfecho anticlimático, os espectadores tentaram agredi-lo.
Não parou por aí. Na delegacia, policiais checaram sua ficha. Nenhum antecedente. O nada consta criou, porém, outro problema. Liberado e sem ter para onde ir, José Carlos deveria ser encaminhado ao Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano. Deixá-lo ao léu seria arriscado. Poderia gerar novo tumulto. Comunicado da decisão, o baiano estacou na porta da delegacia. “Para lá não quero ir não. Para o Ulysses não.” Se fosse, seria a quarta passagem de José Carlos pelo local. Então, pela segunda vez, o pastor José Alencar entrou na história. Contatado pelos policiais, o religioso foi à delegacia e assumiu a responsabilidade pelo rapaz.
Ao pastor, ele relatou sua história. “Aconteceu com ele o que acontece com muitos jovens: não consegue trabalho, nem comida, e acaba se envolvendo com bebida e confusões. Não aparece quem lhe dê a mão, apenas quem lhe mostre o mal. Ele estava sem esperança, faminto há vários dias. Além disso, ninguém quer por perto uma pessoa pobre e fedendo, não é?”, diz. José Alencar ofereceu orientação, abrigo, comida, banho e roupas a José Carlos. “Com a barba feita, cabelo cortado, roupas limpas e banho tomado, ele ficou até bonito, o rapaz”, brinca. O pastor levou o protegido à rodoviária e comprou a passagem de volta para a Bahia. Após um ano, o jovem registrou a perda dos documentos e voltou a existir oficialmente. Quinze para as 7 da noite, embarcou de volta à terra natal.
Durante o tempo em que permaneceu na cidade, José Carlos só foi percebido pelos olhos do poder público nos momentos em que quase morreu. Sua passagem pela estrutura de Saúde do estado e a operação de resgate, quando tentou se matar, custaram aos cofres do governo cerca de 3 mil reais. A atenção dispensada a José Carlos por um cidadão comum solucionou o problema de um ano em uma tarde e com pouco mais de 150 reais. “Acredito que isso deu a ele uma nova chance de ter uma vida digna”, concluiu o pastor, capaz de um gesto humanamente simples (Larissa Brainer – 16/10/2009).
Um ano antes, José Carlos deixava a cidade de Lauro de Freitas, na Bahia, onde vivia, para buscar trabalho a 800 quilômetros de distância, no Recife. Na capital pernambucana, além de não encontrar o que procurava, trilhou o descaminho. Ao chegar, disse, foi assaltado. Não sobrou nada. Dinheiro, lenço ou documen-to. Começou a vagar pela cidade, a dormir na rua. Virou pedinte. Pedia trabalho e ajuda. O primeiro, não encontrou quem lhe desse. A segunda, com o pouco que recebia tentava vencer a fome diária. À família, avisou apenas que iria viajar, não disse para aonde. “Perdi o contato.”
Pouco antes do dia em que decidira se matar, José Carlos se envolveu em uma briga de bar. Foi esfaqueado, na barriga. Atendido em um hospital público do Recife, teve de enfrentar uma cirurgia. Ficou dias internado. Após receber alta, voltou para as ruas. Raciocinou com a lógica do desespero e foi então à rodoviária. Pensava que no lugar de partidas e chegadas, conseguiria encontrar seu caminho de volta. Pediu em vão auxílio a viajantes. Decidiu dormir no terminal. Acabou expulso uma semana mais tarde.
Sem ter como contatar a família, sem esperança de voltar à Bahia, José Carlos escolheu o suicídio. Na manhã de uma segunda-feira subiu em uma torre de telefonia para se jogar. A cena mudou a rotina de uma movimentada avenida em Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife. A polícia e o Corpo de Bombeiros foram acionados. Um carro e uma equipe de resgate, além de duas viaturas policiais, seguiram para o local.
