quarta-feira, 25 de maio de 2011

QUANDO OS SINOS SINAM

Uma vez vi um documentário sobre um clã indiano que se organizava de tal forma a sempre ajudar os clãs vizinhos. A comida, por exemplo, era fabricada, plantada, colhida, transportada, preparada e distribuída por esse clã, que era chamado de clã dos Surugtánga (inventei o nome, óbvio). (tem umas mentiras que são óbvias e só os conformados, os inseguros e os egoístas conseguem perceber e ficar calados, como se óbvio travestido travestisse a verdade de suas bocas).

Os Surugtánga sempre alimentavam todas as outras tribos vizinhas de forma gratuita e amorosa. Como se houvesse – aos moldes de hoje, em tempos em que se tem como princípio afiançador da realidade o referencial da obtenção de vantagens e privilégios – uma comunidade de vagabundos que ficasse só mamando nas tetas de uma comunidade de ordeiros e compenetrados trabalhadores. Nesse país, os ricos serviam e os pobres banqueteavam. Aqueles que serviam diziam que estavam servindo à Deus, já que, segundo os preceitos de seus livros sagrado, alimentar outra alma era alimentar a alma de Deus. A recompensa pela satisfação do pantagruélico Deus era o alimento plural enviado em pacotes invisíveis que vinham pelo sistema de sedex dos céus.

Dito isso, pergunto: qual escrito ou livro não é de autoajuda? Os que se autodenominam como "intelectuais", escrevem sem perceber que, quando escrevem, a única coisa que verdadeiramente fazem é promover uma autoajuda que em geral serve pra satisfazer a fome da sua própria vaidade. Em geral os que se autoproclamam intelectuais acham o ceticismo um perfume francês charmoso. Os intelectuais, tal qual Narciso, usam o ceticismo para pregar a descrença e a sua profundidade em assuntos pra lá de stricto sensu.

Pra aprofundar, escrevem. Aprofundam-se num falso saber "universal" na mesma medida em que se ajoelham na terra, para que seu reflexo possa parecer cada vez maior no espelho da água do riacho... No instante anterior ao momento em que o próprio nariz encoste na água e, acometido de uma overdose de realidade, perceba a baixeza das alturas habita. Os intelectuais têm certeza que autoajuda é sinônimo de fraqueza, odeiam Paulo Coelho porque Paulo Coelho, em sendo vendido às vastas multidões, não tem os ares nobres reservados exclusivamente aos selecionados divinos que não precisam de transcendência para compreender e sentir tudo de todas as maneiras, como já poetou o facetadíssimo Fernando Pessoa.

Os “intelectuais” então escrevem todas as verdades. Secas e verdadeiras. Fantasiosas e verdadeiras. Enchem as estantes das livrarias de tantas verdades. Formam missionários da verdade ensinando a verdade aos quatro cantos.

Os crentes, do outro lado da trincheira, dizem dando de ombros:

- pobres intelectuais, cegos intelectuais. Todos esses ditos deles já foi outrora dito nos livros sagrados.

Quando chega a noite, o intelectual encontra Deus nos próprios pesadelos, sonha que têm todos os livros do Paulo Coelho autografados em sua biblioteca particular. No sonho do crente ele é vencedor de uma loteria em que o mais elevado prêmio é toda a sabedoria terrena e todos os melhores insight’s poéticos reunidos em um kit mágico com um broche luminoso que diz: “APRENDA A ME USAR, PERGUNTE-ME COMO”. Ambos acordam e dormem, e acordam e dormem, e acordam e dormem, e às vezes até discutem, o intelectual mentindo que aceita qualquer coisa bem fundamentada, o crente mentindo que crer por crer é convencimento bastante...

Enquanto isso, os pescoços de ambos ficam à mercê da imensa corda fabricada para servir de forca chamada paradoxo. Os intelectuais escrevem pra encontrar a saída do labirinto, pensando que perder-se no labirinto é charmoso. Os crentes acreditam piamente que já estão fora do labirinto, sem perceber que o labirinto é uma invenção que satisfaz as necessidades das suas fantasias maniqueístas. Os crentes acreditam no destino. Os intelectuais acreditam na sincronicidade. Os crentes acreditam em Deus. Os intelectuais acreditam que não acreditam...O grupo dos intelectuais sente que, no seu grupo, existem crentes disfarçados. Os crentes tentam converter intelectuais que eventualmente se aproximem do grupo da fé. Criançolas.

*

Enquanto o paradoxo não for assassinado a sangue frio, deixando suas vísceras expostas e à vista dos abutres comedores de vísceras podres dos outros, não será possível compreender que qualquer explicação ou negação de Deus nunca será capaz de não estar contida em qualquer escritura que possa ser qualificada de sagrada ou num escrito intelectualmente “elevado”. Que se foda o clichê, a pouca fama do já dito  e o chavão, mas a faca mais afiada pra se passar na goela do paradoxo é o amor. Mas provavelmente não esse que você está pensando. O amor que vem da única overdose que não mata que é a overdose de amor...essa outra ferramenta paradoxal...

Os Surugtánga eram na verdade grandes egoístas. Mas eram egoístas altruístas. E, portanto, grandes altruístas que amavam os outros pra safar a própria pele. Eram santos venerados e filhos da puta da pior espécie – e tudo ao mesmo tempo porque, por lá, tempo também é dinheiro e mais possibilidades. Os Surugtánga eram o clã mais equilibrado, saudável e rico – tanto de desnecessidades quanto de riquezas – daquele vasto país.

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