domingo, 28 de outubro de 2012

ONDE NOS DEIXARÁ O VAGÃO DESTE TEMPO?


          Entre a modernidade, que bem não sabemos se terminou, e o que virá, há este grande entre ato histórico em que nos encontramos. Chamá-lo de pós-modernidade, de contemporaneidade ou de modernidade líquida, não afasta qualquer uma das angústias próprias de nosso tempo. E talvez elas, as angústias, sejam efetivamente o grande cheiro deste vagão que nos leva para sabe-se lá. A angústia, sensação particular de toda experiência com o inconcluso, é reação de quem habita esse limbo histórico que, antes de separar dois grandes tempos, reúne gerações e conceitos que são opostos entre si, que esperam ajuste a partir do atrito e que pretendem fazer do paradoxo objeto da calma. Dos modernos, cônscios da onipotência da razão como instrumento de institucionalização da sociedade, ao tribalismo pós-modernos e sua crença inconjunta de que a máscara é, antes de aparência, a essência apreensível por meio do fenômeno que nos chega aos sentidos; este tempo, como todos, guarda a resistência do que passou e a potência do que virá.

            A transição é anacrônica porque faz estranha sinergia entre o antigo, que corteja o fundamento e a solidez, e o atual, que faz ode ao efêmero, ao consumo de descarte, ao excesso que os olhos – e apenas os olhos – podem ver.  Uma realidade que faz do presenteísmo e do imediatismo protagonistas do ato teatral que passa diante de nossos olhos que ainda se acostumam à mudança de intensidade (e intenção...) da luz que podem ver.

            O processo de secularização da vida humana, que fez do si-mesmo eixo de sentido primeiro, é a declaração de que as referências externas como a ciência, a religião ou a “providência cósmica”, deixaram de orientar e dar sentido à vida humana. Se a modernidade cultuou o planejamento, a organização, a sistematização e a ordem – marcas por excelência da predominância do masculino na cultura; a pós-modernidade é o prelúdio de um tempo voltado para a cooperação, para a ética comunitária, para o compartilhamento. Sem mais contar com as “certezas” da razão, se desenha uma sociedade da suspeita, que deve, antes de tudo, negar qualquer proposta de unidade ou totalidade. O medo do concluso (o número de divórcios e a esquizofrênica aceleração das postagens no facebook, para ficar apenas nesses exemplos, são dados óbvios) revela esta recusa de sistemas fechados, dogmáticos e autorreferentes, que desde sempre querem responder a todas as perguntas que eles mesmos formulam.

            A certeza de que efetivamente não nos conhecemos e de que não podemos repassar qualquer conhecimento ao outro, como refere o filósofo francês Derrida, faz desse tempo uma reedição atualizada da antiga ética estóica, que de algum modo submetia a vida humana aos caprichos da natureza e fazia do ser humano títere do destino. Se a crença nas forças naturais obrigava o homem a aceitar humildemente a natureza para encontrar a paz, é justamente essa reedição da humildade – não mais a partir de um sentido externo, mas sim interior – que desponta no horizonte do tempo que vem. É essa atitude de humildade, acima de tudo, que marca a passagem da modernidade para o que ainda virá. A palavra humildade tem origem no latim – húmus, que significa terra. É respeitando a terra, esteja ela ou não adequada a toda nossa ânsia de idelização, que daremos o primeiro passo em direção à humildade que este tempo requererá. Esta nova humildade nasce da inevitável interrogação personalíssima que cada um deve fazer a si-mesmo, tendo como ponto de partida a desconstrução de todo e qualquer sistema metafísico de sentido, copiando a mecânica nietzschiana de tijolar toda a verdade pré-dada.

            O quase-silêncio provocado pelo projeto moderno de institucionalização, que fala a partir de seus próprios significados e significantes, dá lugar à necessidade de comunicação, já que o relativismo pós-moderno tem como efeito o estabelecimento de laços e relações. Mesmo sendo âncora da comunicação, o relativismo também é promotor da angústia, já que furta os lugares seguros (falsamente) legados pela modernidade, tornando-os incapazes de dizer o que é bom, justo, verdadeiro – preocupação ocidental desde a semente filosófica de raiz socrático-platônica... A angústia é a cruz desse tempo em que ainda não somos o novo e também continuamos carregando o defunto do passado nas costas, sem saber direito onde enterrá-lo. A pós-modernidade é uma travessia neste deserto social e individual que nos acena falsas miragens de água por conta do desejo do imediato e do reino do aleatório. Um tempo em que mais estamos do que somos, e que, quando somos alguma coisa, deixamos de ser todo o resto...