Os curiosos se acotovelavam nas calçadas, em cima de muros, na rua. O trânsito parou. Nos ônibus, todos os rostos estavam voltados para o alto. As buzinas não cessavam. “Pula logo. Para de chamar a atenção, rapaz”, alguém gritou. Não faltou quem tentasse adivinhar o que o teria levado a tomar tal decisão. “A mulher traiu ele”, disse uma senhora. “Ele é um golpista, faz isso para tirar dinheiro dos outros”, garantiu outro.
Naquela segunda-feira, o pastor evangélico José Alencar Lopes fazia seu trajeto habitual quando viu a movimentação próxima à torre de telefonia. Informou-se a respeito e descobriu que se tratava de uma tentativa de suicídio. “Tentar se matar é coisa de quem está desesperado. Decidi conversar, tentar ajudá-lo. Ajudar os outros faz parte do meu trabalho, do trabalho de Deus”, explicou. Depois de duas horas, com o apoio do pastor, José Carlos foi convencido a descer. E só o fez mediante uma promessa: em troca, receberia auxílio para retornar à Bahia.
José Carlos carregava apenas uma sacola de plástico com o que parecia ser uma rede velha e suja. Seus lábios estavam rachados. O corpo, coberto de feridas. Na barriga, a cicatriz da cirurgia recente. “Não quero ir para hospital. Quero ir para casa. Vocês vão me ajudar? Preciso ir para casa”, repetia. Ao descer da torre, precisou ser escoltado. Ante o desfecho anticlimático, os espectadores tentaram agredi-lo.
Não parou por aí. Na delegacia, policiais checaram sua ficha. Nenhum antecedente. O nada consta criou, porém, outro problema. Liberado e sem ter para onde ir, José Carlos deveria ser encaminhado ao Hospital Psiquiátrico Ulysses Pernambucano. Deixá-lo ao léu seria arriscado. Poderia gerar novo tumulto. Comunicado da decisão, o baiano estacou na porta da delegacia. “Para lá não quero ir não. Para o Ulysses não.” Se fosse, seria a quarta passagem de José Carlos pelo local. Então, pela segunda vez, o pastor José Alencar entrou na história. Contatado pelos policiais, o religioso foi à delegacia e assumiu a responsabilidade pelo rapaz.
Ao pastor, ele relatou sua história. “Aconteceu com ele o que acontece com muitos jovens: não consegue trabalho, nem comida, e acaba se envolvendo com bebida e confusões. Não aparece quem lhe dê a mão, apenas quem lhe mostre o mal. Ele estava sem esperança, faminto há vários dias. Além disso, ninguém quer por perto uma pessoa pobre e fedendo, não é?”, diz. José Alencar ofereceu orientação, abrigo, comida, banho e roupas a José Carlos. “Com a barba feita, cabelo cortado, roupas limpas e banho tomado, ele ficou até bonito, o rapaz”, brinca. O pastor levou o protegido à rodoviária e comprou a passagem de volta para a Bahia. Após um ano, o jovem registrou a perda dos documentos e voltou a existir oficialmente. Quinze para as 7 da noite, embarcou de volta à terra natal.
Durante o tempo em que permaneceu na cidade, José Carlos só foi percebido pelos olhos do poder público nos momentos em que quase morreu. Sua passagem pela estrutura de Saúde do estado e a operação de resgate, quando tentou se matar, custaram aos cofres do governo cerca de 3 mil reais. A atenção dispensada a José Carlos por um cidadão comum solucionou o problema de um ano em uma tarde e com pouco mais de 150 reais. “Acredito que isso deu a ele uma nova chance de ter uma vida digna”, concluiu o pastor, capaz de um gesto humanamente simples (Larissa Brainer – 16/10/2009).
Adorei o blog querido...
ResponderExcluirTua inteligência e esse humor irreverente..transformam fatos em pequenos prazeres...a exemplo..com vc por perto é fácil ter 30.. 35 anos...vc tranforma isso em poesia..sádica..que se converte em puro prazer..
Vc me lembra em alguns momentos o personagem de Kundera...não um canalha..mas sim um ser só um ser que vive o momento.
"Mas o homem, porque não tem senão uma vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a um sentimento."
Bjos
Fran