quinta-feira, 28 de outubro de 2010

O brejo da sensibilidade



A aula se desenrolava de acordo com o estabelecido. Naquele papo de fim da idade média e outros assuntos médios. Somos domesticados pelos roteiros, pelos métodos, pelos ritos. Nascer, crescer, morrer. Aprender, trabalhar, morrer. Apaixonar, amar, morrer. No fim a gente morre, e vive a vida tentando esquecer esse orgasmo final da existência, inventando significações maiorais que são do tamanho das formigas. E, à parte a excepcionalidade dos geniosos, que alteram os ciclos preestabelecidos da vida com a força de um vulcão e por isso mesmo naturalmente; o grande resto que também tem um cérebro com duas orelhas guardiãs sofre pontiagudamente para quebrar esses ciclos arquetípicos.

Não que a culpa por subverter não tenha me habitado os nervos, mas resolvi esquecer toda a história medieval, todo aquele cuidado delicado de estabelecer pontos de contato entre os eventos da história e me permitir a criação, dentro da sala de aula, de um ambiente terapêutico. De uma fusão de angústias entre professor e alunos, entre professores e aluno. Um grande divã, que de jurídico não tinha nada e de histórico, apenas os rastros benévolos da semana de cada um. Deixei para trás os glosadores e as outras escolas modernas do Direito que me esperavam no quadro e provoquei a todos com duas perguntas: Do que você consegue abrir mão? Qual o momento de maior bem estar durante a última semana?

A turma, que é excepcional, reagiu. Um a um foram materializando, com a possibilidade da linguagem e dentro de um ambiente sem imposições, suas razões, suas dores, suas sensibilidades encarceradas no porão dos seus sentidos. Libertando o eu antes envolto em um mar de falsas crendices verdadeiras. Se permitindo reflexões do tipo: “preciso trabalhar para...?”, “qual o combustível dos meus momentos de bem estar...?”, “gosto realmente de quando...?”, “preciso ser rico porque...?”, “estou trabalhando dois turnos e estudando toda a noite porque...?”

E a relação entre as coisas que buscamos cotidianamente com aquilo que nos alegra foi de uma falta de relação absurda. Desconexões! Pontos desconectados! É no mínimo interessante pensar que o que nos deixa bem não tem nada a ver com aquilo que fazemos durante a maior parte do dia, no transcurso moroso dos ponteiros do relógio da vida. As buscas, do consumo ao excesso de prazeres, seriam então uma invenção para esquecer a morte e o niilismo da vida?

Quase todos disseram que podiam prescindir de coisas materiais como o celular, o carro. Até do marido abriram mão! E com toda a seriedade. Quem disse não queria fazer rir, falou sério. E percebi o ambiente mágico de grande cumplicidade que conseguimos todos criar. Indiquei que a moça se separasse, tem uns caminhos sem volta.

Provoquei e perguntei se me entregavam o celular por uma semana, já que diziam poder abrir mão do aparelho. Impulsivamente, como forma de provar suas justificações, vários aceitaram o desafio. Minha mesa se encheu de celulares. Acabei levando apenas três, de três corajosos. Eu não entregaria porque sou meio trágico. Sou de abrir mão de tudo, ou de entrar de cabeça...e talvez por isso seja um cara desequilibrado!

Mas o que me deixou a flor da pele foram os depoimentos sobre o melhor momento da semana. Um se alegrou com a ligação dos avós que moram longe (o melhor momento estar atrelado aos avós me sensibilizou), outro sentiu a delícia da vida quando escutou a música preferida, outro quando chutou o pau da barraca, bebeu todas e beijou a gata da festa (mesmo que as bebidas todas tenham ajudado para que ela fosse a gata da festa). Alguns tiveram o êxtase vivencial com os abraços. Abraço no filho para curar a saudade. Abraço na esposa escutando a chuva cair. Outros tantos se deliciaram dormindo, talvez sonhando, experimentando o gozo do ócio. O ócio tão fortemente combatido. O ócio visto como grande pecado, como culpa das culpas. Estar parado contemplando a paisagem, enquanto o mundo corre e literalmente caga e anda pelas paisagens, é o pecado desse nosso tempo que nunca tem tempo para nada que importa.

