O imaginário da sogra, antes de um efeito,
se apresenta como causa complexa das decisões. Perceber que a decisão judicial
é um fenômeno complexo, deve(ria) ser o ponto de partida que, infortunadamente,
é o ponto de chegada. Em geral, as pesquisas em direito se ocupam com aquilo
que os pesquisadores do direito já sabem: que o positivismo fracassou porque
sempre foi incapaz de apreender o real, que o lugar de poder é quem diz o quê o
direito é, que a história chã do Brasil se constituiu e hoje se sedimenta via
Ctrl C/Ctrl V, em um direito patrimonialista e aristocrático, ou seja,
basicamente preocupado com gente rica, ainda que os ricos repudiem acusações
desse tipo. É um direito que, de alguma estranha maneira, resignifica o ideal
ético-medíocre do Rei do Camarote (se
você ainda não viu esse personagem-tipo tupiniquim, visite o Youtube).
Uma teoria
da decisão judicial que deixe de ser subversiva em relação às fontes do
direito, só é capaz de instruir os normalpatas[1]. A
normalpatia é a psicopatologia de
todos os juízes que acreditam ser justos.
E eles são maioria! No domingo de tarde eles almoçam com a família da
esposa. Chegam às 11:30 pra ajudar com os preparativos. Eles adoram os talheres
em ordem porque amam etiquetas – faca de um lado, garfo do outro, copo disso,
copo daquilo, blá-blá-blá-nhê-nhê-nhêm. Tudo em perfeita simetria. A simetria
dos talheres é a materialização da autoimagem que produzem de si mesmos. Ele –
o juiz normalpata – com uma camisa
polo comprada na última ida para Miami, afinal, em Miami as polos “de marca”
sempre estão em promoção, o que faz o juiz normalpata
publicar no facebook que o Brasil é uma porcaria por conta dos impostos. Ela, a
esposa, com aquele vestido florido e largo, de algodão, pra esconder as
imperfeições da bunda, afinal, depois dos filhos e do tempo, não há bunda que
resista... E os filhos CORRENDO E GRITANDO de um lado para o outro. Com o DIABO
no corpo! Depois do almoço, o juiz
normalpata senta ao redor daquelas mesinhas brancas de plástico. Toma uma
cerveja, e outra, e outra, até encher a cara. Não muito, afinal, ele bebe com
prudência, pois é o Juiz Nosso Senhor da Prudência! Então discute alguma
notícia do jornal dominical com a cunhada, que é mestre em Biologia pela
Universidade de Pedro Juan Caballero (Paraguai). Ela também odeia o Brasil
porque o MEC não reconheceu o diploma falsificado que ela comprou. E vai morrer
sem admitir porque escreveu meia dúzia de parágrafos ruins na dissertação que
ninguém vai ler.
Enquanto
isso a velha está lá, fuçando em alguma coisa. As sogras estão sempre fuçando
em alguma coisa. São rainhas da ninharia. E falam pelos cotovelos. E porque
falam, inevitavelmente afetam os genros. Dessa afetação estão sujeitos todos os
genros. O fato é que nos juízes, essa afetação tem efeitos apocalípticos que
envenenam a democracia. A sogra então faz sua sustentação oral: uma fofoca do
grupo da missa, a preocupação com as netas que começaram a sair (e a fumar a
maconha – mas da maconha as velhas não sabem porque pensam que suas famílias
são abençoadas por Deus...), emitem alguma opinião imbecil sobre a política que
acontece na TV ou, ainda, decretam um comando despótico para o marido, o sogro,
que é um velho que já morreu mas ainda não sabe.
Depois os
juízes normalpatas passeiam com os
filhos e assistem o futebol das 4 da tarde. De noite assistem o Fantástico e
vão para a cama. Mas não transam... porque já transaram no sábado, que é o dia
oficial. Para os juízes normalpatas,
transar no domingo é preclusão consumativa, afinal, a coisa já se consumou no
sábado. O domingo é o dia da formação ideológica do juiz que acredita que é
imparcial ou neutro. Todo jurista que tenta diferenciar imparcialidade e
neutralidade está doente. Todas as decisões “neutras” das segundas-feiras têm o
Fantástico como fonte do direito. O Fantástico e, claro, a sogra. A sogra é o
arquétipo da justiça na parcimoniosa consciência dos julgadores do direito. Mas
a sogra é metáfora. E é pelo analfabetismo metafórico que a virtude gagueja
pelos corredores da jurisdição...
