domingo, 7 de agosto de 2011

o homem vitruviano




O homem vituviano chegou sem bater na porta. As grandezas que são recheadas de intensidade, em geral, não são matéria anunciada. A presença do homem vitruviano requeria um vinho especial, uma iluminação confortável aos olhos, uns sonetos sem linguagem na caixa da vitrola. Velas disfarçadas de vela nos cantos da mesa lateral. E eu. Quem mais? Quem mais, me diga destino, destino meu? Haveria paciência capaz de suportar o transborde do meu lamento de poeta? Se não sou um aos olhos da história, sou aos meus olhos que veem o quê apenas quero ver. Que outros olhos importam para quem não pode ver demais? Ou será que vejo de menos?

Sobre ver, o que sei é que ver-se é a única maneira de pertencer, isso caso você seja alguém que percebe o engodo da existência. Pertencer é uma mentira coletiva, um pretexto. Pode ser uma igreja, podem ser as metas da sua empresa, pode ser o filho que nasceu e que chora por seu cuidado, fazendo você se sentir único num mundo que ignora coisas únicas. Pode ser sua egrégora de final de semana, pode ser sua família, pode ser o esporte, o videogame, a cervejada no fim do expediente... pertencer a si mesmo, no entanto, no ardor calmo das letras, é saída possível ao poeta, que vai em solitude lapidando os pensamentos, alinhando as desordens do caos que há dentro da alma, compreendendo que a compreensão da desordem depende do ajustamento mecânico das frases. Que as frases nada digam é expediente corrente ao poeta, que em geral é bom em estuprar a linguagem. O poeta é um mecânico das letras assim como um mecânico é um mecânico de carros. Mecânica há até no pensamento, vejam só. Eu, ali, tendo tudo que havia ao meu redor, existia, existindo errado.

Enfrento o outro esforçadamente, fardo-me e, logo, me farto. Entendo a necessidade de abraçar meu entorno, sei dessa importância para a bússola que aponta ao norte nosso. Percebo a benção que haveria se eu fosse o útero materno das coisas que me envolvem, me cobro, me culpo, me julgo, me absolvo... mas sempre duvidando da sentença e da soltura. Absolvo-me pelo esforço mas condeno-me pelo fracasso interno que a mim grita quando não suporto o assalto dos outros àquilo que penso. Quero pensar o que o pensamento em mim pensa, não aquilo que quer me pensar por coação de forças que não estão em mim. Sou o tipo egoísta, portanto? Nunca saberei saber o que é o ego ou o que são os ismos. E por isso pasmo!

Quero diluir-me naquilo que ganha vida em mim por meio das letras? Quero vencer a necessidade de crer na bendição do discurso da aceitação...Mas me incompreendo, irrisório, flácido em relação aos demais que também pensam o que eu não penso... Como posso não querer o que querem? Como posso destino meu? Como posso não sorrir pelo riso que dá riso aos rostos todos? E como posso rir do que em geral não é matéria para fazer riso? Como posso não ter objetivos tão puerilmente anestésicos a ponto de estar condenado durante sabe se lá quanto tempo a ter clareza de que a maior delicadeza da vida é acreditar em mentiras? Ou, senão, ser grande suficientemente para, mesmo descrendo, embriagar-me de consciência para crer mesmo ante toda ausência de sentido, ante toda falsidade do paladar, ante todo o deslumbre dos olhos?

Abandonei o fardo da minha carne sobre o chão gelado do inverno. Abri o peito como se mal na terra não houvesse. A entrega aos ares mansos do universo fez de mim o vitruviano. Pensei no quê as pessoas pensam quando pensam no homem vitruviano. Pensei em como da Vinci pensava penetrantemente e materialmente a ponto de transformar tanto a realidade, em fazer sentido para o passado e gerar plausibilidade ao porvir. Pensei nas teorias, nas ratoeiras enganadamente montadas sobre as razões da criação do vitruviano pelo gênio. A genialidade faz da certeza da ilusão o sangue que mantém a vida dentro do corpo existencial. Será que o homem vitruviano tem um coração capaz de viver sem pulsações? Os corações sempre precisam desse vaivém...pobres corações necessitados. Meu coração é uma carne enganada, um pedaço de vida desconfiado, mas que espreita pelos andarilhos a trazer novidades vindas de outros reinos e pelas donas a balançar suas ancas sorridentes. Espreito na sacada que outrora foi de tantos que também encostaram a bunda no parapeito para tragar com mais suavidade o suicídio do cigarro.

As velhas que não amam morrem corcundas porque o coração amargurado lhes rouba a postura da coluna, pobres velhas mal amadas. Talvez eu me deva delclarar, então, um novo mal amado porque amo essas letras que eu vou letrando ao longo da tela? Só me vitimizo porque preciso pensar que há em mim uma cura a ser feita, caso contrário, declararia minha morte por automatismo, que é uma espécie de morte ainda não prevista nem pelos livros de medicina, nem pelos livros de psiquiatria. O amor é a única ilusão que nos cega. Cegueira é pior que aids, a cegueira é a única das doenças que realmente é incurável. A aids já foi controlada, o câncer só mata quem não pode fazer renascer suas partes podres, o ebola acho que só existe mesmo nos filmes... porque tudo que vive longe de mim não vive em mim. As demais ilusões como a continuidade da vida, a prepotência da matéria ou mesmo a nossa fajuta lógica dos desejos podem, todas, ser descortinadas com a visão de um olho. O amor indomável nos deixa de olhos abertos no fundo do oceano escuro. É bom saber que a qualquer hora um tubarão me partirá ao meio, dilacerando minhas carnes e livrando minha alma, talvez até mesmo dessas letras.

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