Borra de Frida Kahlo |
I
A tristeza de sentir a morte
não é porque não há mais vida naquilo que morreu.
O que dói nas mortes é o abandono.
É um amigo de infância dos anos 80 que vai morar longe,
num tempo sem email, sem facebook,
e, claro, sem mais futebol de rua numa rua sem saída.
A morte em quem vive, não morre,
mas deixa sensações.
Sensações bem vivas - diga-se de passagem.
Às vezes mais vivas que quando, antes, morte morrida não havia.
Quando existe morte entre coisas que se acham vivas,
a covardia vence a coragem.
Os tetos das casas são embustes que impedem a inundação
de pares supostamente vivos que precisariam morrer afogados.
Ser covarde é morrer aos poucos,
é tumor que contamina as células da vida,
sem cura, quimioterapia ou cirurgia espiritual.
Essa é a morte das coisas que têm medo de morrer...
Quem não tem medo de alguma mortezinha por aí?
II
Na morte “tradicional”,
dos velórios,
das coroas de flores,
dos padres embebidos em vinho
e todos aqueles desinteressados no defunto
– mas sempre ocupadíssimos com os protocolos;
existe a tristeza do desencontro, não a tristeza da morte.
A tristeza do desencontro é uma tristeza de não saber.
Não saber,
é a dor mais dor mais aguda que uma alma pode sentir,
mais que qualquer morte morrida, assim "tradicionalmente".
Não saber é a necessidade de acordar para a vida,
mas nunca deixará de ser o abismo sepulcral do prelúdio do sono,
este que é terapia diária da morte,
acordo tácito entre o é e o vir-a-ser,
ponte para o quê já se sabe acaso,
mais uma vez,
a covardia seja Senhora.
III
Matar é uma profissão de quem tem projetos de vida assassinos.
Assassinar a própria vida é suicídio do renascimento.
Integração das sombras sombrias e uivantes como os corvos do cinema.
Matar projetos exige técnica:
a técnica de encontrar uma cova confortável.
Quem quer estar disponível àquelas hienas sorridentes do Discovery?
Uma cova é o oco de esperança que salva,
é possibilidade de reencontrar amigos que já morreram.
Morrer é nostálgico, é vintage, é cult, é um medo danado.
Todo “se e quando” é um samba triste de lamentação,
um veneno insuportável a todo espírito do novo mundo.
Contemplar a paisagem?
Mas que porra é essa de contemplar paisagem!
Contemplar é tarefa de gente morta que pensa que vive.
Viver é viver no meio do sangue da placenta,
da dor do parto, da dor da buceta da mãe.
Não há como viver sem ir nascendo.
As casas de campo têm bosta de vaca
misturada à floresta perfumada.
O cartão postal dos cânions não revela o risco do abismo.
O mar só é bom onde não vivem os monstros marinhos.
IV
Existir é ser lançado como flecha.
A flecha tem uma metafísica confusa entre o alvo e seu caminho no ar.
Se é o ponto vermelho minúsculo nosso destino,
que o arqueiro aumente o grau dos óculos míopes.
Se Deus é esse arqueiro, é certo que é um bebedor contumaz.
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