quinta-feira, 24 de setembro de 2009

Por alheias mãos: Manifesto contra a cegueira (II)


O texto a seguir foi extraído do blog de José Saramago e compõe seu recente livro publicado no Brasil pela Companhia das Letras: O CADERNO, homônimo ao próprio blog. Ainda que todos os textos do livro se encontrem disponíveis no site, acredito que ainda não faço parte da revolucionária geração que vai trocar o papel pela luminosidade das telas. Mesmo os notebooks, por menor que sejam, tem uma série de desvantagens em relação ao velho e bom livro: não podem ser lidos confortavelmente na cama, não podem ser assinados e sublinhados a gosto e também não podem ser emprestados. Isso sem falar que não podem ser levados para o banheiro, local sempre luminoso para frutíferas leituras (os ceguinhos do castelo dirão: que horror publicizar a leitura de banheiro, completamente contra a moral e os bons costumes!!!). Aliás está ai um bom tema: as leituras de banheiro. Por razões óbvias esse texto poderia fazer parte do compêndio do Manifesto contra a cegueira e também por isso é aqui destacado.

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PURA APARÊNCIA

Suponho que no princípio dos princípios, antes de havermos inventado a fala, que é, como sabemos, a suprema criadora de incertezas, não nos atormentaria nenhuma dúvida séria sobre quem fôssemos e sobre a nossa relação pessoal e colectiva com o lugar em que nos encontrávamos. O mundo, obviamente, só podia ser o que os nossos olhos viam em cada momento, e também, como informação complementar importante, aquilo que os restantes sentidos – o ouvido, o tacto, o olfacto, o gosto – conseguissem perceber dele. Nessa hora inicial o mundo foi pura aparência e pura superfície. A matéria era simplesmente áspera ou lisa, amarga ou doce, azeda ou insípida, sonora ou silenciosa, com cheiro ou sem cheiro. Todas as coisas eram o que pareciam ser pela única razão de que não havia qualquer motivo para que parecessem doutra maneira e fossem outra coisa. Naquelas antiquíssimas épocas não nos passava pela cabeça que a matéria fosse “porosa”. Hoje, porém, embora sabedores de que, desde o último dos vírus até ao universo, não somos mais do que composições de átomos, e que no interior deles, além da massa que lhes é própria e os define, ainda sobra espaço para o vazio (o compacto absoluto não existe, tudo é penetrável), continuamos, tal como o haviam feito os nossos antepassados das cavernas, a apreender, identificar e reconhecer o mundo segundo a aparência com que de cada vez se nos apresente. Imagino que o espírito filosófico e o espírito científico deverão ter-se manifestado num dia em que alguém teve a intuição de que essa aparência, ao mesmo tempo que imagem exterior captável pela consciência e por ela utilizada como mapa de conhecimentos, podia ser, também, uma ilusão dos sentidos. Se bem que habitualmente mais referida ao mundo moral que ao mundo físico, é conhecida a expressão popular em que aquela veio a plasmar-se: “As aparências iludem”. Ou enganam, que vem a dar no mesmo. Não faltariam os exemplos se o espaço desse para tanto.
A este escrevinhador sempre o preocupou o que se esconde por trás das meras aparências, e agora não estou a falar de átomos ou de subpartículas, que, como tal, são sempre aparência de algo que se esconde. Falo, sim, de questões correntes, habituais, quotidianas, como, por exemplo, o sistema político que denominamos democracia, aquele mesmo que Churchill dizia ser o menos mau dos sistemas conhecidos. Não disse o melhor, disse o menos mau. Pelo que vamos vendo, dir-se-á que o consideramos mais que suficiente, e esse, creio, é um erro de percepção que, sem nos apercebermos, vamos pagando todos os dias. Voltarei ao assunto.


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