quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O brejo da sensibilidade



A aula se desenrolava de acordo com o estabelecido. Naquele papo de fim da idade média e outros assuntos médios. Somos domesticados pelos roteiros, pelos métodos, pelos ritos. Nascer, crescer, morrer. Aprender, trabalhar, morrer. Apaixonar, amar, morrer. No fim a gente morre, e vive a vida tentando esquecer esse orgasmo final da existência, inventando significações maiorais que são do tamanho das formigas. E, à parte a excepcionalidade dos geniosos, que alteram os ciclos preestabelecidos da vida com a força de um vulcão e por isso mesmo naturalmente; o grande resto que também tem um cérebro com duas orelhas guardiãs sofre pontiagudamente para quebrar esses ciclos arquetípicos.

Não que a culpa por subverter não tenha me habitado os nervos, mas resolvi esquecer toda a história medieval, todo aquele cuidado delicado de estabelecer pontos de contato entre os eventos da história e me permitir a criação, dentro da sala de aula, de um ambiente terapêutico. De uma fusão de angústias entre professor e alunos, entre professores e aluno. Um grande divã, que de jurídico não tinha nada e de histórico, apenas os rastros benévolos da semana de cada um. Deixei para trás os glosadores e as outras escolas modernas do Direito que me esperavam no quadro e provoquei a todos com duas perguntas: Do que você consegue abrir mão? Qual o momento de maior bem estar durante a última semana?

A turma, que é excepcional, reagiu. Um a um foram materializando, com a possibilidade da linguagem e dentro de um ambiente sem imposições, suas razões, suas dores, suas sensibilidades encarceradas no porão dos seus sentidos. Libertando o eu antes envolto em um mar de falsas crendices verdadeiras. Se permitindo reflexões do tipo: “preciso trabalhar para...?”, “qual o combustível dos meus momentos de bem estar...?”, “gosto realmente de quando...?”, “preciso ser rico porque...?”, “estou trabalhando dois turnos e estudando toda a noite porque...?”

E a relação entre as coisas que buscamos cotidianamente com aquilo que nos alegra foi de uma falta de relação absurda. Desconexões! Pontos desconectados! É no mínimo interessante pensar que o que nos deixa bem não tem nada a ver com aquilo que fazemos durante a maior parte do dia, no transcurso moroso dos ponteiros do relógio da vida. As buscas, do consumo ao excesso de prazeres, seriam então uma invenção para esquecer a morte e o niilismo da vida?

Quase todos disseram que podiam prescindir de coisas materiais como o celular, o carro. Até do marido abriram mão! E com toda a seriedade. Quem disse não queria fazer rir, falou sério. E percebi o ambiente mágico de grande cumplicidade que conseguimos todos criar. Indiquei que a moça se separasse, tem uns caminhos sem volta.

Provoquei e perguntei se me entregavam o celular por uma semana, já que diziam poder abrir mão do aparelho. Impulsivamente, como forma de provar suas justificações, vários aceitaram o desafio. Minha mesa se encheu de celulares. Acabei levando apenas três, de três corajosos. Eu não entregaria porque sou meio trágico. Sou de abrir mão de tudo, ou de entrar de cabeça...e talvez por isso seja um cara desequilibrado!

Mas o que me deixou a flor da pele foram os depoimentos sobre o melhor momento da semana. Um se alegrou com a ligação dos avós que moram longe (o melhor momento estar atrelado aos avós me sensibilizou), outro sentiu a delícia da vida quando escutou a música preferida, outro quando chutou o pau da barraca, bebeu todas e beijou a gata da festa (mesmo que as bebidas todas tenham ajudado para que ela fosse a gata da festa). Alguns tiveram o êxtase vivencial com os abraços. Abraço no filho para curar a saudade. Abraço na esposa escutando a chuva cair. Outros tantos se deliciaram dormindo, talvez sonhando, experimentando o gozo do ócio. O ócio tão fortemente combatido. O ócio visto como grande pecado, como culpa das culpas. Estar parado contemplando a paisagem, enquanto o mundo corre e literalmente caga e anda pelas paisagens, é o pecado desse nosso tempo que nunca tem tempo para nada que importa.

A nossa vagabundagem reflexiva produziu. Mas produziu apenas coisas invisíveis, sem nenhum preço de mercado ou quilate curricular. Produziu sensações que não nos fizeram avançar no plano de ensino (?), mas que nos fizeram avançar sem destino. Produzimos invisibilidades. Que valem tudo para as sensações. Que valem nada no palco que estamos.

4 comentários:

  1. "Naquele dia, no meio do jantar, eu contei que tentara pegar na bunda do vento — mas o rabo do vento escorregava muito e eu não consegui pegar. Eu teria sete anos. A mãe fez um sorriso carinhoso para mim e não disse nada. Meus irmãos deram gaitadas me gozando. O pai ficou preocupado e disse que eu tivera um vareio da imaginação. Mas que esses vareios acabariam com os estudos. E me mandou estudar em livros. Eu vim. E logo li alguns tomos havidos na biblioteca do Colégio. E dei de estudar pra frente. Aprendi a teoria das idéias e da razão pura. Especulei filósofos e até cheguei aos eruditos. Aos homens de grande saber. Achei que os eruditos nas suas altas abstrações se esqueciam das coisas simples da terra. Foi aí que encontrei Einstein (ele mesmo – o Alberto Einstein).

    Que me ensinou esta frase: A imaginação é mais importante do que o saber.

    Fiquei alcandorado! E fiz uma brincadeira. Botei um pouco de inocência na erudição. Deu certo. Meu olho começou a ver de novo as pobres coisas do chão mijadas de orvalho. E vi as borboletas. E meditei sobre as borboletas. Vi que elas dominam o mais leve sem precisar de ter motor nenhum no corpo. (Essa engenharia de Deus!) E vi que elas podem pousar nas flores e nas pedras sem magoar as próprias asas.
    E vi que o homem não tem soberania nem pra ser bentevi."
    (Manoel de Barros)
    um bjo meu docinho

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  2. Eu não entregaria porque sou meio trágico. Sou de abrir mão de tudo, ou de entrar de cabeça...e talvez por isso seja um cara desequilibrado! [2]

    Delícia de postagem, Paulo!
    É mesmo muito bom "deixar fluir"... temos pouco tempo(?) ou pouca coragem para isso.
    Beijos!

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  3. Memoráveis momentos temos em nossas aulas.
    Certamente um belo inicio de semestre. Ademais, quisera o "plano de ensino" fosse seguido semelhantemente a essa "metodologia".

    *não recebi seu comentário feito no meu blog.
    Por favor mande para golgotablumenau@gmail.com

    Um abraço!

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  4. Realmente inesquecível...enquanto para uns suas aulas marcam um belo início de faculdade, para mim encerram esta fase com chave de ouro!
    Beijo!

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