A nossa vagabundagem reflexiva produziu. Mas produziu apenas coisas invisíveis, sem nenhum preço de mercado ou quilate curricular. Produziu sensações que não nos fizeram avançar no plano de ensino (?), mas que nos fizeram avançar sem destino. Produzimos invisibilidades. Que valem tudo para as sensações. Que valem nada no palco que estamos.

quarta-feira, 27 de outubro de 2010

Contos Imediatos XXXIII

ENGOLIR O ERRADO


No bar, quando o uísque da garrafa já era mais mijo que uísque, dois amigos debatiam:

- Olha, eu tenho um certo medo dessa vida.
- Eu não, eu tenho medo do que dizem que é certo...Um dia desses encontrei o Certo que caminhava pelo parque, e não é que ele andava de mãos dadas com o Errado! Grande filho da puta enganador. Mas no fim entendi suas razões, falei com os dois e ficamos todos amigos. O Errado é um cara gente fina também. Agora eu seguido os vejo andando juntos pelas ruas, de vez em quando até se tascam uns beijos na boca, pode?

Sem entender muita coisa, o primeiro bêbado resmungou um resmungo tão resmungado que não há onomatopeia que lhe corresponda. E o outro continuou:

- Por falar nisso, olha lá os dois, caminhando do outro lado da rua, não tá vendo seu bêbado cretino?

O infeliz, quase dormindo de tão borracho, forçou os olhos para o sol forte que fazia na rua e não viu nada.

- Lá onde? Não to vendo porra nenhuma.
- Lá, além do certo e do errado, não tá vendo bêbado da porra!
-
PFF

segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Caminhando torto, cantando desafinado e não seguindo a canção...



Tenho outras coisas para fazer. Estudei leis. Quando terminei meu curso de Direito aqui no Rio e fui me dedicar a uma carreira artística, já sabia que arte é cultura inútil. Mas hoje consegui ser mais inútil do que qualquer artista. Sou advogado num tempo sem lei. Quer coisa mais inútil do que isso?


Geraldo Vandré, caminhando, contando e tentando não seguir a canção...

Caminhando




Caminho tanto com o pensamento
que meu caminho se abre e chego a um trevo, enfim.
E se faz nos meus nervos um requerimento
solicitando que se divorciem as partes de mim.


PFF

sexta-feira, 22 de outubro de 2010

Pergunto:

Qual a essência da pureza?

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Dores da vida






Ter nascido me estragou a saúde.



Clarice Lispector

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Michael Moore e CQC: renovando esperanças


Imperdível o último documentário de Michael Moore. Mostra os bastidores da podridão que aconteceu na crise econômica estadunidense da era Bush. Lembro que na época, o Eduardo Galeano já tinha levantado a lebre, questionando de onde o governo americano tinha tirado aqueles bilhões de dólares que usou para salvar os bancos e que historicamente não achava nos seus cofres para os miseráveis daquele país, em grande parte os latinos que são a força bruta da potência junckie, e ficam lavando os pratos e limpando a merda dos banheiros do país dos sonhos.
-
Pena que a tentativa do Moore prender os filhos da puta acaba apenas como um humor de gosto amargo, que mascara nossa revolta diante dos fatos com um sorrisinho de canto de boca. Esse tipo de utilização da mídia, estilo faz o Michael Morre nos Estados Unidos e o CQC aqui no Brasil, renova minhas esperanças. Enquanto a novela da Globo vai drogando a capacidade crítica do povo, é renovador saber que existe uma concorrência com motivos mais nobres e ainda preocupada em agradar e fazer rir. Tomara que o humor inteligente se transforme em alguns anos em rebelião, quando todos perceberem a dimensão do que se faz conosco nas esferas de poder. É só educando e informando que se pode sair da lama. E ainda há quem diga que o Che Guevara era um cara malvado...

terça-feira, 19 de outubro de 2010

Contos Imediatos XXXII

O COMISSÁRIO
-
Completamente ignorado que era por todos aqueles tipos vestidos de preocupação, pelos leitores de folhas impressas de inutilidades e por aquelas senhoritas escondidas atrás de uma grossa camada de poeira artificial; o comissário carregava no semblante um desejo de tragédia.
-
Prostrado no meio de ninguém, naquele ritual autômato dos procedimentos de emergência, queria vingar-se de toda aquela gente envenenada por suas próprias razões. Em alguns momentos só a catástrofe tem o atributo de fazer despertar. É em geral assim que revisam-se os homens: quando têm que enfrentar o absurdo.
-
Desejava que o avião se esborrachasse no chão. Talvez assim, ao menos no breve instante de pânico fosse lembrado. Queria mais ser lembrado do que viver.
-
PFF

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A opacidade do gosto



Os ricos são pessoas muito especiais, vivem por sua conta, que é uma coisa que mais ninguém faz. O gosto, que tem a tendência a estabelecer os princípios da moralidade, é influenciado pelo preço e não pela noção do sublime.




