quinta-feira, 27 de outubro de 2011

GERÚNDIO



A vida,
se fosse um gerúndio,
estaria sempre acontecendo.

As pessoas,
caminhando pelas calçadas,
vão acontecendo.
Umas andam em trios,
outras andam sozinhas,
mas a maioria anda em pares.
Umas vão acontecendo de mãos dados,
outras não.

Olham pra dentro das padarias.
É preciso atender à função dos olhos e olhar pra qualquer lugar...
Ter sentidos e não usá-los?
Porque ser carne, então?
Querem os doces que estão à mostra,
como as moscas que não estão à venda.
Olham também as vitrines e, através delas,
querem uma blusa em promoção.
Olham os manequins de caras cortadas pela metade.
Esses manequins são tão estranhamente vivos.
Eles se identificam com os que andam pelas calçadas,
em grande parte, no quesito palidez.
(ou será o contrário...?)
Uma vez um amigo contou
que trepava com uma manequim que se chamava Preta.
Tem muita gente trepando com manequim pensando que é gente humana.

Nas farmácias não existem vitrines, mas soluções.
Remédios não têm vitrine porque são necessidade, dizem.
As soluções dos remédios sem vitrine querem matar as dores.
Sem dor não haveria nenhuma farmácia.
E elas são tantas por aí que até ficamos felizes de ter uma perto de casa.
Farmácias por perto valorizam os imóveis.
Dado fatídico de que estamos doendo é o excesso de farmácias.

O excesso de soluções, porém, nos afasta da morte.
Quando as curas eram poucas, a morte sempre rondava o berço.
Quando as curas eram poucas, morrer era normal como um peido.
O excesso de curas traz consigo uma culpa pela morte.
Como é que vou me permitir a morte
com todo esse aparato que existe pra me manter vivo? - indagam-se.

Se a morte é uma culpa em quem vive,
viver é um excesso de covardia?
Eu não sei se sou louco porque não sei saber as coisas.
Só sei a partir do que me descrevo inutilmente senão à mim.
Assim me descrevo sozinho,
no meio de pessoas sozinhas e de pessoas que andam em trios.
Mas a maioria delas anda em pares,
sendo elas por serem também o outro que lhes oferece uma mão inconfiável.
Estimo que boa parte dos solitários estejam enganados:
a salvação não está em outro solitário qualquer.
Estimo que boa parte dos trios esteja querendo se livrar dos empata-fodas.
Estimo que existem poucos casais que vivem em três,
como a Vicki, a Cristina e o Javier Barden.
A Scarlet nos enche de uma boa dose de esperança,
assim como as bundas novas.

Na calçada uma índia fumava um cachimbo
e segurava uma criança no colo
e vendia artesanatos inúteis e sem graça.
As pessoas iam acontecendo no passo metódico dos meus olhos.
Um pai que passava disse ao filho:
“...então o pai compra mais um presente se você me der um beijo”.
Os afetos também valem uns centavos, afinal, e nisso não há mal.

Dos cortes do mundo pingam moedas.
Cortando cebola esses dias, cortei um dedo.
O sangue manchou meu macarrão de bolonhesa humana.
Só que ainda pingo sangue no gerúndio, assim, pingando, pingando, pingando.
Somos uma goteira numa casa velha de teto furado que molha os lençóis.
E estamos num ônibus lata-velha que nos leva pro norte de lugar nenhum.
É um ônibus pinga-pinga que nos leva pingando.
Tudo moroso como caminhar numa piscina.

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