terça-feira, 25 de março de 2014

Hermenêutica jurídica da Sogra






O imaginário da sogra, antes de um efeito, se apresenta como causa complexa das decisões. Perceber que a decisão judicial é um fenômeno complexo, deve(ria) ser o ponto de partida que, infortunadamente, é o ponto de chegada. Em geral, as pesquisas em direito se ocupam com aquilo que os pesquisadores do direito já sabem: que o positivismo fracassou porque sempre foi incapaz de apreender o real, que o lugar de poder é quem diz o quê o direito é, que a história chã do Brasil se constituiu e hoje se sedimenta via Ctrl C/Ctrl V, em um direito patrimonialista e aristocrático, ou seja, basicamente preocupado com gente rica, ainda que os ricos repudiem acusações desse tipo. É um direito que, de alguma estranha maneira, resignifica o ideal ético-medíocre do Rei do Camarote (se você ainda não viu esse personagem-tipo tupiniquim, visite o Youtube).

            Uma teoria da decisão judicial que deixe de ser subversiva em relação às fontes do direito, só é capaz de instruir os normalpatas[1]. A normalpatia é a psicopatologia de todos os juízes que acreditam ser justos.  E eles são maioria! No domingo de tarde eles almoçam com a família da esposa. Chegam às 11:30 pra ajudar com os preparativos. Eles adoram os talheres em ordem porque amam etiquetas – faca de um lado, garfo do outro, copo disso, copo daquilo, blá-blá-blá-nhê-nhê-nhêm. Tudo em perfeita simetria. A simetria dos talheres é a materialização da autoimagem que produzem de si mesmos. Ele – o juiz normalpata – com uma camisa polo comprada na última ida para Miami, afinal, em Miami as polos “de marca” sempre estão em promoção, o que faz o juiz normalpata publicar no facebook que o Brasil é uma porcaria por conta dos impostos. Ela, a esposa, com aquele vestido florido e largo, de algodão, pra esconder as imperfeições da bunda, afinal, depois dos filhos e do tempo, não há bunda que resista... E os filhos CORRENDO E GRITANDO de um lado para o outro. Com o DIABO no corpo! Depois do almoço, o juiz normalpata senta ao redor daquelas mesinhas brancas de plástico. Toma uma cerveja, e outra, e outra, até encher a cara. Não muito, afinal, ele bebe com prudência, pois é o Juiz Nosso Senhor da Prudência! Então discute alguma notícia do jornal dominical com a cunhada, que é mestre em Biologia pela Universidade de Pedro Juan Caballero (Paraguai). Ela também odeia o Brasil porque o MEC não reconheceu o diploma falsificado que ela comprou. E vai morrer sem admitir porque escreveu meia dúzia de parágrafos ruins na dissertação que ninguém vai ler. 
           
            Enquanto isso a velha está lá, fuçando em alguma coisa. As sogras estão sempre fuçando em alguma coisa. São rainhas da ninharia. E falam pelos cotovelos. E porque falam, inevitavelmente afetam os genros. Dessa afetação estão sujeitos todos os genros. O fato é que nos juízes, essa afetação tem efeitos apocalípticos que envenenam a democracia. A sogra então faz sua sustentação oral: uma fofoca do grupo da missa, a preocupação com as netas que começaram a sair (e a fumar a maconha – mas da maconha as velhas não sabem porque pensam que suas famílias são abençoadas por Deus...), emitem alguma opinião imbecil sobre a política que acontece na TV ou, ainda, decretam um comando despótico para o marido, o sogro, que é um velho que já morreu mas ainda não sabe.

            Depois os juízes normalpatas passeiam com os filhos e assistem o futebol das 4 da tarde. De noite assistem o Fantástico e vão para a cama. Mas não transam... porque já transaram no sábado, que é o dia oficial. Para os juízes normalpatas, transar no domingo é preclusão consumativa, afinal, a coisa já se consumou no sábado. O domingo é o dia da formação ideológica do juiz que acredita que é imparcial ou neutro. Todo jurista que tenta diferenciar imparcialidade e neutralidade está doente. Todas as decisões “neutras” das segundas-feiras têm o Fantástico como fonte do direito. O Fantástico e, claro, a sogra. A sogra é o arquétipo da justiça na parcimoniosa consciência dos julgadores do direito. Mas a sogra é metáfora. E é pelo analfabetismo metafórico que a virtude gagueja pelos corredores da jurisdição...