Agustina Bessa-Luís

sábado, 16 de outubro de 2010

Sonetos





SONETO DOS SONETOS



É vaidade a razão
Do poeta “sonetador”
Que titula Soneto – em antecipação,
O conteúdo da poesia – seja ele qual for.

O estar dos dois tercetos
São charme a enganar o leitor
Que chupa inconsciente o doce soneto
Qual o beija-flor chupador de não se sabe qual flor.

É que esses tercetos que começam
E - sabe o poeta - nada há que lhes impeçam,
Bem poderiam outros dois quartetos ser.

E a trama envolvente do poeta
Vai deixando a mensagem discreta
De que tudo que já é, poderia de outro modo vir a ser.


PFF

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Malditas incompreensões



Ou se fere (dor da culpa)
Ou se é ferido (dor da dor)
Ou se morre, que é quando não se sente (vazio sem sentido).
Mas se não se sente, morre a vida, que é o Jardim das Delícias dos mortos e feridos.
Não há solução além do caminho.
Há o caminho, apenas.
Aqui na vida e lá na morte...ou, aqui na morte e lá na vida, seja como for.
Se na morte não há feridas, o que esse tanto de vivos faz aqui? Vêm aqui para doer?
Doer é legal, então?

E se fala que as defesas são um algo que nos prejudica, que nos impede de viver, de doer...mas, vou ficar esperando a lamina fria da foice entrar nas minhas carnes sem anestesia? As armaduras são proteções, preservações. E se quer mesmo ficar encapsulado dentro do carro, da roupa, do próprio corpo; num resguardo eterno. Se quer morrer durante o sono, sem sentir, engraçado né? Sentir é sinônimo de...vida. Da vida que evitamos desde que nos tornamos viventes!

Não se quer sentir (dores, vazios), por isso morre-se mesmo com o coração batendo e com contínua respiração. Não percebeu que você está mortinho da silva? Mas quais “outros” estão vivos?

Ah malditas incompreensões!

Entrevista Warat: "...temos que inventar um sentido para nossas vidas"


Captura Críptica: A sua tentativa de aproximação do Direito com Arte é muito antiga. Poderíamos dizer que desde a década de 80, quando você lança A ciência jurídica e seus dois maridos e O manifesto do surrealismo jurídico, realiza as semanas de Cinesofia, lança a revista Cinesofia, essa proposta tem sido construída. Atualmente, você tem trabalhado com as possibilidades de formação de juristas sensíveis através da experiência artística. Como essa relação interdiciplinar pode gerar esse espaço de sensibilidade no ambiente jurídico?
Luis Alberto Warat: Falar da função da arte na descoberta da sensibilidade implica para mim sempre a procura ou a produção de um processo criativo. Pois, através do processo criativo, é possível conhecer e resignificar os meus devires e os devires do outro, é possível produzir revoluções moleculares e instigar a emergência de novas formas de compreensão do mundo. Meu grande problema e desafio é como estimulo a sensibilidade criativa ou como estimulo a sensibilidade através de um processo criativo. Para desenvolver a sensibilidade é necessário que deixemos a arte atravessar nossos corpos, que vivamos intensamente a poesia, esse caminho foi apontado nas experiências vividas pelo grupo de pesquisa Direito e Arte da UnB, que eu coordenei durante os anos de 2005 a 2007, que radicalizou a minha proposta e aceitou o convite para livremente experimentar a arte. Com esse grupo inaugurei um espaço poético que nomeamos Cabaret Macunaíma. Um espaço poético e mágico. Creio que através dessas experiências podemos nos reconstruir enquanto devires mais sensíveis, mais abertos ao outro. Tenho a impressão que o trabalho desse Grupo resultou na intensificação da aproximação do Direito e Arte e abriu um leque de possibilidades. Os Cafés Filosóficos que venho desenvolvendo desde então e as Casas Warat eu podeira dizer que fazem parte desse movimento. Aí eu vou citar as Casas Warat de Goiás e Santo Ângelo, programas de extensão onde os alunos são invitados a viver a experiência artística através da literatura, do cinema e dos saraus, que se parecem muito com os Cabarets. Acredito que é mais importante produzir a sensibilidade através da arte. Eu fazendo arte produzo sensibilidade, isso é o que eu quero dizer.
***

