sexta-feira, 4 de fevereiro de 2011

podia ter sido presidente da república



Cheguei em casa muito bem. O dia havia acabado e era uma hora do dia como nenhuma outra. Cheguei a pensar que aquele ditado “O trabalho dignifica o homem” podia estar certo. Por um momento aquela abominável coisa fez sentido. Mas depois passou. Melhor que passasse sob pena de eu morrer sem o ímpeto de seguir adiante e criar uma vida em que o ócio e a vagabundagem reinassem absolutos e que, mesmo assim, eu pudesse ter dinheiro na conta corrente pra fazer as coisas boas da vida que precisam de dinheiro. É preciso ter algum dinheiro pra ser vagabundo. Ou, então, ter a coragem do Bukowski. Eu não tenho (hesitei em escrever um “ainda não tenho...”).

Mas tinha chegado em casa bem. Não havia outro momento senão aquele. E a vida tinha que ser vista assim. Estar e permanecer no estar era uma missão filha-de-uma-boa-puta-boqueteira. Quando se podia tocar, por uns instantes, a excelência de permanecer no estar, era sinal de que a vida valia a pena.

Liguei a vitrola de tocar LP’s que ganhei de natal do meu vô. Aliás, esse meu vô, que é o pai da minha mãe, é um grande cara. Que ficou perdido numa vila porque ninguém o descobriu. E é só por isso que não tenho uma COMPLETA admiração por ele. É um gênio que vai morrer no anonimato, simplesmente porque não aprimorou as ferramentas que ganhou de presente na vida. Esse meu vô é o mais dionisíaco de todos na minha família.

Queimou todo o dinheiro que tinha com a canastra. Fumou todos os cigarros que pôde. Ele tinha 7 casas na vila em que morava com a família. Ai queimou 6 delas com as cartas. Quando sobrou apenas a última das 7, a casa em que toda a família morava, minha vó disse que, se tivesse que morar na rua, largaria ele. Nesse dia, meu vô morreu pela primeira vez. Exatamente no dia em que teve que deixar de ser dionisíaco na grande paixão que tinha na vida: o jogo de cartas.

O orgasmo pra ele era jogar cartas e deixar um cigarro esquecido queimando no canto da boca enquanto marcava o anverso das cartas com a unha comprida. No dia em que teve que controlar os ímpetos do jogo, preocupado em perder a minha vó (e não exatamente a casa), teve a primeira morte em vida. A segunda veio no dia em que o médico disse que ele tinha que largar o cigarro por conta de um enfisema pulmonar fodido que ele tem até hoje. Aqueles cigarros que ele fumava com a ponta amarelo-queimado, eram fortíssimos. Ele fumava 2 carteiras de "oliú" (Hollywood) por dia. 40 pregos cravados no próprio caixão a cada dia.
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Como aproveitou a vida esse meu vô, o Edo, que é apelido de Hélio, o nome dele. Ele é um dos caras que eu mais respeito na minha família, que admiro até a ponta dos fios dos cabelos. (a última frase teve que ser reconstruída porque a sinceridade ainda é muito ferina...)
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O velho podia ter sido presidente da república. Agora resiste em morrer porque acha que minha vó anda trepando com o vizinho. Só porque o pau dele não levanta mais. Anda todo sem esperança o coitado: se tomar um viagra, morre do coração; quando caminha até o banheiro, fica esbaforido como se tivesse corrido a São Silvestre; no inverno, quase morre de frio; não pode cortar a pele porque o sangue não tem consistência e não coagula; se ficar de pau duro naturalmente (como a repetir o milagre do Gênesis com um sopro de Deus direto no pinto dele), morre porque o pulmão não aguenta o chacoalho do sexo.

Esse quadro desgraçado fode com a masculinidade de qualquer um. E, quando a masculinidade escorre pelo ralo, um homem escorre junto. Essa impotência generalizada criou um ciúme doentio dele pela minha vó, que já anda pra lá de Bagdá. De qualquer forma, acho que ficar de pau duro é o mínimo que um homem pode oferecer. Uma mulher com um broxa persistente tem todo o direito de um “divórcio por justa causa”. Isso se a mulher não tiver problemas de lubrificação. A secura das mulheres é a broxura dos homens. Antes tinha a saliva pra ajudá-las. Até imagino as sessentonas dos anos 50 dizendo, “...olha, eu estou toda lambuzada e você ai com essa porcaria mole...”. Depois veio o KY (aconselho misturar com umas gotas d’água). E agora o viagra equilibrou as coisas. Na verdade, somos nós homens que historicamente fomos oprimidos. Até a chegada do viagra, não tínhamos solução, perdíamos a validade sexual assim como as mulheres perdem a validade reprodutora, uma coisa pra se pensar. Mas para o sexo-pelo-sexo, estamos em paz. Eu imagino a alegria da velharada com esse viagra. Vou tomar muitos futuramente.

Como no caso do meu vô, nem o viagra pôde salva-lo, consigo entender a neurose ciumenta que se instalou na alma dele. Ele criou uma ilusão, apenas pra se manter acordado aqui na vida da terra. Ele, como eu, gosta do ar podre da terra, e por isso resiste em morrer. É diferente de quem gosta simplesmente porque não conhece o perfume e o fedor do ar. Ai ele fica criando um ciúme de brinquedo pra ficar vivo. Ficamos vivos até quando podemos manter o foco em alguma coisa. Depois que nada mais tem luz, é preciso morrer. Ele iluminou a minha vó. E não porque ela é especial, mas porque era a que estava mais perto. Meu vô e eu conseguimos nos entender só com o olhar. Como se fosse um pacto silencioso sobre o grande mistério, que de tão grande eu nem sei qual é, mas sei que existe.

