quarta-feira, 2 de março de 2011

doces demônios que se riem de mim


Queria uma poesia, mas era uma burocracia toda engessada que me tinha.

Queria ouvir a chuva deitado na cama, ver as nuvens andarem mansas pelo céu cor de fumaça, mas tive que estar sentado, bonitinho, gel no cabelo, o campeãozinho de merda, aquela aura de falsidade no ar. Costas retas, seguindo as normas da boa saúde, como se fosse tirar uma foto 3 x 4 pra documento importante, com aquela cara de cú, com uma vassoura invisível enfiada no rabo, costas retíssimas, pra parecer que existia (com)postura.

Queria gozar, mas tive preguiça.

Queria ver o futebol na TV, mas dormir 8 horas era essencial porque fico um trapo no outro dia se não.

Queria comer, comer de verdade, mais pra preencher possíveis vazios do que por fome propriamente. Mas que tanto de panelas e coisaradas se usa pra comer. E toda aquela podridão depois fedendo na pia. Acabei desistindo. Comer até nem cansa tanto, mas preparar a comida é um saco. E como preparar a própria comida é a única maneira de ter certeza sobre a comida que se come, não tinha solução: melhor era não comer.

Queria estar mais livre, mas tinham os prazos, improrrogáveis, sem choro nem vela nem lágrimas nem cera de vela, exatos como a matemática, totalitários. O mundão-véio-sem-porteira (e sem jeito) como uma máquina pré-programada. Assim como as pessoas, todas engrenagens da máquina. E o pior é que quase ninguém percebe que é uma parafusetinha. Estive enganado achando que perceber é uma vitória. Não é. É apenas um calo a mais. Mas todos, quase todos, vivem sem perceber. Ou percebendo quietos e me enganando. Ou só sonhando com a relaidade e depois esquecendo quando abrem os olhos para o alvorecer de mais um dia. Ou até mesmo lembrando dos sonhos, mas sem contar pro defunto que acorda ao lado na cama. Olhe pro defunto que acorda do seu lado caro leitor, se ele já parou de respirar é hora de enterrá-lo.

Queria a dança (com Deus e com o Diabo), mas sobraram reuniões e compromissos com gente séria. Serissíssíssíma. Gente de bem. Honesta. Com foco. Trabalhadeira. Orgulho dos avós. Dos vizinhos. Da ONU. Da putaqueopariu.

Até que o quê eu queria se transformou em vilão. E meu destino avisou: “se liga malandro, a rapadura é doce e é mole. Mas mesmo assim, teus dentes vão cair. Todos eles. Daqui a 100 anos. Todos eles, um por um, tragados pela terra.”

Percebi o eco do querer. E querendo o que eu quero, vou vivendo. E até digo: “puta merda, eu to vivo, VIVO”. Me sinto pequeno quando percebo que estou vivo. Participando da vida. No contexto da coisa toda. Sentindo as sensações dos olhares alheios e toda essa grandiosidade do relacionar-se com outro ser absolutamente frágil e incompleto como eu. Viver é grande demais. E logo percebo que aquilo que antes eu queria, não pode ser. Sim, não pode. E não pode porque se espalhou nos meus músculos como uma anestesia geral. E fico vivendo no apagão dessa anestesia geral por uns instantes.

Acabo perdoando o meu destino. Percebendo que minha queixa era só uma respiração. Me perdoando por ter pensado que MEU destino ME desrespeitou ou traiu. Não me culpo, então e depois desse rebote da minha consciência que refrata minha autocrítica. Acerto as contas com meu destino, passo a régua. Por que não tem muito que se fazer quando tudo ainda está por ser feito.

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