Captura: Como você imagina que a sensibilidade possa interferir diretamente nas práticas jurídicas?
Warat: A sensibilidade, atualmente, não interfere nas práticas jurídicas, porque se os juristas fossem sensíveis, eles se abririam para perceber as problemáticas das partes e não considerariam os processos apenas como algo formal e burocrático, submetidos a uma legislação processual que diz mais que a vida, que os sentimentos e afetos que estão sendo tratados. O que passa é que as crenças que fundam o imaginário instituído dos juristas se baseiam na idéia de que a justiça é neutra; que o juiz tem que ser insensível e racional. As escolas de Direito não preparam os graduandos, futuros profissionais do Direito, para enfrentarem os conflitos sociais de sociedades complexas como a nossa. Assim, temos essa Justiça porque o estudante de Direito, já na sua formação, internaliza hábitos que lhes marcam seu corpo como se fosse neutro, quando deveria ser o contrário.

***
Captura: No seu entendimento os juízes conseguem ser imparciais? Os profissionais do Direito conseguem ser imparciais? Eles devem ser imparciais?
Warat: Não, eles não devem. Há uma questão: se vamos modificar a história de que o juiz é aquele que decide, a imparcialidade perde o sentido. Porque no fundo o problema não é a imparcialidade e sim a arbitrariedade. A sensibilidade permite ao juiz tomar a consciência de que não deve ser insensível. A imparcialidade significa tomar distância e eu creio que estamos buscando através do trabalho de sensibilização implicar o juiz no conflito e não afastá-lo. Não criar uma distância do conflito para que ele decida, mas se implicar para decidir. Eu acredito que está perdendo peso ou importância a idéia de imparcialidade. Isso é coisa da modernidade. Cabe destacar que existem hábitos, comportamentos familiares. Eu, em minhas aulas, sempre dizia quando me referia à interpretação do Direito que a fonte do Direito eram as sogras dos juízes. Porque todos os valores familiares, tudo o que ele escuta em uma conversa com seus familiares se reflete na sentença, ainda que de forma inconsciente. Ele internaliza hábitos de uma classe e quando decide os hábitos falam. Ele não é imparcial, senão está condicionado pela sua cultura, seu sistema de valores, suas crenças. Ademais, o juiz tem todas as internalizações da própria classe, ou seja, a alma do colegiado lhe diz que ele decida com espírito da classe. Existe o inconsciente que informa uma determinada maneira de decidir ainda que ele não esteja consciente disso.
[...]

Captura: Na sua avaliação, qual é o impacto das suas idéias nas instituições? Você acredita que elas tenham um papel desconstrutivo ou você propõe a revisão dessas instituições?
Warat: Não sei. Pode ser que o meu pensamento não resulte em nenhuma modificação. É como eu enxergo as coisas. Eu desconheço o impacto do meu olhar sobre as instituições. Acredito que existe um grupo de advogados e juristas que de alguma maneira me seguem. Porém, a maior parte dos juristas segue atuando de forma convencional.

***

Captura: Você acredita na possibilidade de instituições sensíveis?
Warat: Não. Acredito em relacionamentos sensíveis. Acredito mais na possibilidade de criar cidades sensíveis que nas instituições. Acredito na possibilidade de construir uma cidade digna de ser vivida, ou seja, que me sensibilize cotidianamente.

***

Captura: Você sempre trabalhou com a categoria amor. Acredito que seja mal compreendido. Geralmente, quando se fala de amor, associamos a ideia do amor romântico, que pelo o que compreendo de sua obra é justamente o oposto do que você quer dizer. O que é o amor para Warat?
Warat: É uma dimensão da loucura. Amor é loucura e poesia.
***

Captura: E alteridade também?
Warat: Sim. Alteridade, loucura e poesia.

