O primeiro arrebatamento que nós,
ocidentais, deveríamos ter, é o do experiência com a imposição de Verdade
presente no pensamento judaico-cristão.
A própria maiúscula usada nos termos
Deus, Senhor e Verdade, mostra a necessidade de sujeição imposta pelo sistema
de sentido das religiões cristãs. É o “estar-sujeito-a-Deus” que
alimenta o discurso bíblico e que pede, sempre, uma atitude de submissão.
Mas o discurso bíblico cobra uma
atitude de submissão querendo, no fundo, promover o aprendizado da fidalga
virtude a que chamamos humildade. Se um barulhento “- sim” corroborar essa afirmação, então, uma primeira contradição emerge do discurso
bíblico.
Sustendo a expressão “discurso bíblico”
justamente porque, de fato, o que há nesta dimensão terrena, imanente, limitada
e parcial, é apenas a possibilidade de um discurso sobre alguma coisa –
um texto, um relato, uma história, um dado empírico, um sonho, uma fantasia,
seja o que for. Se há alguma “Verdade” capaz de ser maiúscula, essa verdade
nunca poderá ser escrita em algum lugar, ou entoada por alguma voz, ou lida em
algum púlpito. Para os cabalistas o rosto de Deus pode ser visto a partir
da combinatória infinita, e a combinatória infinita precisa da pluralidade do
outro para ser feita. O rosto de Deus, diz Warat, é a diferença. Os orientais,
ao contrário de nós – ocidentais e herdeiros do judaico-cristianismo – percebem
Deus (ou a ideia de Deus) de outro modo. Enquanto nós escrevemos a “Verdade”,
eles apenas a contemplam (humilde e minusculamente). Enquanto nós discursamos
com pompa e embargamos a voz para que a Verdade pareça séria, eles apenas
cantam (humilde e minusculamente). Enquanto nós temos que ler para ter certeza
de que não esqueceremos de nada para termos poder sobre tudo, eles querem
apenas esquecer de tudo (humilde e minusculamente). Para os orientais, estar
com Deus é esquecer de tudo, é dançar, é contemplar tudo que existe. Os
orientais estão de acordo, inclusive, com o velho santo solitário que dialoga
com o Zaratustra de Nietzsche (este que irônica e metaforicamente
"matou" Deus), quando diz: “eu faço canções e as canto, e, quando
faço canções, rio, choro e sussurro: assim louvo a Deus. Cantando, chorando,
rindo e sussurrando eu louvo ao deus que é meu Deus.”
O pensamento oriental, que tem o mesmo
propósito do re-ligare ocidental, acaba, por fim, ensinando melhor.
Enquanto o ocidentalismo judaico-cristão concentra sua atenção na submissão
em relação ao transcendente e ao metafísico; o pensamento oriental
se preocupa, antes, com o aprendizado da crença da virtude da submissão,
ou seja, a capacidade de se tornar humilde diante, principalmente, do Deus que
vive no outro e que é sempre o reflexo do Deus que vive no "eu"
que olha. Este outro que
obrigatoriamente é um não-eu que não
deve (ou não deveria) ameaçar egos culturalmente domesticados pela cultura
patriarcal ao vício de ser o portadores da verdade - uma atitude arrogante,
nada submissa, muito menos humilde e, portanto, anticristã... O cristianismo
tem paradoxos insanaveis como tudo que é humano, ainda que se pretenda divino. É
apenas sem a agressão do ego alheio que podemos encontrar o Deus que vive nos
outros, para que este, fale com o Deus que vive dentro de nós.
Essa atitude de “desprendimento” ou de liberação,
está no I-Ching, oráculo chinês que data da danistia Chou dos anos de 1150-249
a.C, portanto, anterior à passagem de Cristo na Terra, precisamente no
hexagrama 40. Neste hexagrama consta: “[...] como a chuva provoca um alívio
nas tensões atmosféricas e faz com que todos os brotos se entreabram, assim
também o período da liberação traz um alívio ao que estava sendo oprimido, e um
estímulo à vida.” O I-Ching é também chamado de Livro das mutações
e, por isso, contraria a noção do cristianismo que pretende uma Verdade
estável, fixa e eterna, em evidente repetição do modelo de pensamento ocidental
socrático-platônico. O cristianismo como um platonismo para as massas
(Nietzsche) é, nesse sentido, uma expressão certeira. Desde o modo sincronístico
como deve ser lido, até o modelo de verdade-eternamente-transitória contida no
contexto do texto, o I-Ching é a expressão contrária do Deus cristão, que se
pretende Maiúsculo, Onipotente, Onipresente e Onisciente.
