quarta-feira, 12 de junho de 2013

sobre outras verdadinhas



O primeiro arrebatamento que nós, ocidentais, deveríamos ter, é o do experiência com a imposição de Verdade presente no pensamento judaico-cristão. 
A própria maiúscula usada nos termos Deus, Senhor e Verdade, mostra a necessidade de sujeição imposta pelo sistema de sentido das religiões cristãs. É o “estar-sujeito-a-Deus” que alimenta o discurso bíblico e que pede, sempre, uma atitude de submissão. Mas  o discurso bíblico cobra uma atitude de submissão querendo, no fundo, promover o aprendizado da fidalga virtude a que chamamos humildade. Se um barulhento “- sim” corroborar essa afirmação, então, uma primeira contradição emerge do discurso bíblico. 
Sustendo a expressão “discurso bíblico” justamente porque, de fato, o que há nesta dimensão terrena, imanente, limitada e parcial, é apenas a possibilidade de um discurso sobre alguma coisa – um texto, um relato, uma história, um dado empírico, um sonho, uma fantasia, seja o que for. Se há alguma “Verdade” capaz de ser maiúscula, essa verdade nunca poderá ser escrita em algum lugar, ou entoada por alguma voz, ou lida em algum púlpito. Para os  cabalistas o rosto de Deus pode ser visto a partir da combinatória infinita, e a combinatória infinita precisa da pluralidade do outro para ser feita. O rosto de Deus, diz Warat, é a diferença. Os orientais, ao contrário de nós – ocidentais e herdeiros do judaico-cristianismo – percebem Deus (ou a ideia de Deus) de outro modo. Enquanto nós escrevemos a “Verdade”, eles apenas a contemplam (humilde e minusculamente). Enquanto nós discursamos com pompa e embargamos a voz para que a Verdade pareça séria, eles apenas cantam (humilde e minusculamente). Enquanto nós temos que ler para ter certeza de que não esqueceremos de nada para termos poder sobre tudo, eles querem apenas esquecer de tudo (humilde e minusculamente). Para os orientais, estar com Deus é esquecer de tudo, é dançar, é contemplar tudo que existe. Os orientais estão de acordo, inclusive, com o velho santo solitário que dialoga com o Zaratustra de Nietzsche (este que irônica e metaforicamente "matou" Deus), quando diz: “eu faço canções e as canto, e, quando faço canções, rio, choro e sussurro: assim louvo a Deus. Cantando, chorando, rindo e sussurrando eu louvo ao deus que é meu Deus.”

O pensamento oriental, que tem o mesmo propósito do re-ligare ocidental, acaba, por fim, ensinando melhor. Enquanto o ocidentalismo judaico-cristão concentra sua atenção na submissão em relação ao transcendente e ao metafísico; o pensamento oriental se preocupa, antes, com o aprendizado da crença da virtude da submissão, ou seja, a capacidade de se tornar humilde diante, principalmente, do Deus que vive no outro e que é sempre o reflexo do Deus que vive no "eu" que olha. Este outro que obrigatoriamente é um não-eu que não deve (ou não deveria) ameaçar egos culturalmente domesticados pela cultura patriarcal ao vício de ser o portadores da verdade - uma atitude arrogante, nada submissa, muito menos humilde e, portanto, anticristã... O cristianismo tem paradoxos insanaveis como tudo que é humano, ainda que se pretenda divino. É apenas sem a agressão do ego alheio que podemos encontrar o Deus que vive nos outros, para que este, fale com o Deus que vive dentro de nós.

Essa atitude de “desprendimento” ou de liberação, está no I-Ching, oráculo chinês que data da danistia Chou dos anos de 1150-249 a.C, portanto, anterior à passagem de Cristo na Terra, precisamente no hexagrama 40. Neste hexagrama consta: “[...] como a chuva provoca um alívio nas tensões atmosféricas e faz com que todos os brotos se entreabram, assim também o período da liberação traz um alívio ao que estava sendo oprimido, e um estímulo à vida.”  O I-Ching é também chamado de Livro das mutações e, por isso, contraria a noção do cristianismo que pretende uma Verdade estável, fixa e eterna, em evidente repetição do modelo de pensamento ocidental socrático-platônico. O cristianismo como um platonismo para as massas (Nietzsche) é, nesse sentido, uma expressão certeira. Desde o modo sincronístico como deve ser lido, até o modelo de verdade-eternamente-transitória contida no contexto do texto, o I-Ching é a expressão contrária do Deus cristão, que se pretende Maiúsculo, Onipotente, Onipresente e Onisciente.

