É de pulsão de vida, de movimento, que está circundada Alice quando se permite a aventura de si mesmo, o lugar do novo, onde tudo nunca fora antes visto. O mesmo, porém, não acontece com o Direito. Ainda que a avalanche (re)produtiva seja deveras volumosa e possa até parecer pluralizada – e aqui lembre-se da extensa (re)produção jurisprudencial e doutrinária –, deve-se também lembrar que todos esses ingredientes borbulham na mesma caldeira, movendo-se limitados pelas barreiras da microesfera escaldante. Todos esses pequenos movimentos se deslocam, como em círculos, dentro do mesmo microuniverso estatal. Qual a floresta que confunde viajantes desnorteados, fazendo-os tanto caminhar para retornar ao lugar de início, também o Estado, no que tange a complexa trama que envolve a solução de conflitos sociais, desbaratina, cega seus juristas aventureiros diante da imposição das premissas com as quais dele se há que partir. Se não há percepção capaz de promover a fuga desse cercado de arame com farpas, há, sim, falta de coragem. O surrealismo promove o rasgo. Prescinde-se, para a finalidade aqui exposta, do contrato social. Não mais é necessário o “assujeitamento” de todos ao Estado, à figura artificial do Pai, ao responsável institucional de julgar-as-dores.
Eis a lição de Alice. No início de sua aventura no País das Maravilhas, Alice logo se acostuma com as tantas coisas esquisitas que lhe sucedem e passa a pensar em como seria sem graça e maçante se a vida que tinha seguisse da maneira habitual. “Cada vez mais estranhíssimo!” exclamou Alice (a surpresa fora tanta que por um instante realmente esqueceu como se fala direito) . Talvez esquecer seja o grande desafio do Direito, para que possa não ser mais o mesmo – ou apenas um bocadinho diferente – e que consiga responder a mesma pergunta de Alice: Afinal de contas quem eu sou? Ou para quê sirvo?
O abandono da bóia da razão normativista é vital para que se permita esse duplo efeito da morte no Direito: abandoná-la como a pulsão fruediana que indica paralisia e abraçá-la como processo de introdução ao inédito que surge com a criação. O instinto criativo ganha na teoria de Jung uma importante dimensão e é colocado como derradeiro e mais aprimorado na escala que redefine a libido – não mais reduzida à sexualidade como impunha Freud – mas como energia psíquica totalizante. Jung elaborou uma escala de instintos interdependentes que compõem o complexo conceito de libido (energia psíquica) em sua teoria. (1) autopreservação, instinto primeiro de saciar-se com a alimentação; (2) preservação da espécie, com a sexualidade; (3) ação, aqui compreendida de modo amplíssimo; (4) reflexão e (5) criatividade . Para Jung essa é uma escala de instintos que obedece a uma relação de precedência natural, ou seja, não haverá inclinação à sexualidade se, antes, não houver sido satisfeita a sensação de fome.
Essa é uma teorização importante para elevar a reflexão como condição de possibilidade para que se instaure o processo criativo. O Direito e a grande argamassa de juristas que tentam desenvolve-lo, parecem esbarrar no terceiro instinto da escala junguiana, o instinto de ação, já que geram apenas movimentos preestabelecidos e acríticos. Há movimento, mas um movimento como de peixes no aquário, que mesmo tendo o mundo além dos vidros tão próximo, mantêm-se no universo proposto/imposto dos vidros que o cercam.
Para além dos vidros (ou da caldeira, como se queira) do Direito, por certo, muito há. O surrealismo jurídico, expressão desenvolvida por Warat, oferece a mediação como uma das alternativas de superação da jurisdição estatizada. Invocar a mediação como forma de solução de conflito é reflexo de uma grande transformação cultural que está em curso: a alternância de prevalências entre o feminino e o masculino na cultura.
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CONTINUA
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