***

Captura: Eu vejo esse amor como uma radicalização do respeito, da alteridade, do reconhecimento do outro.
Warat: É difícil definir o amor porque ademais não se ganha nada com sua definição. Cada pessoa exercita seus sentimentos com os outros e não há necessariamente que se colocar um rótulo. Porque cada exercício de sensibilidade de uma pessoa é único e irrepetível. Então, é difícil definir elementos irrepetíveis. Definir o amor é reduzir o sentimento amoroso. Ontem, assisti a uma película e um dos personagens dizia a uma mulher “ontem sonhei com você”. Outro personagem diz à mesma mulher “ontem sonhei com você”. A mulher, surpresa afirma: “que coisa rara! Como posso estar em dois sonhos diferentes?”. Quando se pensa no amor, se pensa a possibilidade de que duas pessoas vivam o mesmo sonho. E isso é impossível. Cada um tem o seu próprio sonho. É impossível sonhar o sonho alheio. Portanto, o amor é um sentimento que se exercita quase na impossibilidade. É uma alteridade minha com você e sua comigo, que não coincidem. É um jogo de alteridade que cria um vácuo. Acredito que a vida e o amor não são passíveis de definição, porque são enigmas que não precisam ser resolvidos, mas vividos. E o resto é muito raro.

***
Captura: Voltando à questão anterior do sujeito. Acredito que existe um dado que deva ser considerado, que vem sendo trabalhado por muitos autores como Derrida e Deleuze, que é a questão da subjetividade. Entendo que a subjetividade é constitutiva do sujeito. Como entender a subjetividade desgarrada do sujeito?
Warat: Não há nada além do desgarro. A subjetividade é constituída de fluxos desgarrados. Somos um devir constante. Tanto assim que você agora não é a mesma que estava sentada aí há dez minutos. Essa pessoa já não existe mais. Porque a pessoa que está aí é diferente daquela que estava sentada há dez minutos e também será diferente daquela que irá embora daqui a meia hora.

***

Captura: Mas ao mesmo tempo são a mesma pessoa.
Warat: Como uma ficção. Você constrói a ficção de uma identidade na desigualdade. Você quer congelar o devir para deixar que teu corpo tenha alguns referentes fixos. Isso é uma ilusão. Muitas pessoas vivem essa ilusão. Eduardo, Marta, vocês não existem. Eu também não existo. O mundo é um sistema de ilusões. E tentar sair desse sistema para ter uma mirada crítica também é uma ilusão. É claro que necessito ter algumas ilusões, porque senão não resta nada. Porém, o que existe além das ilusões? Nós temos que inventar um sentido para nossas vidas.

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

L ab iri nt o



As vezes, e ainda bem que só as vezes sob pena de uma epilepsia existencial generalizada, o caráter labiríntico da vida se torna agudo. E não são aqueles labirintos óbvios das revistas de crianças de 3 a 5 anos. O labirinto da vida é coisa de gente com QI superior a 120 (se é que esse teste testa alguma coisa). Falando em QI, como é que pode haver um "quociente de inteligência" hein? Se essa porra só testa a rapidez e a memória, e esquece que é nos esquecimentos que se encontram nossos grandes tesouros, as moedas raras de ouro que nos torna rico fora das contas correntes e outras quinquilharias que reluzem no escuro. A inteligência dos testes de inteligência tem sempre essa vocação matemática. De acordo com essa tradição, muito gente tida por inteligente não é. Os desprovidos de raciocínio lógico, nesses termos, não são os mesmos inteligentes que resolvem aqueles testes imbecis de email. Lembro da Clarice Lispector suspeitando da sua inteligência, perdida que era entre as tantas que tinha por dentro...afinal, como alguém que não tem respostas para nada pode ser inteligente? Como alguém que não consegue avançar no próprio labirinto pode ser inteligente? O dois mais dois de mim mesmo pode ter tantos resultados que as vezes me vejo num labirinto manipulado pelos engenheiros de labirintos, esses caras tão matemáticos e lineares que não chegam a esquecer de engendrar a saída, mas deixam de pensar que o tamanho da porta que dá para o átrio da livre brisa pode significar uma escravidão eterna.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

O amor não resolve nada (coletivamente)



O amor não resolve nada. O amor é uma coisa pessoal, e alimenta-se do respeito mútuo. Mas isto não transcende o colectivo. Levamos já dois mil anos dizendo-nos isso de amar-nos uns aos outros. E serviu de alguma coisa? Poderíamos mudá-lo por respeitar-nos uns aos outros, para ver se assim tem mais eficácia. Porque o amor não é suficiente.


José Saramago

Flores matutinas




Quando houver a nossa casa,
que haja bom dia com flores.
Para que assim não jaza,
nenhuma pétala do nosso jardim de amores.




