domingo, 12 de dezembro de 2010

ovo choco, cabeça rachada



Ou o dia nos ganha ou ganhamos o dia. Ganhei um dos dias da semana que passou. Desde já vou avisando que provavelmente você se decepcione com a razão pela qual ganhei o dia. Os nossos motivos nunca interessam tanto aos outros quanto a nós mesmos. É por isso que os psicólogos têm um futuro promissor. Fazem de conta que se interessam pelas nossas picuinhas e, com paciência, a coisa acaba dando certo, que é quando percebemos, depois de gastar uma dinheirama, que é o “certo” o grande vilão filho da puta da história. O faz de conta dos psicólogos funciona: a ficção, quando é tanta, vira realidade. Acredito no poder dos psicólogos. Acredito que acreditar ajuda a anestesiar as dores da vida, mesmo que eu acredite em pouquíssimas coisas. Acreditar em alguma coisa, qualquer coisa: é isso que nos salva. Tenho acreditado nas sensações, elas estão se tornando os deuses da minha pseudoreligião politeísta. A religião das sensações busca o simples estar bem, um estado “oqueizão”, numa boa, nem feliz nem triste. Sinto minha crença na pele, mas, como meus ventos ventam para todos os lados, logo devo mudar de crença. Viver sem acreditar é coisa de macho. É preciso ter três testículos pra viver bem sem acreditar em porra nenhuma.

Balelas sobre psicologia e religião à parte, voltemos ao mundo real. No mundo real existem os estupradores da linguagem. Sim, da linguagem, não do idioma. São coisas diferentes. Estuprar o idioma não é tão feio assim quando se tem consciência do estupro. Os poetas sabem que estupram o idioma e as regras de sintaxe. Por outro lado, estuprar o idioma sem consciência, é sinal de falta de estudo, simplesmente. Em geral, a culpa, se é que alguém tem alguma, pode ser do vagabundo que não gosta de estudar ou do sistema de merda que não dá condições para as pessoas, que não são tão vagabundas, estudar como deveriam. Já estuprar a linguagem é fazer mal uso da possibilidade de expressão. Foi um estupro de linguagem que presenciei.

Eu tava sentado na sala da OAB, praticando aquelas burocracias “burrocráticas”. Meu grau de paciência é baixo com coisas burocráticas. Por isso que minha paciência é pouca com o mundo e seus trâmites insuportáveis. Hoje em dia, pedir uma pizza pelo telefone se tornou um tormento. Esses dias - excessos por minha conta - a coisa foi mais ou menos assim:

- Pizzaria, boa noite
- Boa noite, eu quero uma pizza de 4 queijos
- O senhor quer tamanho brotinho maroto, brotinho, pequena, média, grande, família ou cavalar?
- Brotinho maroto?...
- Sim, é uma novidade que estamos lançando para pessoas com anorexia, para quem come muito pouco.
- Pode ser essa então, respondi.
- O senhor quer com borda recheada?
- Sim
- Recheada com catupiry, cheddar, requeijão do cabrito do Himalaia ou o raio que o parta?

A essas alturas desisti da pizza e fui tomar um vinho. Mas voltando à sala da OAB. Sentou um doutor do meu lado, todo engravatado, todo advogado-sou-importante-porque-passei-na-porra-do-exame-da-oab. Esses caras apertam bem o nó da gravata pra justificar o nariz empinado. Deixam a barba crescida pra transparecer que são mais velhos e mais experientes do que realmente são. Forjam-se para o mundo e suas necessidades descabidas. Ele me cumprimentou engrossando a voz:

- Bom dia doutor – quando o cara engrossa a voz e chama qualquer um de doutor, é um sinal que precisa de um outro “doutor” como resposta. Massageei o ego dele e respondi repetindo: “bom dia doutor”. Esses caras, se não forem ladrões, nem fedem, nem cheiram, nem servem pra nada além de esperar o final de semana e trepar metodicamente com a mulher. Uma vida previsivelmente desgraçada. Ainda bem que eles não sabem. Educadamente, o tal doutor perguntou para a funcionária da OAB se podia usar o computador. Sentou a bunda burguesa na cadeira e questionou a menina:

- Querida, para imprimir, preciso de papel?
- Não, o senhor pode desabotoar a camisa e colocar na impressora no lugar das folhas, pensei.

Anos e anos sentando o cú numa carteira de colégio. Mais 5 anos esquentando a cadeira da faculdade e o cara faz uma pergunta imbecil dessas. E há quem se orgulhe de ser advogado!

