domingo, 29 de abril de 2012

o bumbo leguero do amor





A noite chuvosa que chega traz atravessamentos poéticos. Nos amontoados de livros, o destino faz os dedos agarrarem Warat. Minha falta de autonomia clama pela satisfação de meus desejos de manutenção do paternalismo cultural que cruza inexoravelmente meu modo de ser-no-mundo... Em Warat encontro assento.  Identifico na intertextualidade da leitura e da escritura, a possibilidade de assumir minha condição de ladrão sem sofrer as penas da moralidade ou outras que queiram tirar minha paz. Posso ser um plagiador da matéria do pensamento. De Warat recebo, como um médium recebe informações de uma psicografia, as fantasias de Cortázar, de Barthes, de Jorge Amado. Livro-me da culpa de dizer o já dito e de pensar o já pensado, ainda que queira sentir a culpa de sentir de novo. No fundo quero me livrar de toda a culpa, para ser um psicopata do amor, um apunhalador das energias puras do afeto, um verdugo que lança corpos num mar de delícias. Sinto-me como um filho sem desejo de matar o próprio pai. Sinto-me na bolsa protetora da mãe-canguru. Narcisicamente, vejo o contorno dos meus traços na semiologia amorosa de Warat. A narrativa de divinização da intimidade e de valorização do silêncio no encontro amoroso, tornam o texto alheio eco da minha própria voz. Também o labirinto do medo, como força contrária à energia desbravadora do amor, anestesiam meu vagar temeroso no desconfortável terreno dos afetos. Mesmo dividindo uma ausência pontiaguda com a chuva, encontro a mão do amigo no universo fragmentado e multifacetado dos cronópios. Warat brinda com Cartázar, posso sabê-lo sem que possa explicar, posso escutar o tim-tim das taças que talvez sejam copos. 

Ponho o pensamento a caminhar pelas ruas molhadas. Desejo que ele se perca. Sei que pensando minhas reservas selvagens permanecem intocáveis. Se me protejo da dor, também deixo de andar, chegando no limite do sentir que a solitude permite. Daqui em diante repetirei o mesmo caminho, como um Sísifo predeterminado. Se abandono o pensamento em uma rua escura, como um cão que, abandonado pelo dono, busca o caminho de casa, é por desejo de vida, afinal, tomamos ou o amor ou o temor como bússola. Desejo perder os referenciais que impõem em mim a organização metódica do meu temor, numa espécie de tratamento compulsório de evitação da dor. Busco a reserva selvagem que se esconde no outro com uma lanterna de pilhas fracas - e sem a paciência que a busca requer. Quero o silêncio antes do dito, cônscio de que preciso passear pela superficialidade das palavras ditas antes do bálsamo do silêncio. Quero viajar até o terreno oculto do outro, em busca da sensação do amor, que é como o perfume natural e silencioso da mulher que se ama. Da pele fina da mulher que se ama. 

Amor é longa caminhada. É uma fusão de duas jornadas heróicas abandonadas no labirinto do destino. Como caminhantes de labirintos, desejamos a sorte das mãos dadas, o calor do corpo que afaga, a proteção da vigília noturna pelo olhar do outro enquanto dormimos, o revezamento que alivia o peso da vida. No inicio, uma caminhada de amor é um olhar de desconfiança, é uma comunicação distante de solicitações e concessões de mais espaço, como um bumbo leguero que marca a lonjura pelo grave eco que viaja pelos ares de ouvido a ouvido. O destino é o encontro com a reserva selvagem do outro e com a possibilidade de se tornar um voyeur com crachá de permissão. Os dois lados da moeda do amor estampam a subversão, mas só em um deles a subversão pode ser compartilhada com a de outro. Amar é um exercício de compartilhamento de subversões. A subversão de um habitar a intimidade do outro. Qualquer outro tipo de subversão é carnal e, portanto, periférica. A subversão como experiência da intimidade do outro é uma troca de silêncios. Não há como acessar integralmente o terreno selvagem do outro com a linguagem, sob pena de um plágio de amor. Só os plágios escritos são permitidos no terreno do amor, que não prevê sanção ou falta para a cópia de argumentos. O amor sabe que sua raridade é personalíssima como uma impressão digital. O amor sabe que é um trem de poucas passagens no vale de ambigüidades da vida. Precisamos saber também. Os dias frios e chuvosos pioram a dor nas costas. A falta de amor também.

Podes evitar as dores do amor, evitando o amor. Estarás renunciando à viver. As dores do amor são criativas, nos levam a perceber, à transformação. Se renunciamos às dores do amor, deixamos de ser ciganos. Nossas vidas deixam de ser um rio que vai até o oceano, transforma-se em charco estancado. O estancamento narcisista. Um rio permanece limpo porque flui. O fluir outorga-lhe virgindade. Todos os amantes são virgens. (meu plágio cronópico)

3 comentários: