sábado, 24 de dezembro de 2011

CARTA À NOEL: "DEUS É PAI, NOEL..."


"A origem do universo" de Gustave Courbet...censurado no facebook da Neoidade Média


"Se o medo da loucura, nessa estrada escura,
me afastar da luz, que me conduz.."Raulzito

O legal legado do Papai Noel, à parte a besuntada tarefa dos que fazem bico nessa época com uma indumentária nada tropical, é que, no natal, somos remetidos aos delírios e dilemas do nosso inconsciente em relação ao fim dos ciclos. O final de um ciclo lembra fim, cessação, não-ser, não-estar, inércia existencial. Fim lembra que a especulação sobre nossa origem e nosso final não conseguiu evoluir para além da especulação, visto que as especulações são fragilíssimos bebês de proveta do pensamento.

A tentativa de resolver dilemas indissolúveis nos conduz a um abismo que tem dois buracos: o primeiro é o buraco da busca do conhecimento; o segundo, o buraco da sensação humana de totalidade ou aquilo que ocidentalmente (ou seria acidentalmente?) se chama de Deus. O legado do Papai Noel é apenas material filosófico para quem o percebe como ser histórico do imaginário popular, como dado folclórico e mitológico do gênero humano, como a simples representação teatral que é.

Vamos à silogismos e "deducionices": se Deus é pai, se o padre é a representação de Deus na Terra, se os pastores dos rebanhos são solitários que conduzem um rebanho como Deus conduz, do céu, os mortais... (Mais se's...) Se o Pai é Deus e se Deus é Pai (agora maiúsculamente)...então Deus é o Papai Noel e vice-versa (se não entendeu, tome um gole e leia de novo). E é essa tentativa de estabelecer um contato com algo que não está disponível entre os fenômenos que reside a necessidade de Deus, tão aguçada no Natal, que não por acaso está associado ao final do ciclo de um ano...Deus é ainda, entre os homens, uma exceção. Uma exceção porque, se Deus fosse comparado com um filho, seria sempre o filho exceção...ou alguém extremamente amado, ou alguém completamente rejeitado. Nos homens, ou Deus é adorado, ou Deus é odiado a ponto de que haja a negação completa da imago dei. A negação da  ideia divina se constitui como inflacionada característica inconsciente que provoca o ateísmo consciente. O ateísmo é, sobretudo, um acento muito próprio de um perfil narcísico e pouco maduro ou, para usar a expressão de Jung, não individuado. Contrariamente ao paradigma científico, que opera redutivamente considerando as maiorias como totalidades, a interpretação de Deus pela consciência humana se dá nas beiradas, nos extremos, no que se destaca entre o bem e o mal, entre a luz e o breu. Deus nos homens nunca é sombra: ou é luz ou é escuridão, ou é vivo, como para os religiosos em geral, ou é morto, como para os ateus e céticos e niilistas. Me permito intuitivamente dizer que Nietzsche matou Deus e criou um outro, a que chamou de amor fati, ou, a monarquia aristocrata do “agora”, hoje tão mal visto nos livros de autoajuda que,se funcionassem, não venderiam tanto...

Judaico-cristianamente falando, pode-se dizer que boa parte dos equívocos da leitura bíblica se dá pelo esquecimento do caráter metafórico das alegorias dos contos, do Gênesis ao Apocalipse. Entre os religiosos ignorantes das mais diversas seitas, a leitura é estilo “ao pé da letra”. Ao legar a expressão “ler ao pé da letra”, a cultura ensina que toda rigidez que conduz ao extremo da literalidade é uma superficialidade. Imagino que o “pé da letra” seja um lugar baixo demais para as pretensões maiores do homem. Imagino que o “pé da letra” seja apenas a escrivaninha de um estagiário, ou de um pau-pra-toda-obra qualquer. Essa é a maior pobreza sombria de uma consciência religiosa. A consciência religiosa é dos crentes e dos ateus - sim! Por mais paradoxo que possa parecer, é inevitável atestar que crentes e ateus acreditam piamente em Deus. A leitura que nega o caráter simbólico da linguagem bíblica é a leitura materialista que fazem os religiosos. É possível, inclusive, problematizar-se os fatores inconscientes que existem entre a leitura extremamente materialista que se arrastou ao longo do desenvolvimento religioso e os excessos que hoje colocam em xeque a estrutura materialista que preponderou ao longo da modernidade.