Voltei pra casa pra tirar o terno. Fiquei envergonhado de usar um. Ele também não me seria mais útil no dia. É uma fantasia desconfortável de se usar. Encontrei a síndica do meu edifício na garagem. Pensei “lá vem essa mala encher o meu saco”. Os síndicos têm sempre o mesmo perfil: ou são aposentados ou são estelionatários. Ou os dois. Ela é aposentada e já ouvi reclamações sobre os altos custos das reformas que ela faz no edifício. Os aposentados vivem numa boa, não têm horário pra nada. A merda é que acham que todo o mundo está aposentado.

- Oi Paulo, deixei o recado da nossa reunião de condomínio embaixo da porta do teu apartamento. Chegaste a ver?
- Sim
- Vai ser na segunda, já que nos outros dias você disse que tem compromisso.
- Pois é dona Vera, justamente nessa segunda vou recuperar uma aula e não vou poder participar (eu usava sempre a mesma mentira pra ver se ela notava que eu DE FATO não queria participar de nada. Mas não adiantava, ela sempre pregava uma lição de moral em mim)
- Acho importante que você participe, afinal, vamos definir sobre as infiltrações na garagem, sobre os horários dos porteiros, sobre o uso do fundo de reserva e outras pendências...
- Pois é dona Vera, infelizmente ando sem tempo. E ainda aparecem essas aulas imprevistas. Na próxima vou fazer de tudo pra comparecer (mentira).
- É importante você comparecer, é bom termos mentes jovens participando, com a cabeça mais arejada (fiquei imaginando aquela velharada discutindo picuinhas, aquele caos sem propósito). Além de tudo você é um advogado (culpa da gravata) que pode nos ajudar a resolver as pendências com os inadimplentes.
- O pessoal é complicado né dona Vera, não pagam as contas.
- Sim, e blá blá blá...

Ela ficou me alugando por um tempo, depois consegui me safar. Coisa mais chata. Sempre acontece a mesma coisa. Ela marca as reuniões de condomínio (devem ser umas 2 por mês, nunca vi tanta reunião de condomínio), eu não apareço, e quando nos encontramos é esse o papo de sempre. Ela cobrando gentilmente minha presença e eu inventando uma lorota qualquer. Ela não percebeu ainda que eu NÃO VOU participar de reunião nenhuma. Não bastasse isso ser um saco, a velha marca as reuniões às 8:00 do sábado. Puta merda! Ela deve ficar sozinha no salão de festas nos sábados de manhã, falando com as paredes. Ninguém fora os aposentados é louco de participar disso num sábado de manhã.

Voltei ao trabalho e lá fiquei até o final da tarde. Quando sai, a chuva chovia que só ela. Chovia sinceramente. Em algumas ocasiões a chuva cai sincera. A chuva é sincera quando não é garoa nem temporal. Ela cai num ritmo de chuva, uma chuva de intensidade média. Fiz umas quadras a pé, sem correr. Deixei os pingos tomarem conta dos meus passos. Medo de se molhar? Devo ter, porque sempre que tenho que enfrentar a chuva, corro para me refugiar nas marquises. Dessa vez não corri. Tudo bem que sou sedentário e sempre que dá pra evitar o desgaste, eu evito, mas, dessa vez, não deixei de correr por preguiça, mas porque queria saborear a chuva molhando a roupa, a pele, o cabelo. Andamos com medo até da água! Fiquei sentindo a chuva me lamber, sensação agradável.

Pensei em caminhar pelado na praia sentindo a chuva. Seria uma boa maneira de sentir a liberdade. Mas como eu ia ser preso achei melhor desistir. Pensei em ir de sunga. Também desisti. Eu vestindo uma sunga era uma cena de filme de terror que ninguém mereceria ser obrigado a ver. Além disso eu tinha mais trabalho pela frente, tinha que dar a última aula do ano. Falei com a turma, discutimos, falamos mal do direito, falamos mal do mundo. Falamos bem do mundo. Falamos merdas. Rimos. As aulas eram agradáveis. No final, um dos alunos me disse:

- Eu decidi: vou abandonar o direito. A culpa é tua
- Ótimo

Meu dia tinha sido útil. Se sentir útil para os outros é muito bom. Gratificante. Perceber o que pertence ou não a nós mesmos é encontrar tesouros.

3 comentários:

  1. Coitadinhos dos seus alunos.....
    OBS: Vou continuar estudando direito...
    A culpa é tua....

    Abraços tricolores, e ótima semana!!

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  2. bunda burguesaa, muahahahhaha!!!

    evitar o desgaste = evitar a fadiga = Jaiminho (o carteiro do Chaves).
    ok, já estou em clima de férias :D

    bjão, Paulo ;D

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  3. Credo Samanta, até parece que sou mal!
    Mas obrigado pelo comentário, fico feliz quando cada um consegue encontrar seu próporio caminho. Se o direito é o teu, perfeito.

    hhhahahahaha
    que bela lembrança do Jaiminho Gra!
    Será que o Chaves ainda passa na TV?
    beijo

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