Jung, que prefaciou a
tradução ocidental do I-Ching, quando perguntado se acreditava em Deus, disse
simplesmente: “- eu sei, não preciso
acreditar”. Nesse sentido, é possível dizer que Jung estava com Deus, que a
sua própria profundidade e riqueza eram o seu próprio Deus, construído
artística e exclusivamente por e para ele. Negada a pluralidade, onde ficou
esquecida a humildade das centenas de religiões que professam suas crenças a partir da Bíblia? A imensa lista de dissidências das religiões
ocidentais que tem a Bíblia como fundamento, por si só indaga: qual realiza a Verdadeira
interpretação da Verdade do texto Bíblico? Da Igreja
Católica Apostólica Romana, passando Igrejas não-Calcedonianas, pelo Luteranas, Anglicanas, Calvinistas,
Presbiterianas, Pietistas, as Pentecostais e
Neopentecostais, as Igrejas Unidas, Igreja de
Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias, a
Quadrangular, a da União em Cristo, as dos surfistas unidos do reino do Senhor
como a Bola de neve e, numa dessas, até a Bola de fogo…para qual delas eu me
associo, já que o ritual do batismo é imprescindível?
Tenho profundo respeito à noção de
humildade que se pode extrair do discurso bíblico, na medida em que ele se
estrutura a partir da ideia de que devemos nos render ou nos sujeitar a alguma
coisa do qual somos incapazes a partir dos sentidos (de saber, de lidar, de
tocar, de ver, de experimentar). Assim, o substrato ou a "essência"
da ideia do Deus bíblico, está apoiado na noção de que assumir a incapacidade
humana é livrar-se da incapacidade humana ou, dito de outro modo, assumir a
incapacidade humana significa assumir a submissão para, por fim,
salvar-se. A superação da “vontade de ser submisso”, que vai em direção à
“materialização da humildade”, corolário da tolerância solicita por Jesus,
encontra uma resistência fincada na alienação do sujeito formatado
culturalmente como um animal de rebanho, homogêneo, humilde, capaz de prescindir
do palco da linguagem (os pastores, os politicos e, recentemente, o sincretismo
de ambos na infeliciana figura dos políticos-pastores adora o palco da
linguagem...), da enfermaria que é construída no centro do próprio ego. O
desconhecido recebe então diversos nomes (Deus, Allah, Buda, Iluminação,
Transe, Morte, Sonho), mas dentro de cada uma dessas vozes, as palavras são
ditas e interpretadas, cada uma, de outro jeito, o que torna o I-Ching chines um
livro sagrado que merece mais respeito do que a Bíblia. O discurso é o feto da intuição
- talvez porque a intuição, seja para sempre este diálogo que a gente faz com
Deus sem a imposição material e humana da linguagem.
Essa noção de submissão do homem terreno
em relação àquilo que ele não pode dominar – como Deus, o Desconhecido e a
Morte, para ficar apenas nesses exemplos – encontra infindáveis recorrências.
Lembre-se: recorrências significam, precisamente, uma mesma ocorrência que
acontece em diferentes lugares, com diferentes pessoas, em diferentes tempos
históricos, com diferentes linguagens e com diferentes roupagens. Utilizarei
apenas dois exemplos da recorrência da noção de humildade como efeito da
atitude de submissão. No espiritismo, o corpo é desprestigiado, na
medida em que faz da vida terrena uma escola de errantes, o desconhecido ambiente
spiritual é privilegiado. Também no oriental livro sagrado hindu chamado Bhagavad-Gita,
que do sânscrito significa literalmente “Canção de Deus”, Krishna, o
equivalente de Jesus neste texto sagrado do hinduísmo, auxilia seu discípulo
Arjuna a promover sua própria autorrealização (leia-se - o encontro pessoal com
seu Deus) a partir da conciliação do bem e do mal – apenas uma outra
recorrência em relação à experiência e à moral postas no mito edênico da
Bíblia. Nesse sentido, o Gita se aproxima da Bíblia, quando esta afirma que
Jesus veio ao mundo para auxiliar o homem a se re-conciliar ou se re-unir com
Deus depois do pecado original. Considerando que se tratam de ocorrências
idênticas narradas em textos sagrados diferentes, como pode o discurso bíblico
apropriar-se da arrogantemente da Verdade em detrimento deste (ou outros tantos
textos sagrados), tão antigos, humanos e profundos quanto a Bíblia?
Quando estive em Barcelona lembrei de você :)
ResponderExcluirSaudade de tomar vinho com você Paulinho...
Opa, me ligue anônima, os vinhos continuam bons, eu é que piorei um pouquinho.
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