segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

TRESVALORAÇÕES





Há sempre um divórcio que nos espera. Esperar de alguém, alguma coisa, é sempre um divórcio de antemão. É sempre o além do presente aquilo que nos trai. Empírico que sou, recebo dos dados da experiência verdades parcias altamente consideráveis. Tivesse Aristóteles precedido Platão, viveríamos em um mundo mais honesto. Casar-se à moda antiga... - reflito à beira dos 30 anos. As pessoas se casam por conforto e medo, sobretudo por medo. Um medo que é da impermanência que elas mesmas sentem no corpo que sente. Se o corpo perece, porque o resto não haveria de perecer também? A instabilidade do que se sente, falsamente controlada pelo ritual exterior, termina como brincadeira adulta de papai e mamãe, com contas pra pagar e sexo aos sábados. É que estamos ainda domesticados a buscar soluções externas para dramas que são tão escondidos quanto secretamente guardados no infindo universo interior.

Casar-se? Indago-me... mas com quem? Com a velhice? Com a morte? Com a resistência das horas? Com este mato úmido que da serra me olha...e chora dentro de mim como um prazer calmo igual à morte dos orgasmos? Casar-se...? Para que o sentimento acabe? Para que a fantasia de imaginar pereça? Para que o perfume vire mau hálito? Casar-se para que se acabe o delírio da espera? - essa ejaculação tão precoce do espírito? Casar-se para eliminar essa mágica espera pelo paraíso que há no mundo empírico, em cada novo rosto e cada novo toque...?

Quê ainda resta que possa ser honestamente reticente, metafísico e infindável? Qual a graça de uma piada já sabida? Qual o esplendor de uma paisagem já tão consativamente provada pelas vistas desses olhos coletivos que também são nossos? Quê resta que possa ser possível sem deixar de ser extremado e intenso? Eu não gosto desses divórcios que a cultura empobrecida que temos coloca no porvir de nossos caminhos. Das despedidas, se forem inevitáveis, espero honestidade - esta tão pequena lei. Fujo de finais inesperados e dolorosas cisões espirituais...por isso vivo a vida como o aprendizado de investir em tresvalorar as relações. Quero ser rico da riqueza de agregar o que em mim já passou...o banco dos réus que a história, a cultura e a moral me convidam a sentar, é para mim um trono.


Aquilo que ainda se pode perder é tão mortal como dez facas lancinantes em direção ao coração, o que me faz concluir, como Quintana, que apenas o que já se perdeu pode perdurar. A saudade do que foi e que já não é, é uma presença, e talvez a única imperecível. A lembrança de um cheiro que num repente nos visita as entranhas da sensibilidade cerebral. A cólera abstrata de um ciúme posseiro, de um domínio que nunca nos pertenceu e nunca pertencerá... São demasiado gasosas as coisas a que temos direito na memória... mas só se quisermos manter esse mundo de mentiras, não sinceras, mas desonestas de dar dó. Se assim não se dá, os amores terrestres vivem apenas se começam tarde, como aliança numinosa à beira da morte. José Saramago e Pilar me fazem ter essa sensação.

Pensemos então. Se os relacionamentos tradicionais flertam com a permanência, talvez seja a morte minha noiva sutil e benfeitora. A morte - eu disse a morte - como única permanência. A morte no altar, dizendo em polissemia que apenas ela mesma é que separará o indivisível. Se a morte é rainha, que possamos ser como Édipo para tomar, domar e se apossar da morte em busca da eternidade que temos direito. O domínio da morte permite uma outra realidade, que só pode ser outra em toda a sua nudez e toda a sua mudez. Dominar a morte é manter-se na crista de uma onda que não termina quando encontra a praia. O gingado de manter a consciência entre o suicídio da loucura e a derrocada de uma vida meio assim fosferina: ferina e fatal como um fósforo acesso, normal, corrente...um peido histórico que se perde no ar da memória.

Sentir o presente é o mesmo que sentir verdadeiramente um presente que uma pessoa querida nos entrega com toda uma honestidade que vem dos mais encravados sentimentos que em ambos existem. Os presentes extremados são os que fazem sentimentos subterrâneos se entrelaçarem: um amor e um grande desejo futuro, uma paixão e um projeto de vida, um sentimento e uma velhice programada. Não importa o quê ou como se sinta, basta que seja extremado, com adrenalina, inevitável como um orgasmo que já não se pode evitar por mais que pensemos em todas as contas que haja pra pagar e por mais que se aperte a cabeça do pau. Conhecer com agudeza almas alheias: é assim que aquilo que se perdeu permanece em nós como sonho, memória e transcendência. 

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