A hermenêutica da sogra é uma provocação surrealista que pretende observar a complexidade do fenômeno jurídico. Os laços óbvios que ligam o juiz, o conteúdo da decisão, seu pandemônio psíquico, a cultura e a historicidade, o mau humor, o decote que as advogadas usam nas audiências, o jeitinho de bom moço dos advogados cordiais, a TPM das juízas e das escreventes que morrem de inveja das juízas, as vidas despedaçadas pelos divórcios, o êxtase juvenil dos juízes recém-casados, o medo abissal de não conseguir pagar a conta do cartão de crédito, as tendências filosóficas – se bem que a normalpatia dos juízes imuniza qualquer abalo filosófico de seus significantes – e outras notas evidentes que atestam a malha de significações despercebidas que transitam nas margens da decisão judicial. Daí que responder aos dilemas judiciais por subsunção é uma das críticas mais óbvias (e cansadas) que as pesquisas em direito podem (e continuam a) fazer.
            Todo juiz que pensa que o Certo é igual à exatidão milimétrica de uma reta, não terá capacidade de entender que a hermenêutica da sogra é um borrão disforme cuspido no acostamento de uma rodovia em horário de pico. A hermenêutica filosófica é uma ferramenta importante para perceber a fundura do buraco em que o decidir judicial está metido. Não é preciso dizer que Platão e a história do conceito de Verdade têm parte nisso tudo. Os ares das Cortes ainda respiram o fedor das dicotomias platônicas. A overdose da gravata é um sintoma que qualquer acadêmico iniciante é capaz de perceber, desde que tenha exercitado e desenvolvido alguma sensibilidade propedêutica. O platonismo nunca morreu, aliás, nunca esteve tão vivo. Engana-se quem pensa em coisas como o tribalismo pós-moderno porque o direito está blindado a esse tipo de viragem cultural. A gravata, a barriguinha proeminente (barriguinha diminutiva porque eles bebem socialmente, ainda que sejam alcoólatras caseiros) e o cabelo lambido são os elementos essenciais do jurista de confiança, um Príncipe da República jurídica (e platônica) das bananas.
            A estrutura prévia de sentido, conceito cardinal da hermenêutica filosófica, e manuseado entre nós por juristas como Lenio Streck, Rafael Tomaz de Oliveira e Clarissa Tassinari, são a condição na qual está imerso o julgador quando pensa idiotamente que está colhendo provas para, em seguida, enquadrar a Verdade de um fato às normas, para, finalmente, emitir a decisão em um processo judicial. Os juízes são enganados pela fábula das três partes da sentença: o relatório, a fundamentação e o dispositivo. Isso porque o Relatório, feito pelo estagiário, não é lido por ninguém. Funciona bem como exercício de produção textual para alunos de graduação que, em geral, chegam à faculdade de direito com um português castiço. As Fundamentações são como lasanha congelada: estão sempre pré-montadas. E congeladas. E mórbidas. E sem gosto. E quando são servidas, estão frias no meio... As lasanhas e as fundamentações curam barrigas que roncam e direitos que gemem: basta descongelar no microondas e pedir para o estagiário assar por 20 minutos. O Dispositivo é o local formal onde o poder ejacula. O Dispositivo é um quarto de motel com uma puta de luxo que vai obedecer a todos os comandos de desejo obcecado, antes do gozo de poder DETERMINAR, CONDENDAR, ABSOLVER, MULTAR etc.
            A ideia de que a interpretação que constrói a decisão não se dá pela linearidade da subsunção, mas pela circularidade compreensiva do intérprete, é a primeira implosão do edifício da metodologia da interpretação feita pelos juízes normalpatas. Segundo Nietzsche, toda verdade é curva. José Calvo González trouxe as curvas necessárias para a compreensão do Direito[2]. Não seria o direito uma reta manipulada que torce pelo reestabelecimento de suas curvas? Com a sogra nos ajudando a estacionar...


[1] BARROS, L. F. Os normalpatas, não matei Jesus e outros textos. Rio de Janeiro – Ed. Imago, 1999.
[2] Para mais curvaturas do direito, vejam o livro de José Calvo González – Direito Curvo, editado pela Livraria do Advogado.

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