O leitor tradicional da bíblia considera que Deus, em nenhum momento, permite uma briga de bombris ou um homem que dê a bunda. Dos religiosos aos constitucionalistas materialistas, entende-se que a menção feita é literalmente de homens e mulheres... e não do masculino e do feminino, como a metáfora sugere. É possível entender a ideia de "negação do mesmo sexo" como sendo a tendência do homem inautêntico (bom exemplo é o homem autômato e robotizado do modelo econômico-cultural-e-pensante atual) de desenvolver-se por completo ou, o que a mitologia de Campbell chama de realização da jornada do herói. A completude como integração dos conteúdos masculinos e femininos do psiquismo individual e coletivo é o processo de passagem pelos rituais que marcam o desenvolvimento do herói do nascimento à morte. Pelo olhar da psicologia analítica, o que essas passagens bíblicas pretendem é apenas alertar para a necessidade de que temos que descobrir o par oposto que está latente dentro de nós mesmos.



Esse mandamento oracular em nada se confunde com o fenômeno da sexualidade corporal ou eventuais desejos homossexuais, como parece ser a interpretação materialista e literal do texto bíblico. O feminino e o masculino são forças inconscientes que estão presentes no psiquismo e, o processo de integração, ou a construção do sujeito de tantos e tantos dizeres tantos da história, é a atitude consciente de lançar luz sobre o outro lado de nosso grande muro psíquico para que possamos experimentar a plenitude que nos é possível, mesmo que essa mirada de luz em direção ao escuro tenda à inércia e seja, por princípio, contrária ao andamento "normal" de nossa consciência. É nesse sentido que existem razões suficientes para atestar que o autodesenvolvimento consciente de individuação, ou a autopromoção da aceleração deste "processo"  é uma espécie de estelionado, já que ultrapassa a barreira do desenvolvimento natural da consciência. O Éden bíblico, visto como metáfora, não é nada mais que a individuação do psiquismo por meio da integração de um oposto. Visto com estas lentes, a leitura bíblica tradicional e materialista me parece desatualizada, antidemocrática, pobre, rasa, medieval, tosca, chula, intelectual e espiritualmente vagabunda...mas apenas ME parece, é bom se diga.



A autoridade de Deus no antigo testamento que a ele dava poderes de condenar os que não estivessem sob seu jugo, é apagada quando Cristo e Satanás, os dois mais famosos filhos de Deus, se tornam líderes dessas duas grandes equipes do Senhor: o bem e o mal, o céu que não existe depois que descobriu-se o caos do unverso e o inferno que é quando estamos tristes de verdade... A autoridade de Deus, que é absorvida por todas as interpretações religiosas da bíblia e de outros textos tidos por sagrados, é a grande miopia em termos de historicidade na análise dos textos bíblicos por grande parte dos religiosos de todos os tipos.



Há um assustador exercício de arbitrariedade - para dizer o mínimo - em um texto que expresse autorreferencialmente que contém, em si mesmo, sua própria interpretação. A hermenêutica filosófica trata de conferir autenticidade às interpretações por meio de um diálogo com a tradição, uma espécie de aferição de equivalência entre aquilo que se quer interpretar e o que historicamente de fato se deu em relação às relações entre as coisas e os sujeitos históricos. Mas é pelo fato de que essa hermenêutica desconsidera as partes inconscientes da história coletiva, que este correto mandamento hermenêutico deve ser relido. Não sem razão que a religiosidade pré-antiga e mesmo a pré-socrática oferece um extenso rol anti-hierárquico, quase caótico de divindades. Alguém que não seja especialista dificilmente saberá qual dos deuses gregos da mitologia é o primeiro ou o pai-de-todos-os-outros. Por outro lado, todo e qualquer ser humano na Terra sabe que é o DEUS garrafal, nas três grandes ramificações religiosas do judaico-cristianismo, do islamismo e do budismo, o grande inventor de TODO o universo...essa atitude tão manifestamente masculina e paranóica do psiquismo coletivo.



