quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

RARIDADES COTIDIANAS

Eu sabia inconscientemente que ela estava me esperando no quarto. E porque ela era um tesão, o ritual do prazer em mim começou. Tirei os sapatos que faziam doer a panturrilha (há tempos tenho sustentado que os saltos de sapato social para os homens são uma tortura às panturrilhas, guardadas as proporções e resistências, igualzinho ao massacre às panturrilhas femininas. E por falar em salto, logo volto ao ritual do prazer, há que se dizer que o salto é a revelação da representação. É a expressão do nosso fatal destino de viver na escravidão do olhar alheio. Dizem que a alteridade é isto: identificar-se por meio do outro. Não sei se concordo. Provavelmente eu discorde porque discordar é essencial, pelo menos pra mim. O salto é a revelação da representação cotidiana. Do teatro de merda. O salto é um dos personagens e o teatro é todo o resto. Isso porque o salto é feito absolutamente PARA o outro, PARA o deleite do outro sobre aquilo que somos ou parecemos ser, PARA nosso próprio deleite pelo deleitamento alheio, enfim. Convenhamos: usar salto é uma merda. Nossa natureza não é feita pra andar sobre os tacos dos saltos. Não lembro de nenhum indígena ou aborígene australiano com apetrechos nos pés nos programas da Discorery, no máximo uma havaiana feita de casca de árvore. Fico imaginando o desprazer que as mulheres enfrentam tendo que se equilibrar naquela porcaria de salto agulha. Os nossos são fichinha perto do delas. Pobres mulheres).

Tirei os sapatos com o salto de merda. Os pés precisavam desaguar o sangue acumulado. Existe uma overdose dos pés quando ficamos mais de 16 horas sem levantar os pés acima da linha da cintura. Os meus estavam a mais de 16 horas no campo de batalha. O alívio maior foi quando tirei as meias e senti o frescor do piso gelado na palma do pé (a palma parece uma palavra-propriedade da mão...).

 Que delícia aquela temperatura menor que a do meu pé no meu pé. Tirei a camisa, todos aqueles botões inúteis. Três botões resolveriam, mas enfiam uns 12. (fui até o quarto pra contar quantos botões têm nas camisas: são em média 7 ou 8 em cada camisa!) Inútil. Um velcro resolveria. A camisa estava com o colarinho podre de sujo, mas a faxineira viria logo. Grande faxineira. A Marina é a minha nova faxineira, e as coisas andam mais limpas por aqui. A outra faxineira era porca e, se eu não esqueci em algum lugar que não lembre, deve ter levado umas camisetas minhas que sumiram do armário.

Tirei a calça e aquela a cinta desconfortável. Minha barriga era escrava daquela cinta. Pobre da minha barriga, louca pra ficar à vontade, toda projetada pra frente. E aquela cinta infernal apertando as minhas vísceras cheias de pulsão de vida e expansão. Senti fome mas como a sede era maior resolvi beber e deixar a comida de lado. Enchi um copo de uísque com vinho branco. Lembrei do meu pai que ia dizer que o gosto do vinho muda de acordo com o copo em que se beba. Não importa. É uma bobagem. O gosto é o mesmo. E o vinho bebido no copo “errado” era acrescido com o sabor da subversão, que é delicioso. Com o copo na mão, liguei a vitrola que ganhei do meu vô com um LP dos Beatles que é uma raridade. Aconselho as músicas I’m the walrus e I’m only sleeping. Walrus é um monstro marinho, provável que o Paul estivesse chapado quando escreveu a música.

Tirei aquela cueca de dois dias e, com o copo, fui pro banho. Enquanto isso ela me esperava no quarto, deliciosa. Liguei uma luz azul e desliguei todo as luzes da casa. Ela gosta desse clima nublado antes do nosso encontro de peles. De peles limpas e peladas. Limpos e pelados é bom demais. A chance de dar errado é reduzidíssima. E ela sempre estava limpa, sempre à mim disposta. Nosso sexo dependia de mim, apenas de mim, que nos últimos dias andava ocupado demais com coisas de menos. Tomei o banho em meio a uns tragos de vinho branco.

