Estávamos todos no meu apartamento fumando uns cigarros, bebendo umas bebidas e escutando Billy Holliday na vitrola. Eu gostava de festas de verdade. Por festas de verdade entendo estar com pessoas que valham a pena do mundo, lugares pra sentar, música suportável e, claro, bebida. Meu corpo cansa de ser bípede nesses tumultos de gente jovem. Conjunção perfeita para a dança de viabilidade da vida neste rito contemporâneo em que poucas coisas se justificam fora da inconsciência - dos sonhos ao porre.
Eu já tava conhecido entre os vizinhos como o vizinho problema. Depois de um estágio da bebedeira, para o bêbado, a lei do silêncio não existe. A antilei é uma lei que todo dionisíaco conhece. Era sempre a mesma coisa: o porteiro tocava o interfone como porta-voz dos vizinhos incomodados e eu prometia o fim da farra. Mas, como mudo bastante de uma hora pra outra, acabava não cumprindo o combinado. Daí ele batia na porta e era um pouco mais dramático, dizia que os vizinhos não estavam conseguindo dormir, que o bebezinho da fulana isso, que a velha caquética do 8º andar aquilo. Esse bebezinho, quando nasceu – é bom que se diga pelo bem da justiça – urrava a noite toda. Parecia barulho de porco sendo carneado. Uma praga auditiva da madrugada. Não que o choro dele atrapalhasse meu sono, mas hoje que sou eu que torro a paciência dos pais dele, posso usar isso como argumento pra dizer que estamos quites. Se a criança é inconsciente de seu choro esganiçado, o mesmo pode-se dizer da música de um bêbado.
A festa ia bem, com uma boa música na vitrola envenenada que ganhei do meu vô. Rolava um papo de música retrô misturado com filosofia barata, autoajuda angelical e contingência dos mestres ascencionados que controlavam as galáxias... enfim, todas aquelas mentiras que parecem verdade quando a gente bebe. Como sempre, o interfone tocou e o porteiro disse que os vizinhos andavam bem descontentes com o barulho que o meu antro pocilguento produzia. Eu disse que a lei do silêncio tinha sido alterada naquela semana, que tinha passado das 22 para as 23 horas, o que significaria 40 minutos a mais de farra, caso minha mentira fosse considerada. O importante era ganhar uns minutos a mais pra que a gente pudesse tocar mais umas músicas no violão, já que a essas alturas tinhamos desistido da vitrola e passado pro estilo quem sabe (bem pouco) faz "ao vivo".
A escassez do êxtase fazia com que eu o protegesse como se fosse um filho recém nascido. Tem esse papo de que o êxtase é o prelúdio da agonia, mas é que meditar me dá uma agonia desgraçada, então melhor ficar no jogo-do-claro-escuro e respeitar minha natureza dual e descontente. A imposição de ser equilibrado desequilibra muita gente, então melhor prescindir do equilíbrio, afinal, a vida não é uma corda esticada entre dois arranha céus, não vamos cair em lugar nenhum pois já estamos em terra firme e todos completamente quebrados pela humanidade que nos pertence.
A vitrola deu lugar não só ao violão, mas também à gaita de boca e às percussões de improviso. O porteiro devia estar procurando a alteração da lei do silêncio no Google... A qualidade de um ouvido de bêbado é insuperável: toda música produzida por gente borracha é afinadíssima. Como todos estavam num porre federal, a música que a gente fazia era uma orquestra sinfônica do etilismo.
Tocamos umas músicas a mais e o porteiro logo tocou à porta. Era uma boa pessoa, se divertia com a subversão alheia, tinha salvação. Abri a porta e ofereci um gole à ele, que recusou, afinal o emprego exigia que ele não tomasse nada - uma injustiça. Ele deu uma espiada pela escotilha da porta, curiosíssimo, louco pra abandonar o emprego e encher a cara com o pessoal. A vizinha apareceu na escada, com a criança no colo pra dramatizar (coisa comum nas mulheres) e disse num tom áspero que, em linhas gerais, eu não era um cara muito legal. Prometi a ela que o barulho acabaria. Pensei na covardia do marido dela, mas pensei que aquilo era mesmo instinto maternal de preservação do sagrado sono da cria. O marido dela devia estar bebendo uma cerveja ou fuçando na internet, com vontade de comer alguma capa da Playboy, insatisfeito com a mulher que tinha ganho, além da dor de cabeça, o argumento do bebê pra dar evasivas antifoda.
Como eu não queria que chamassem a polícia, acabamos o sarau. Alguém disse que ia ligar pra um cara que jogava búzios em Porto Alegre e que passava todas as revelações ao consulente por telefone. Achei que essa pilantragem, por ser por telefone, era muita pilantragem. A consulta custava 50 reais. Declarei o cara como estelionatário por puro preconceito. O pessoal me contestou, eu era minoria, o único cético entre todos. Eu disse que o ceticismo me impedia de acreditar que um cara do outro lado do telefone pudesse dizer alguma coisa que prestasse sobre a minha vida ou sobre o acaso do futuro incerto e prodigioso. Alguém disse que os búzios eram uma coisa fortíssima, sem explicar porque. Resolvi que devia pagar pra ver antes de dizer que não funcionava. Mas como meu telefone foi cortado porque as companhias telefônicas se tornaram as maiores batedoras de carteira do mundo global, melhor esperar pra ver se minha sorte melhora.
Ô, "cancioneiro popular", depois veja no meu blog o post que dediquei a ti e ao teu dom para a música! http://milfacesdeluiza.blogspot.com/2011/10/o-carrasco-do-acampamento.html
ResponderExcluirBjus!!!
Ah, o vinho e a cheesecake estavam ótimos!!! rs