PFF

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Surrealismos


A razão da espera é que temos sempre que estar esperando. Esperando. Porque se tem que esperar tanto hein? É que esperamos pela verdade, que é em geral apenas uma sensação. E as boas sensações são então os farelos possíveis de verdade. A verdade fica então limitada ao único momento em que não se espera. O gozo. O relâmpago. A clareira. A luz de poucos instantes. O quando sobrevive-se, sem esperar. O ônibus está por chegar. E a espera, por terminar. E lá no final dos finalmentes, uma geléia com uma flor recém coletada do jardim. Doce por ser flor, gostosa por ser geléia.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

Ser ou não ser o lobo: eis a questão






"Todo homem devia orgulhar-se da dor,
toda dor é uma manifestação de nossa elevada estirpe."



Hermann Hesse em
O lobo da estepe

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

O devido lugar





O SÍTIO MATRICIAL

Tudo, outra vez,
no seu devido lugar.
No lugar de origem,
no sítio eterno, uterino, matricial.

As ondas quebram no ritmo que quebram.
Dançam frouxas como água,
fortes que só elas por serem mar.
E o mar, o incansável músico mar,
mantém o eco ruidoso dos mesmos acordes
que nunca saem do devido lugar.
O natural e santo devido lugar.

A natureza toda,
do céu de azul possível
à areia desbotada de qualquer cor,
toda ela é o que é,
no plácido devido lugar.
Sempre divinamente abraçada pelo ar,
a natureza repousa eterna,
do desde sempre ao para sempre.

Os caminhantes fazem dos passos que dão,
a direção dos passos que dão.
O universo,
grão de areia na praia dos multiversos,
revela o bem estar do instante,
esse que é tão maior que a felicidade,
essa que nunca tem um devido lugar
e sempre fica nos devendo tanto.

E ela, que a mim é tão natural como ser,
como as coisas que estão que estão no lugar,
igualzinho ao santificado mar;
se deixa em calda viva
na areia a desmanchar,
no chão natural do mundo perto do mar.
Se a vê completa, como a unir universos
que sequer nome ainda têm,
que nem mesmo cabem nesses versos.

O ventre mira o mar.
O mar, de esforço natural em direção ao ventre,
vai ensinando – natural magistério do mar -
que se pode manchar a areia d’água,
só até onde cada onda pode alcançar.
Em vão até o ventre, pobres águas a se esforçar,
enchendo de areia as bocas tantas do mar.

Portais universais que são,
mar e ventre se entreolham, flertam.
Cada retorno das ondas ao mar é frustração.
E as ondas filhotes, aos desejos, os despertam.
Portas multiversais,
esteiras ao mistério,
do misteriosamente,
prelúdio do caminho de flores
até onde mora,
numa casa hospitaleira de tábuas singelas,
o amor de nenhum mistério.
É lá, no cimo mais simples do oiteiro,
o devido lugar do amor,
o amor da deliciosa morte de viver,
o sítio eterno, uterino, matricial.
Empate da existência,
lugarzinho simples, frugal.
Devido lugar.


PFF

domingo, 3 de outubro de 2010

Eleições 2010: fodendo a paciência



O Tiririca é o deputado federal mais votado no Brasil, Florentina assume o posto de primeira dama e hit do verão tropical que se aproxima. A jumenta com cara humana que atende pelo sobrenome Roriz está qualificada para o segundo turno no Distrito Federal do falecido Juscelino, que foi visto não só se mexendo no túmulo, mas também pegando avião em Guarulhos em direção às Ilhas Galápago, se diz que por lá a natureza é mais confiável. É só em época de eleição que sobrenome de ladrão e ignorante fica na moda, não deixe de acompanhar os tilt’s existenciais da candidata a asno no Distrito Federal quando diz que “acredita que seja o primeiro debate que participa”, a desgraçada não sabe nem se já participou de um debate, o que pode saber? Ratinho Júnior, o filho do apresentador do programa mais pus fedorento da TV brasileira, parece que também se deu bem. O Collor emplacou para o segundo turno em Alagoas, por certo o estado da federação com mais maconheiros do país e seus nefastos efeitos mnemônicos (edição de segunda-feira não confirma a informação, de qualquer modo segue-se estupefato, pelos quase 30% da população alagoana que anda comendo bolinha de cinamomo). Aguardo notícias do Maluf, que deve estar comendo em alguma churrascaria de R$ 150,00 por cabeça em São Paulo, a terra das oportunidades.

