Em outro tribunal kafkaniano da vida o sentenciaram como Sonhador. E decidiu-se no escuro. Na presença única dos grilos a tilintar seus grunhidos agudos, sem as lentes das câmeras da imprensa local nem o empuxo moral das platéias. Sem fontes bem definidas como mediatas ou imediatas, sem gravação eletrônica, taquigráfica ou estenotipa para deixar rastros para futuras investigações e possibilidades de recurso à instâncias que provavelmente nem haviam. A nosso incompreendido Sonhador, diversamente de K., sequer havia um julgador despreparado para lhe apertar a mão suada ao final da condenação, afinal, não há relatos na história da civilização de que existam grilos capazes de apertar a mão como forma de apaziguar o coração de um recém condenado. A síncope doce dos projetos de um sonhador era suave como a morte por afogamento, essa que especulam os vivos ser a melhor – estranhamente ninguém nunca morreram por afogamento e voltou para contar se é deveras terna a morte quando os pulmões se enchem de água. Como aos vivos lhes apraz lançar sentenças especulativas de coisas que não fazem a menor idéia. Essa é uma prática conhecida e corrente nos tribunais da vida, os mesmos que nos moldes dessa passagem capitular condenaram nosso Sonhador.
Não sabia se seus encontros com as imagens oníricas se tornariam apenas memória ou se poderia seguir sonhando seus sonhos sempre. Afinal, o status de sonhador conferido a Sonhador era mera imposição nominativa ou aquela condenação teria a extensão perniciosa de lhe apagar, como que num passe de mágica, as aventuras surrealistas que experimentava nos seus sonhos e seus encantados mistérios? Rumando cabisbaixo pelas calçadas úmidas da sua grande cidade, essa sua indagação interior era espinhenta memória daquele julgamento que julgava ele ser injusto. Certo ou errado, moral ou imoral, justo ou injusto, o fato é que levava a ígnea estampa de sonhador gravada como uma tatuagem na pele da cara; e se via, mesmo sem alcançar sua imagem no espelho quebrado do banheiro de seu apartamento medíocre aos olhos dos medíocres, um condenado pelo tempo presente e atualizado da história. Vivia no seu tempo, e a isso também estava condenado. O presente – que sempre houve quem suspeitasse não se tratar de um tempo – era agora uma conspiração contra suas sadias imagens oníricas. Acordar era o lamento consciente do passado recente de flores e versos tão frescos como a saída de um banho com um amor. O caro leitor já percebeu o estado de graça depois de um banho de amor? Sim, um banho que se tem com quem se ama é uma comunhão graciosa entre uma alma feita de duas gentes e uma enxurrada de água. Mas nosso condenado percebia que sua atual debilidade era, por si só, frágil. Na primeira noite após sua taxação, fechou os olhos e esperou sem saber a profundidade daquilo que os cientistas do sono – provavelmente estadunidenses – chamavam de REM, esmiuçado como rapid eye moviment. Nesse estado do sono em que os olhos se desnorteiam é que Sonhador poderia alcançar o zênite dos delírios noturnos. Cruzou a parábola do sono durante toda a noite e de manhã, vendo-se acordado e com os olhos cheios d’água, havia percebido que sua noite passara em negro. Com nada havia sonhado, posto que o destino lhe havia concedido a graça de sempre lembrar com clareza dos próprios sonhos.
Imaginou acordado que lhe haviam roubado a sensibilidade noturna. Maculou a raça dos grilos e gafanhotos, lhe parecia que também estes tilintavam fugidios na declaração de sua sentença. Tinha a sensibilidade como rumo; e a ausência de sua capacidade noturna de sentir amargava o fundinho de sua garganta. Pensava que se realmente se confirmasse a decisão, não poderia mais arder noturnamente. Afinal, como sentir sem arder? As sentenças imperceptíveis em antanho eram sentidas, igual aos espíritos que nos rondam, esses que nunca vemos com contornos definidos, mas que sentimos a presença no calafrio do pescoço ou no relance do olhar. O Sonhador condenado deveria agora fazer-se acordado, recuperar seus prazer com os olhos abertos. Abandonar a ideia que tinha de que a clareza dos olhos abertos confundiam as imagens da vida. Era seguro de que só podia ver bem se olhasse suas interioridades. Lembrava o exato e profícuo Saint-Exupéry, regalado na infância por uma tia gorda que trocava os livros por uma fila quindins bem passados, quando dizia nas suas linhas que só se podia ver bem com o coração. Se o essencial é invisível, mesmo condenado pelos tribunais da mediocridade, o homem condenado, então, absolvia-se.
(CONTINUA...)
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