Jung, que prefaciou a tradução ocidental do I-Ching, quando perguntado se acreditava em Deus, disse simplesmente: “- eu sei, não preciso acreditar”. Nesse sentido, é possível dizer que Jung estava com Deus, que a sua própria profundidade e riqueza eram o seu próprio Deus, construído artística e exclusivamente por e para ele. Negada a pluralidade, onde ficou esquecida a humildade das centenas de religiões que professam suas crenças a partir da Bíblia? A imensa lista de dissidências das religiões ocidentais que tem a Bíblia como fundamento, por si só indaga: qual realiza a Verdadeira interpretação da Verdade do texto Bíblico? Da Igreja Católica Apostólica Romana, passando Igrejas não-Calcedonianas, pelo Luteranas, Anglicanas, Calvinistas, Presbiterianas, Pietistas, as Pentecostais e Neopentecostais, as Igrejas Unidas, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a Quadrangular, a da União em Cristo, as dos surfistas unidos do reino do Senhor como a Bola de neve e, numa dessas, até a Bola de fogo…para qual delas eu me associo, já que o ritual do batismo é imprescindível?

Tenho profundo respeito à noção de humildade que se pode extrair do discurso bíblico, na medida em que ele se estrutura a partir da ideia de que devemos nos render ou nos sujeitar a alguma coisa do qual somos incapazes a partir dos sentidos (de saber, de lidar, de tocar, de ver, de experimentar). Assim, o substrato ou a "essência" da ideia do Deus bíblico, está apoiado na noção de que assumir a incapacidade humana é livrar-se da incapacidade humana ou, dito de outro modo, assumir a incapacidade humana significa assumir a submissão para, por fim, salvar-se.  A superação da “vontade de ser submisso”, que vai em direção à “materialização da humildade”, corolário da tolerância solicita por Jesus, encontra uma resistência fincada na alienação do sujeito formatado culturalmente como um animal de rebanho, homogêneo, humilde, capaz de prescindir do palco da linguagem (os pastores, os politicos e, recentemente, o sincretismo de ambos na infeliciana figura dos políticos-pastores adora o palco da linguagem...), da enfermaria que é construída no centro do próprio ego. O desconhecido recebe então diversos nomes (Deus, Allah, Buda, Iluminação, Transe, Morte, Sonho), mas dentro de cada uma dessas vozes, as palavras são ditas e interpretadas, cada uma, de outro jeito, o que torna o I-Ching chines um livro sagrado que merece mais respeito do que a Bíblia. O discurso é o feto da intuição - talvez porque a intuição, seja para sempre este diálogo que a gente faz com Deus sem a imposição material e humana da linguagem.  

Essa noção de submissão do homem terreno em relação àquilo que ele não pode dominar – como Deus, o Desconhecido e a Morte, para ficar apenas nesses exemplos – encontra infindáveis recorrências. Lembre-se: recorrências significam, precisamente, uma mesma ocorrência que acontece em diferentes lugares, com diferentes pessoas, em diferentes tempos históricos, com diferentes linguagens e com diferentes roupagens. Utilizarei apenas dois exemplos da recorrência da noção de humildade como efeito da atitude de submissão.  No espiritismo, o corpo é desprestigiado, na medida em que faz da vida terrena uma escola de errantes, o desconhecido ambiente spiritual é privilegiado. Também no oriental livro sagrado hindu chamado Bhagavad-Gita, que do sânscrito significa literalmente “Canção de Deus”, Krishna, o equivalente de Jesus neste texto sagrado do hinduísmo, auxilia seu discípulo Arjuna a promover sua própria autorrealização (leia-se - o encontro pessoal com seu Deus) a partir da conciliação do bem e do mal – apenas uma outra recorrência em relação à experiência e à moral postas no mito edênico da Bíblia. Nesse sentido, o Gita se aproxima da Bíblia, quando esta afirma que Jesus veio ao mundo para auxiliar o homem a se re-conciliar ou se re-unir com Deus depois do pecado original. Considerando que se tratam de ocorrências idênticas narradas em textos sagrados diferentes, como pode o discurso bíblico apropriar-se da arrogantemente da Verdade em detrimento deste (ou outros tantos textos sagrados), tão antigos, humanos e profundos quanto a Bíblia?


2 comentários:

  1. Quando estive em Barcelona lembrei de você :)
    Saudade de tomar vinho com você Paulinho...

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  2. Opa, me ligue anônima, os vinhos continuam bons, eu é que piorei um pouquinho.

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