Se tivesse ido até meu domicílio eleitoral, ia ter ficado na dúvida entre o Nulo e o Plínio. Anular é protestar; depositar o voto no Plínio, o último suspiro de um moribundo. Gostei do Plínio a partir do momento em que começaram a chamar ele de louco. Se a massa condena alguém de louco é bom sinal. Fizeram o mesmo com Copérnico que disse que a terra era redonda e que não tinha nenhum dragão satânico além da linha do horizonte. Queimaram, enforcaram e condenaram tanta gente que empurrou a máquina contra a maré na história que é compreensível que a população sequer cogite de votar num louco como o Plínio. É um medo ancestral. Hoje o Estado enforca um pouco menos, mas a condenação do povo segue a mesma, ou alguém vai me dizer que ninguém mais torce o nariz para os negros, para as mães solteiras, para os índios que só queriam viver tranquilos, para os gays proprietários legítimos de seus cús, para os que coçam o saco e choram em público, para os vegetarianos, para os loucos varridos que (talvez) se espantem com umas verdades que veem e só queiram tentar compartilhar com os outros ...enfim, tudo quanto é gente diferente é sinal de problema, de situação fora do controle, coisa que misoneísmo nenhum suporta. Temos essa conta histórica pra acertar com nós mesmos.

Além desses indícios históricos, gostei do Plínio porque ele foi o único a dizer a frase santa: não sei. Livrando-se da retórica ensaboada dos debates quando o Serra fez uma pergunta pega-ratão, pensando que o ratão não teria coragem de dizer que não sabia. E o Plínio explicou: "Governo funciona assim, quando o presidente não sabe alguma coisa, chama o ministro e pergunta: - E aí, qual é o problema lá com a Petrobrás..." Foi o melhor esclarecimento político que tive do pouco que escutei na campanha-arrebanha-imbecil.

E tem a porcaria das pesquisas...como é que não acabaram com esse negócio ainda? E a outra porcaria, essa que fede mais que merda, que é a distribuição democrática de tempo na televisão. O democrata cristão Eymael não consegue nem dizer o nome, o coitado deve pensar que a onipresença do Senhor pode ajudar que sua mensagem política invada os lares cristãos que já não andam muito na moda com essa coisa de pastor querer o rabo de coroinha. Os programas da Dilma que vi têm uma qualidade de edição incrível, coisa que custa caro. Tudo bem, os editores e marketeiros são pagos com o dinheiro que ela guardou durante a vida. Quem ganha somos nós, telespectadores de programas políticos de alta qualidade. Gente fina essa Dilma, solidária.

Um aluno que participa dos bastidores da eleição, comentou comigo que cada deputado federal da situação ganhou do governo R$ 600 mil reais para a campanha, tem aquela história de maioria no congresso e tal...E disse que como cabo eleitoral de um deles, estava estocando gasolina em casa já que estava liberada durante a campanha. Até me ofereceu um tanque. Não sei se a informação procede, mas desconfio que feche o ciclo considerando os indícios. É isso meus amigos, não tenho mais nada a dizer. Sei que vou dormir melhor agora que o Valdir, candidato a alguma coisa aqui em SC, perdeu ou ganhou. Ele criou um dingle usando como pano de fundo o I want to break free do Freddy Mercury. Lembre do ritmo e cante comigo: Eu vou votar no Valdi-ir, eu vou votar no Vaaaldir, eu vou votar no Valdir pra me unir, pra seguir, pra votar no Valdi-iiir, eu vou votar no Valdir... A semana começa com essa vitória pessoal, a caravana da desgraça musical do Valdir acabou. Se tivesse segundo turno para deputado eu ia me mandar pra Galápagos tomar cachaça com o espírito do Juscelino.

Ps. uma comissão eclesiástica se reúne amanhã em Roma para estudar a proposta de alteração da Bíblia e mudar o número da besta de 666 para 2222.


sábado, 2 de outubro de 2010

A mágica do filme*


Liguei a televisão, despretensiosamente, no domingo de manhã. Apenas para acompanhar o café com alguma imagem. Coisas de hábito. Normalmente é o jornal. Seja um, seja outro, não importa, o fim é o mesmo, dar ocupação à mente.

Liguei diretamente nos canais de filmes. Também é um hábito. Vejo qualquer filme, não importa em que momento tenha começado. Verei o que faltar outra hora, quando o encontrar novamente, por aí. Uma espécie de quebra-cabeça de filmes, que vou montando aos poucos.

Estava passando a Loja mágica de brinquedos. O filme conta a história de Magorium, que tem 243 anos e é dono da loja de brinquedos mais fantástica do mundo. Tudo lá é mágico e parece ter vida. A única condição que se pede aos frequentadores é muito simples: precisar acreditar para ver.