Quando sai do banho, o desejo se expandiu em mim com ares vulcânicos. Fui até a cozinha e calibrei o copo de uísque com vinho, até o gargalo. A ponto de ter que chupar com o beiço o vinho que cairia pelo caminho. Juntei o tapete do corredor e o coloquei no quarto em que ela estava nua, à minha espera. Em cima do tapete coloquei a cadeira. Seria ali, em cima da cadeira. Nos sentiríamos ali, na cadeira que repousava no conforto do tapete do corredor emprestado ao quarto. Nos abraçaríamos ali mesmo. Unindo nossos breus. E eu estava quase lá, nu com os meus desejos.

Vesti um calção surrado que ganhei a muitos anos da minha mãe, eu precisava me sentir confortável, à vontade. Só assim é possível chegar ao maior prazer possível: estando tranquilão. Coloquei um chapéu panamá que me deixou como uma mistura de piada sem graça com anti-sexy simbol exótico. Aquela barriga indecente para um cara de 27 anos, o calção azul de algodão surrado, e o chapéu absolutamente ridículo para a ocasião. Juntei as roupas sujas. A cueca com cheiro de cú. As meias com cheiro de cheetos lua. O sovaco com cheiro de sovaco NIVEA. Depois troquei o lado do LP dos Beatles. Nesse lado tocou Penny Lane que é, se não me falha a memória, o clássico da faixa de segurança.

Quis ter a certeza de que a música não pararia enquanto eu estivesse com ela no quarto. Busquei o ventilador na sala para que o fogo não nos incendiasse. O fogo do verão infernal do Brasil tropical e infernal quando é verão. Liguei a luz azul da calma e o notebook na tomada. Sentei na cadeira. Ela estava ao meu redor. Pensei em tocar uma punheta. Mas cogitei que depois de encontrá-la seria melhor. Senti seus lábios no rosto quando ela se apresentou nua, ela, a escrivinhação, minha amante. Talvez a punheta fique pra depois. Depois que eu terminar de escrever essa porcaria a quem teve a sorte de poder ler pra entender que o ser humano é apenas um espelho que quer se sentir espelho quando alguém para na sua frente, se a palavra pra isso for ÚTIL, que assim seja. Talvez os caras da alteridade estejam certos.

5 comentários:

  1. Hahahaha, essa porcaria, como disse o amigo - é muito boa. "meias com cheiro de cheetos lua" e o copo "errado" - hahahaha. mto bom

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  2. gargalhadas... é CA-LA-RO que acabaria assim, mas gostei de ler. Tu és ótimo! E a(s) moçoila(s) que não se apaixonaram por ti logo no primeiro parágrafo, caíram de amor no penúltimo! Certeza!
    E o copo muda SIM o gosto da bebida... não seja tão relaxado, tá?! Papi tem razão. Beijos!

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  3. Eu, como mulher, concordo plenamente que o salto é a revelação da representação cotidiana. Do teatro de merda. E questiono: o que o capitalismo fez conosco? Antes vivêssemos, todos os dias, usando havaianas feitas de casca de árvore, sem precisar representar ou apresentar nada para ninguém. E o que é pior: depois de um dia de salto, quantas “preliminares” para chegar ao prazer, he, he...

    Mas, tenho de dizer que amei ler as Raridades cotidianas que de porcaria não têm nada, merecendo apenas uma pequena observação: concordo plenamente com teu pai – sem dúvida o formato das taças influencia e muito no sabor do vinho. E, este conhecimento decorre dos cinco anos de presença efetiva na COFEV - Confraria Feminina do Espumante e do Vinho do Vale dos Sinos. E olhe que, são mais anos que nosso mestrado no Direito Público (saudades).

    Além do mais, calibrar até o gargalo é um pecado à degustação. Mas, tudo bem! Vocês homens são mesmo, sem qualquer dúvida, os responsáveis pelo nosso prazer, então, serão eternamente perdoados por irem sempre com tanta sede ao pote.
    Tua colega Noeli.

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  4. valeu galera, o cheetos lua é FATO né grande amigo Borba! rsss

    Lu e Noeli, vou apresentar vocês pro meu pai. "...calibrar até o gargalo é um pecado à degustação"

    e quem disse que eu queria degustar minha querida Noeli? eu queria era encher a cara mesmo! hahaha

    Saudade tua, das nossas aulas no mestrado e o monte de gargalhadas.
    beijo no coração de todos vocês

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