Fui visitar ele uns dias antes do Natal, que é um dia depois do meu aniversário, que é no dia 24. Ficamos lá no sofá conversando até que ele disse que ia me dar a tal vitrola de tocar LP’s de presente de aniversário. Achei que aquilo podia ser a herança do meu vô, e que ele pudesse bater as botas antes do meu próximo aniversário. Seria uma pena perder ele. Ele sabia que eu queria a vitrola, e por isso resolveu me dar. Agora, depois que comprei alguns LPs, a vitrola esta funcionando aqui em casa. Toda prosa. Meu pai disse que era um trambolho que nunca ia ser usado, se enganou. As músicas de LP têm um pano de fundo que se parece com som da garoa caindo antes de dormir. Toda tecnologia dos mp3 e Ipods para, no fim, voltarmos ao vinil e seu melódico som de chuva.

Liguei a vitrola porque cheguei bem, como eu já disse lá em cima. Coloquei um disco do Stones. Fiquei pelado e fui tomar banho. Não sem antes fazer um copo de guaraná, gelo e vodka vagabunda. Dancei no banho como um demente. E o som dos Stones rolando alto na sala. Depois sentei de toalha na mesa da sala e comecei a escrever. Uma mulher na janela do edifício que fica bem na frente da minha sacada, me olhou com uma cara de nojo. Deve ter pensado que eu tava no msn e ter me achado um imbecil. Ou não gostou de me ver pelado, que é realmente uma cena horrenda. A gente antecipa muito as conclusões sobre os outros e isso é uma merda. Ainda que seja necessário dizer que, em geral, o “todo mundo” é uma merda mesmo.

Nesse dia em que ganhei a vitrola do meu vô, ele contou que uma velhota caindo aos pedaços e toda religiosa, que morava na mesma rua dele, perguntou como ele fazia pra atrair os beija-flores que iam bebericar nas esperas de água com açúcar que ele deixava na varanda de casa. Ele respondeu pra velha:

- Eu amasso duas pedras de crack e misturo na água.

A velha fez o sinal da cruz e saiu horrorizada.

Pensando bem, dopar beija-flores não é crime. E, se fosse verdade, ele seria um homem de bem, mesmo drogando os pássaros. Vejam como o mundo é idiota, os atletas não podem tomar nenhuma droga, mas qualquer artista pode encher a cara e fumar o que bem entende pra produzir suas artes. O dopping é permitido aos artistas! Conclusão: melhor ser artista que atleta. O mundo quer leis universais e esquece que há todo tipo de gente e coisas no mundo. Mundo idiota, com a sensação de que não é.

O meu vô só dava esmola pra mendigo que quisesse tomar cachaça. Se chegasse pedindo dinheiro pra comprar pão e leite ele mandava o cara à merda. Que grande coração tinha o meu vô. Anestesiava as dores dos outros. Era um médico sem diploma. Falo era porque nem ele entende como ainda está vivo. Vou encher o copo que a vodka acabou.

11 comentários:

  1. Fantástico! To adorando teu trabalho, tu tens muito talento! Um beijo saudoso, Bibelô

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  2. Meu amigo, começo a ler com a seriedade de um bom texto, e sempre me surpreendo com alguns lances engraçados, "rio" sozinho e imagino as diversas cenas descritas aqui. Mto bom. Dopar os pássaros, boa idéia, hahaha. Parabéns pelo blog.

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  3. Linda declaração de amor, Paulo!
    Grave alguns "causos" que ele conta... com a morte dessa geração, perderemos muito da nossa memória familiar, que está cada vez mais se espalhando mundo afora. Infelizmente!
    Beijos!

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  4. Nossa , vc me surpreende a cada nova leitura...
    Suas viagens (sim uma viagem) em fatos cotidianos, é maravilhoso...

    Fico imaginando o que não passa essa sua vizinha hshshs
    Beijos e continue assim.

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  5. Valeu meus queridos! beijo no coração de vocês.

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  6. Poucos como seu avô criaram uma geração tão talentosa! Eterno professor, Saudade Paulo.
    Beijo carinhoso
    Carla.

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  7. BAH! Fiquei instantaneamente do fan-clube do coroa.

    Lindo relato, Paulito!

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  8. OK, excluo tu pelado na sala bebendo RAISSKA do conjunto do "lindo" relato... :)

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  9. show deiz! a riqueza do cotidiano relatada de forma clara e ímpar. E concordo plenamente: melhor ser artista que atleta!

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  10. Pô Carla, eu fico sensibilizado não com o elogio exatamente, mas por perceber que dou passos no meu personalíssimo caminho.

    Valeu Gabrielito, essencial tua retificação..ahahhahahaha, pior que era RAISSKA mesmo (baita sincronicidade hein), a vodka que dá um barato barato (essa ficou péssima).

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  11. Baa, eu tinha a mesma coisa com o meu, essa relacao, e tambem era por parte de mae, ele me ensinou a ser gente, um grande abraco!

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