De repente, estava eu grudada no sofá, assistindo aviões de papel voando, bichos de pelúcia falando, esqueletos de dinossauros andando, mas principalmente, descobrindo um mundo de lições a cada frase de Magorium, o personagem de Dustin Hoffman

Foram duas grandes lições: de vida e de morte. No filme, a lição sobre a morte vem primeiro. Magorium avisa a Nathalie Portman, a Molly, que ele está partindo, o que significa morrer. Diante da perplexidade e dificuldade dela em aceitar o fato, ele passa a desfiar argumentos, procurando convencê-la de que sua “partida” deverá ser vista como algo natural.

Um dos argumentos usados é a forma como Shakespeare descreveu a morte do Rei Lear, na peça de mesmo nome. Diz Magorium que Shakespeare, brilhantemente, escreveu: “ Ele morreu”. Não houve metáforas, explicações ou arroubos literários, mas um simples ele morreu. Também diz ele que viveu todos os seus cinco atos e gostaria de terminar com um simples e modesto “ele morreu”, porque o que importa é a vida que tivemos antes dessas palavras.

Diante da incredulidade de Molly, ele acrescenta que a vida é um acontecimento e que precisamos estar à altura dele, mostrando o filme, logo depois, uma cena eloquente, para iilustrar a mensagem: os dois personagens aparecem em em uma loja de relógios e os colocam todos para soar na mesma hora, faltando apenas 37 segundos. Diante da algazarra dos relógios pendurados nas paredes e espalhados pela loja, Magorium diz que 37 segundos bem usados são toda uma vida...

Bem, Magorium parte e deixa uma Molly inconsolada, o “ cubo congreve” como presente e a loja, como herança. O cubo de madeira teria a capacidade de fazer milagres, mas para ela, teimosamente, continua sendo apenas um cubo de madeira. A loja, emudecida e apagada, é posta à venda porque Molly não consegue superar a perda do amigo.
O tal cubo mostra a razão de sua existência quando Molly volta a acreditar na magia e encantamento da loja, e ele passa a saltitar, voar e dançar sozinho, dando novamente cor e alegria ao lugar, espalhando vida a tudo e a todos. Moral da história ou do cubo, é que é preciso acreditar para ver.

Enquanto pensava no filme lembrei-me de outro, em que um redator de jornal, “escrivinhador” de obituários, em dado momento, comenta que era um hábito que os gregos não tinham. Diante da morte de alguém apenas perguntavam se a pessoa havia sido feliz. Não importava se havia sido importante, rico, famoso, inteligente. Importava, diante da morte, se havia sido feliz.

A respeito da morte, idealizada que está no filme, impossível esperar que nós, pobres mortais, a encaremos tão tranquilamente, ao menos sem que tenhamos passado por um longo aprendizado, com ensinamentos de Buda, Jesus Cristo, Hare Krishna ou outros seres superiores, ou quem sabe, todos juntos.

Agora, quanto à vida, não é possível passar ao largo da mensagem do filme. Numa primeira e supérflua avaliação corre-se o risco de concluir que a mensagem é piegas. Afinal, quem já não ouviu dizer por aí que a vida é feita de momentos, que felicidade não existe, mas sim momentos felizes, que é o presente que conta, etc, etc.
Pois é, mas é tudo verdade. E essa mesma verdade, que nós costumamos maquiar com incertezas, complicações e traumas, é mostrada através da magia de um cubo de madeira que voa, e que parece estar dizendo a cada um para criar o seu próprio enredo. E, pensando bem, nem precisa ser longa metragem, um curta, com boa produção, já é suficiente.

Ah, cubo de madeira não voa? Tem certeza? Já experimentou acreditar?
*Gladis F. Ferrareze

sexta-feira, 1 de outubro de 2010

Sonetos




SONETO DO BATISMO DE CAFÉ

Chocolate, um livro e cafeína,
Como sempre depois do almoço soia.
A sobremesa era uma tríade sina,
Contra a qual lutar eu não podia.

Mas até que certo dia,
O café manchou o livro,
E desgostado, quis outro a compor meu arquivo;
Aquela edição estava perdida, uma porcaria.

E por outra não haver
Nas redondezas de onde eu costumava,
Restou a edição maculada, que triste me olhava.

E ao lê-la toda pude perceber,
Que deveras a edição nada importava,
Mas o que a historieta - em mim - maculava.



PFF