As religiões que se desenvolveram ao longo deste grande período patriarcal de nossa história (de Sócrates à Nietzsche) se identificam pela criação, em cada uma delas, de códigos sagrados que encerram perigosamente em si mesmos um sentido de unidade interpretativa estrita e literal. Nietzsche foi o grande retrato humano e coletivo da tragédia de Sófocles, Nietzsche é a personificação do Édipo que tem a Moral como Pai e o instante como Mãe...Nietzsche mata nosso instinto de necessidade pela figura paterna, para que possamos tomar posse integral de nossa imanência na grande Mãe Terra. É Nietzsche que, antes de todos, abre as portas do modelo de pensamento contemporâneo – esta menina que engatinha... É em função do paradigma patriarcal que o argumento de autoridade materialista do texto bíblico diferencia o homem da mulher. Entre os intérpretes materialistas e rasos e pobres da Bíblia não se entende que a separação entre homens e mulheres é apenas uma metáfora sobre a desintegração do homem com o si-mesmo, na lendária instituição do pecado pela maça edênica – porta de entrada no humano mundo dos contrários (a árvore do conhecimento do bem E do mal). É assim que na bíblia, onde se lê que [..........] não se pode ver mais que o roteiro de um teatro psicológico, nos moldes do romance de James Joyce, que eu nunca li.



O potencial lesivo do argumento de autoridade dos textos sagrados que são interpretados sem a necessária conotação metafórica é assustador. A diferença lançada entre homens e mulheres no texto bíblico, e mesmo o argumento de separação dos homens mediante o fator de crença absoluta em Deus (este da bíblia cristã) são, todos, o mesmo perfume de todos os regimes totalitários de disputa que brotaram entre os homens na Terra: bárbaros e romanos; cristãos e pagãos; católicos e protestantes; negros e brancos, indígenas e europeus, capitalistas e socialistas; crentes de todos os tipos e ateus de todas as raças... É assim que a pobreza dos olhos da grande casta de medíocres que sempre prevaleceu e sempre prevalecerá na Terra fez, de tudo que foi sagrado, o combustível do que de mais vil, hostil e cruel se noticiou na Terra. A bíblia, usada como grande fundamento moral de todo o sangue que escorreu pela Terra e toda a pior dor da carne, se fez código de horrores tanto quanto se fez código do humanismo e da benevolência.



Ao requerer, ao longo desse longo período patriarcal, uma (única) interpretação correta (inviável pela falta de paridade axiológica de acordo com a pluralidade de seitas), o fenômeno religioso das religiões se constitui como o grande transe de toda a cultura humana, um estado de sonho do qual dificilmente a humanidade conseguirá lembrar quando acorda...Assim como pouco lembramos de nosso antecessor período matriarcal... - O Ensaio sobre a Grande Cegueira Paradigmática da História.



Para os pré-socráticos que testemunharam o último grande momento do matriarcalismo ocidental, o homem era o centro e a medida de todas as coisas. Se temos o dever de dar um passo, nesse momento de bancarrota do patriarcalismo, este passo é corrigir o adágio de Parmênides, para dizer que o homem é o centro e a medida apenas das coisas que quer ao seu redor... O Juízo Final é o oscar da Paranóia, em que todos vestem black tie e esperam sentados a chamada de Deus...aos ganhadores os louros, aos perdedores, o quinto dos infernos. Por trás das religiões e do Deus por ela inventado está o arbitrário livre-arbitrio dos homens. O Deus das religiões é apenas o resultado de um nepotismo histórico. Feliz Natal.

6 comentários:

  1. Muita perspicácia, pra variar; texto muito, muito bom!

    Parabéns!

    Rubens.

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  2. Demais Paulo,

    continuo te admirando de natal a natal! kkkk

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  3. Valeu Peter, mta paz pra ti no novo ano. Abração

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  4. Uma hipérbole enfeitada somente pra dizer no fim "eu não quero que Deus exista".

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  5. É por conta de reducionismos como esse teu Leonardo, que os problemas mais complexos do mundo ganham respostas medíocres, sempre de rechaço total ou de caráter divinatório.

    O que escrevi não é uma ode à um desejo meu, não é um comentário privado, mas uma tentativa de ler o fenômeno religioso com lentes históricas.

    De todo modo, respeito toda e qualquer manifestação e agradeço teu comentário...Peço apenas que debata com a complexidade que este tema requer, para que não se cometa o mesmo erro dos fanáticos sem fundamento: o sim pelo sim.

    Abração

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