A hermenêutica da sogra é
uma provocação surrealista que pretende observar a complexidade do fenômeno
jurídico. Os laços óbvios que ligam o juiz, o conteúdo da decisão, seu
pandemônio psíquico, a cultura e a historicidade, o mau humor, o decote que as
advogadas usam nas audiências, o jeitinho de bom moço dos advogados cordiais, a
TPM das juízas e das escreventes que morrem de inveja das juízas, as vidas
despedaçadas pelos divórcios, o êxtase juvenil dos juízes recém-casados, o medo
abissal de não conseguir pagar a conta do cartão de crédito, as tendências
filosóficas – se bem que a normalpatia
dos juízes imuniza qualquer abalo filosófico de seus significantes – e outras
notas evidentes que atestam a malha de significações despercebidas que
transitam nas margens da decisão judicial. Daí que responder aos dilemas
judiciais por subsunção é uma das críticas mais óbvias (e cansadas) que as
pesquisas em direito podem (e continuam a) fazer.
Todo
juiz que pensa que o Certo é igual à exatidão milimétrica de uma reta, não terá
capacidade de entender que a hermenêutica da sogra é um borrão disforme cuspido
no acostamento de uma rodovia em horário de pico. A hermenêutica filosófica é
uma ferramenta importante para perceber a fundura do buraco em que o decidir
judicial está metido. Não é preciso dizer que Platão e a história do conceito
de Verdade têm parte nisso tudo. Os ares das Cortes ainda respiram o fedor das
dicotomias platônicas. A overdose da gravata é um sintoma que qualquer
acadêmico iniciante é capaz de perceber, desde que tenha exercitado e
desenvolvido alguma sensibilidade propedêutica. O platonismo nunca morreu,
aliás, nunca esteve tão vivo. Engana-se quem pensa em coisas como o tribalismo pós-moderno porque o direito
está blindado a esse tipo de viragem cultural. A gravata, a barriguinha
proeminente (barriguinha diminutiva porque eles bebem socialmente, ainda que
sejam alcoólatras caseiros) e o cabelo lambido são os elementos essenciais do
jurista de confiança, um Príncipe da República jurídica (e platônica) das bananas.
A
estrutura prévia de sentido, conceito cardinal da hermenêutica filosófica, e
manuseado entre nós por juristas como Lenio Streck, Rafael Tomaz de Oliveira e
Clarissa Tassinari, são a condição na qual está imerso o julgador quando pensa
idiotamente que está colhendo provas para, em seguida, enquadrar a Verdade de
um fato às normas, para, finalmente, emitir a decisão em um processo judicial.
Os juízes são enganados pela fábula das três partes da sentença: o relatório, a
fundamentação e o dispositivo. Isso porque o Relatório, feito pelo estagiário, não é lido por ninguém. Funciona
bem como exercício de produção textual para alunos de graduação que, em geral,
chegam à faculdade de direito com um português castiço. As Fundamentações são como lasanha congelada: estão sempre pré-montadas.
E congeladas. E mórbidas. E sem gosto. E quando são servidas, estão frias no
meio... As lasanhas e as fundamentações curam barrigas que roncam e direitos
que gemem: basta descongelar no microondas e pedir para o estagiário assar por
20 minutos. O Dispositivo é o local
formal onde o poder ejacula. O Dispositivo é um quarto de motel com uma puta de
luxo que vai obedecer a todos os comandos de desejo obcecado, antes do gozo de
poder DETERMINAR, CONDENDAR, ABSOLVER, MULTAR etc.
A ideia de
que a interpretação que constrói a decisão não se dá pela linearidade da
subsunção, mas pela circularidade compreensiva do intérprete, é a primeira
implosão do edifício da metodologia da interpretação feita pelos juízes normalpatas. Segundo Nietzsche, toda
verdade é curva. José Calvo González trouxe as curvas necessárias para a
compreensão do Direito[2]. Não
seria o direito uma reta manipulada que torce pelo reestabelecimento de suas
curvas? Com a sogra nos ajudando a estacionar...