quarta-feira, 19 de outubro de 2011

OMELETE QUE NOS ESPERA NO PARAÍSO



A televisão como companheira é uma amante que ronca depois que goza. A TV fazia um zumbido chato. As costas no sofá estavam em desacordo com o ISO 9001, com a ABNT, com o InMetro. Eu era o homem natural, que tinha trabalhado o dia inteiro e que sentava resignado no sofá às dez da noite, sem saco pra ler, com preguiça de comer, sem vontade de tocar punheta, sem interesse no violão.

No canal de esportes, um campeonato de futebol que teria um campeão como em todos os anos. No canal de notícias, uma fraude na previdência, pessoas que tinham se aposentado por invalidez, mas tendo validez. Eles estavam dando cambalhotas ai, rindo, recebendo pra não fazer porra nenhuma (eu os invejava). O desequilíbrio dos trabalhadores que trabalham para que os vagabundos possam vagabundear, é o mesmo desequilíbrio do empresário que não faz porra nenhuma e tem cem funcionários que fazem força enquanto ele peida prazerosamente em alguma poltrona de avião rumo à um safári na África. O desequilíbrio é o mesmo de um muçulmano que pode ter cinco mulheres enquanto uma das cinco só pode ter o pau do muçulmano filho da puta. O desequilíbrio é o mesmo entre os que conseguem ter paz e os que vivem sob o manto do niilismo cético ou de surtos psicóticos. É trágico, sim, mas se não houvesse desequilíbrio, não estaríamos vivos, o que significa que não ganhamos nem o direito de reclamar.

O Galvão Bueno comentava a rodada do campeonato, odiado pelo Brasil inteiro, indiferente ao Brasil inteiro. Havia os seriados da TV americana com aqueles discos de risada que, por si só, tornavam tudo sem graça. Havia os filmes sessão pipoca, demorados, dublados, cansados. No GNT passava o “Superbonita”, um programa sobre beleza feminina feito com depoimentos de mulheres de plástico que diziem como era preciso levar a vida pra ter um rabo arrebitado e menos pelancas na barriga. O segredo é sempre o mesmo: comer grãos de bico, passar o dia remexendo o queijo da bunda numa academia narcísica, comer iogurte fibroso pra poder cagar direito – já que as mulheres vem geneticamente modificadas pra não cagar e, caso tudo isso desse errado, fazer uma plástica como se a mulher fosse um pedaço de carne de churrasco que o açougueiro corta com precisão burocrática para o que assado saia bem saboroso com a mistura da graxa e da musculatura bovina.

Essa ode à beleza é um dado importante do nosso tempo e, mesmo assim, é pouco testemunhado em relação aos seus verdadeiros porquês. A overdose do senso estético corporal é apenas um efeito de um tempo em que tudo se justifica pela materialização. Isso não tem a ver com o já detectado tempo do consumo ou o capitalismo selvagem combatido pelos marxistas que nunca leram Marx, mas sim, com a necessidade que temos de ver as coisas funcionando bem perto dos nossos olhos. Se você é um grande empresário, que abra uma empresa e tenha sucesso. Se você é um grande músico, deve gravar discos. Se você é uma grande puta, deve escrever livros de todas as trepadas e torcer pra que algum diretor grave um filme como o da Bruna Surfistinha. Se você é um grande pensador, que fale ou escreva. Se você resolver que deve ser gostosa, que seja gostosa de verdade e se instrumentalize, inclusive assistindo ao “Superbonita” do GNT.

Ainda sobre a ode ao corpo, que delimita um horizonte de sentido para a estética do guisado humano, é preciso detectar a máquina de ressentimento e culpa que nasce sempre que os modelos são instituídos no meio da zumbizada. No momento em que se institui o modelo – seja do corpo maçã, melancia, samabaia ou mesmo o modelo político, econômico e estrutural do “corpo coletivo” – cria-se instantaneamente uma máquina de produzir angústia.

As igrejas, nesse sentido, continuam sendo um lugar que promove uma “cegueira do bem”, já que afasta o pessoal dessa centrífuga que, no mais das vezes leva à depressão, ao suicídio ou à bebedeira generalizada. As igrejas também estavam na televisão, o pastor dizia: “meu irmão, minha irmã, é preciso força para sobreviver, é preciso boa vontade para ter fé em Jesus, o Jesus é senhor de toda a fortuna e dará a cada um o pedaço de pão que lhe couber.” O Polishop vendia o sonho americano dos jatos power de lavar sofás e carros enquanto os filhos dos gringos veem pornografia na internet. Um engravatado ensinava dano moral do consumidor na Rede Vida. Vendiam jóias, tapetes, esperanças. O mundo estava à venda, com promoções e boas condições de pagamento no cartão de crédito. Amanhã de manhã, todos estarão à venda, vendendo suas almas e suas paciências. O CQC testava os parlamentares com um quiz sobre o nome da namorada de não sei quem. Eu era uma testemunha do Brasil, do mundo, da grande fome de tudo, da ânsia, da rinite universal, da angústia, dos 150 canais de televisão, da minha fome. Com o passar do tempo percebo que o melhor é dizer apenas aquilo que os olhos veem, assim simplesmente, sem dizer nada ao cérebro que gosta de pensar, sem julgar sins e nãos, deixando a tarefa de valorar para alguém que ainda não nasceu. Senti fome. Não é pessimismo, mas uma omelete é um cocô ao contrário.

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