            Se, por um lado, contemporaneamente a identificação com a tribo social é facilitada pela emersão pública da pluralidade, por outro, a constituição da identidade é árdua tarefa, já que a dúvida eterna da escolha chacina a confiança e a certeza necessárias para que se abandone o assujeitamento e para que se constitua um sujeito com alguma fidelidade a si-mesmo.

            As questões relativas a construção da subjetividade na pós-modernidade dependem da análise do grande sintoma da angústia e da vontade de anunciações dentro de uma época que, mesmo vivida, segue sem tradução. Resolvemos nossa localização com qualquer GPS, mas não sabemos o rumo do nosso próprio encontro. A cartografia e a anunciação externa não são as nossas porque partem do embusteiro ambiente da heteronomia. Uma sociedade cujo constructo é o capitalismo mecânico, que nos molda como roldanas de uma grande máquina impostora da culpa que vem do “dever” externo não satisfeito. A pós-modernidade é um tempo de tentativa de construção de uma subjetividade que quer ser. Os cânones impostos são construídos na dimensão da heteronomia, enquanto nosso self recôndito grita pela promoção de seu desejo de autonomia. Uma vitória sobre a heteronomia é tudo que podemos buscar nesse tempo que requererá, sobretudo, autopesquisa, afinal, o “pai” simbólico precisa e precisará ser morto. Um ente que se reconhece sem as algemas da visão e sem a necessidade do grande espelho do mundo. Um narciso humilde que se vê mesmo de olhos fechados – eis o horizonte de nossa construção.

            Se é verdade que precisamos superar a heteronomia e as imposturas desse tempo, também é incontornável a colocação do outro como único capaz de anunciar nossa subjetividade. A construção do que a psicologia analítica de Carl Jung chama de self ou de integridade psíquica, depende exclusivamente da anunciação alheia que pulsa em todo exercício de alteridade. Nosso self é fruto de elaborações nos quais não somos agentes tão atuantes como gostaríamos de ser. Não nos conhecemos. Temos acessos mínimos. Temos acesso ao mínimo. A nós mesmos somos fantasmas nesse tempo de perguntas e respostas reticentes. Sendo o outro o constituidor de nossa reserva selvagem, somos o que não podemos acessar... O outro é então uma porta, e a chave para essa porta é o encontro. Seremos para sempre os engenheiros das chaves que abrirão as portas que estão escondidas em nós mesmos. A pós-modernidade é basicamente um projeto de construção de subjetividade que, a partir do outro, deve servir de impulso para a elaboração dos traçados da autonomia de cada um e de superação de toda e qualquer submissão.

            É com essas lentes que Michel Onfray, no livro A Política do Rebelde, vê o trem deste tempo e nosso projeto de construção da autonomia a partir da insubmissão: “...a individualidade é o que há de comum aos seres, qualquer que seja seu sexo, sua idade, seu passado....[por sua vez] o sujeito se define em relação a instituição que o permite, daí a distinção entre os bons e maus sujeitos, os brilhantes e os medíocres, ou seja, aqueles que aceitam o princípio da submissão....a pessoa [por sua vez] lembra que a palavra procede da máscara usada em cena....a metáfora barroca do teatro, a vida como um sonho ou um romance, a necessidade do ardil ou da hipocrisia, do jogo social que subentende a pessoa teatral....resta formular as condições de possibilidade de um individualismo que não seja um egoísmo”.  A autonomia que a pós-modernidade reclama de todos já estava lindamente fraseada em Nietzsche: “Para mim é tão odioso seguir quanto guiar”.

            Não receber do outro, mas encontrar o outro: é este nosso tema de casa enquanto vemos a paisagem que passa neste vagão que, em curva, não nos permite ver o destino. 

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